Arquivo da tag: Monsters

Monsters: a fan’s dilemma

Estou começando a ler e vou achando meio injusta a acusação de que o livro de Claire Dederer seja uma espécie manual de cancelamento. Ele é muito superficial e rápido em abarcar a “monstruosidade” de muitos artistas geniais e o desgosto que costuma acompanhar quando se começa a conhecer detalhes parciais de suas biografias, mas é muito interessante porque estimula a reflexão. Seria até engraçado que fosse ele mesmo um livro “cancelado”..

Motivada pelo movimento espontâneo de “tacar no lixo” os livros de Woody Allen pós Soon-Yi, a autora foi colecionando numa reflexão pessoal exemplos de comportamentos complicados, moralmente reprováveis, preconceitos mais ou menos escancarados e até implicações política e criminalmente mais sérias, envolvendo racismo e o anti-semitismo que povoou de modo marcante a mentalidade do mundo na primeira metade do séc. XX.

No livro, passeiam momentos às vezes mal explicados e controversos de declarações, correspondências, entrevistas nas quais nossos gênios diletos amargaram seus momentos mais cruciais de mediocridade humana. Curioso ou não, via de regra essas situações costumam extrapolar e fugir às obras e não infectá-las. Nisso, eu lembro da famosa citação de Ferreira Gullar, de que a arte existe porque a vida não basta e, nesse caso, talvez fosse interessante validá-la em seu sentido oposto também.

O livro é fácil de ler, ensaio fluído, mas é duro de confrontar diretamente com o canône em seu momento mais infeliz. Porém o livro é desse detalhismo mesmo, feito desses closes que agridem o juízo moral hipersensível da contemporaneidade. Eu ainda não cheguei no ponto em que ela analisa as obras controversas de autores como Nabokov, mas parece que ela é bastante cuidadosa ao analisar as obras por si só. No caso das pessoas e respectivas biografias, ela não tem a mesma condescendência e dá nome aos bois e às patologias que os afligem.

O que eu acho de proveitoso até aqui no seu livro é a sua consideração de que é natural que, ao encontrar o leitor, o texto se transforme. E que o leitor, ele mesmo não é uma folha em branco que vai assimilando a obra sem reflexão e, sim, a autoria extrapola o texto e é implicada pela biografia. Quer dizer, de acordo com ela não há como setorizar a leitura e fazer automaticamente essa “separação” entre obra e autor. Pode ser apreciada por si só, mas simplesmente o estofo e conhecimento do leitor quanto ao autor interfere inexoravelmente nessa relação quanto mais informação se tenha a seu respeito.

Outra coisa que ela considera, e eu concordo, é que os leitores têm as suas questões existenciais e psíquicas e não faz sentido exigir que as desconsiderem na leitura. Quer dizer, o leitor é também um sujeito moral e cada um tem seu ponto fraco, do qual não é facilmente demovido. Exigir que pessoas que por situações de abandono na infância, racismo ou violências não se manifestem porque se trata de gênios é no comportamento comunicativo contemporâneo algo inconcebível. Nesse ponto, eu mesmo tenho repulsas viscerais (por exemplo Neruda e Arthur Miller). Provavelmente você tenha, por outras razões particulares, as suas também.

Sem tradução no Brasil por enquanto, por aqui também temos autores que vêm sendo discutidos sob esse viés do cancelamento, vide Monteiro Lobato. Eu não comungo em hipótese alguma com a atividade canceladora nem acho que a vida e a posição política mais abjeta inutilize o artístico (pois teríamos de questionar não apenas Céline, mas muito mais candidatos ao status de monstro público), mas acho importante entender que a cultura do cancelamento, afinal, diz respeito à cultura e comportamento comunicativo de que dispomos hoje. As câmeras de vigilância estão nas ruas filmando nossos passos, mas miram também as consciências. Os telefones (e quem trafega por eles) já escutam os nossos pensamentos.