De um armazém de esquina ao qual era enviado, criança, a buscar qualquer coisa de emergência para o almoço, guardo nítida a memória de um gringo emigrado para a fronteira que tomava de uma folha de papel pardo de uma pilha e fazia um embrulho expresso apenas torcendo os cantos da folha quadrada. Sem durex nem fita crepe. A habilidade do comerciante em acomodar daquela forma ovos, batatas, cebolas, qualquer coisa, ainda hoje me parece espantosa. Como conseguia? Nunca entendi, ele apenas fazia. Just do it, como diz o lema da Nike.
A capa rústica, semelhante àquele embrulho, do recente livro do Gustavo Matte e do Paulo Damin, Édipo na colônia (Humana, 2023), não deixa ver a quem se impressiona do livro mais pelas artes gráficas a fartura de reflexões que a brochura traz em seu interior. Mas não se pense que a capa do seu livro é um recurso estético com efeito impressivo. Não! Eles me garantem que se trata de mera economia, os carcamanos. Economizaram no design e o papelão, garantem, é menos ecocida que os papéis clorados, emulsificados e plastificados que há por aí.
Mas sejamos menos ofensivos, certo. Não cai bem numa resenha depreciar os autores com preconceitos tão baixos. Não são carcamanos os autores deste livro que me parece pertencer a um gênero pouco difundido, o ensaio epistolar, são eles dois amigos escritores de longa data e grande honestidade que, pela distância, trocam muitas mensagens por escrito e daí, quase naturalmente, propiciou-se o formato em questão.
Organizado em questionamentos e réplicas redigidos por email ou áudios transcritos, o livro se presta a muito bons debates acerca da antropologia cultural “colona”. As mensagens tratam também de muitos assuntos correlatos, especialmente literatura (a deles mesmos e a dos demais), mas o que transparece para além de tudo é um conflito de identidades de quem, proveniente de um ambiente cultural rígido decide-se a pensar sobre isso tudo de uma forma ao mesmo tempo dura e afetiva. Como sabemos, isso só é possível mesmo a quem compartilha, mais do que impressões e leituras, afetos comuns.
À primeira vista, a disposição dos autores é a de enfrentar uma “parede”. No livro, muitas vezes definem o povo serrano nessa compleição psíquica muito característica, de acordo com eles, pouco maleável. Em Caxias do Sul, onde vive o Paulo, e em Chapecó, onde está o Gustavo, dizem eles que a pessoa se define na vida basicamente pelo comportamento familiar e pelo nível de sua dedicação ao trabalho. Para o mais – belas artes, cultura, etc – haveria um interesse apenas incidental. Desse estranhamento com a origem e a situação de quem pensa a respeito dela surge, afinal, uma redescoberta do que significa ser “colono” e como isso se relaciona com suas representações artísticas, a realidade do Rio Grande do Sul e do mundo.
Nesse ponto, cumpre um esclarecimento de cunho regional, útil sobretudo a quem tem uma visão pouco nítida da microgeopolítica rio-grandense.
Engana-se quem imagina que, no Rio Grande do Sul, a serra consista, por exemplo, no oposto da campanha e da fronteira. Não só não são opostos como também não se complementam. Não faz sentido, mas é isso mesmo. A rigor, uma não tem nada com a outra e é por isso que pesa um exagero a generalização do nosso gentílico e suas características culturais mais genéricas, sejam as depreciativas ou ufanistas. A serra tem seus próprios dramas identitários que se inscrevem no grande drama do gauchismo amplo senso. Não vamos confundir as coisas.
Não é um exagero a afirmação de que há muitas fronteiras no microcosmo do Rio Grande do Sul. Há enclaves e essa definição eu roubo do Paulo e do Gustavo, que a utilizam muito apropriadamente para descrever a presença dos imigrantes italianos e alemães no Rio Grande do Sul e a cultura serrana. Ora, para quem já andou nos quatro cantos do estado, é bem simples a identificação de grupos étnicos e situações culturais bastante heterogêneas e tão distintas quanto os pontos cardeais, quiçá os colaterais. Não havendo felizmente qualquer reincidência belicista entre nós mesmos, isso é de uma riqueza muito grande e, a despeito dos conflitos, costuma gerar movimentos culturais dinâmicos, casamentos, etc.
Polêmicas à parte e voltando ao que interessa, o importante mesmo é dizer que o formato epistolar de Édipo na colônia é extremamente atrativo à leitura. Nessa época de voyeurismo oficializado, no qual todo mundo vê o que as pessoas se escrevem, resta um sabor especial de invasão de privacidade. Sim, porque o que as pessoas mostram em público nas redes sociais quase sempre o que é de interesse privado e às vezes guardam para si o que seria de interesse público. Daí a necessidade de um livro como esse, no qual os autores gozam de liberdade e intimidade suficientes para dispensarem pudores inúteis e abusarem da sempre necessária sinceridade. É de aproveitar o ensejo.
Como egresso do interior, muitas vezes me senti irmanado nos mixed feelings declarados pela dupla em relação à serra. Apesar de vir da fronteira, o sentimento é praticamente o mesmo. Não pode amar sua terra quem em algum momento não a odiou com todas as forças. Quando o Paulo fala que deseja se “desembaraçar de certas coisas colonas que se agarraram em mim”, a vontade que me dá é de largar o chimarrão, abrir uma grappa de rosca, e beber com eles os dois esse desencanto, brindando sua impossibilidade até aceitar que, afinal, o melhor possa até ser suportar esses traços que se manifestam involuntariamente no falar, no comer, no agir, enfim, no ser.
Até poderíamos abrir espaço para os outros assuntos cruciais que eles discutem com seriedade pétrea (como a relevância do minifúndio na sustentabilidade, Sófocles, o romantismo alemão, frio insuportável, calor insuportável, colonialismo europeu, colonismo gringo, qualidade do vinho e da pinga, etc.), mas o esporte preferido do interiorano é falar sem culpa da terra de origem até o ponto do arrependimento.
Eu diria que a leitura do seu livro é mais que tempo bem empregado, é quase diversão não encerrasse o tanto de autenticidade que ele traz em suas páginas. Vencida a impressão de ser um intruso num debate íntimo e a vontade de dar uns apartes, fica a certeza de um livro raro desde a capa. Vendido a um preço justo, como também é raro no mercado de livros, é uma pena que você – leitor/a – veja-se privado da charla que, ao fim, é ensaio mesmo, embora pela simplicidade de forma nem pareça, o que é muito melhor.
