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Esqueleto

Na minha rua nunca se vê ninguém à janela. Só às vezes uma furtiva cabeça chega rápido e atravessa o limiar dos prédios para ver o que foi o barulho, a que se deve a grita. Se o caminhão do gás (gás raro e nobre, pelo valor absurdo), furto de qualquer coisa, colisão ou conflito de espécies. Mais raro ainda o corpo atravessa a porta e posta-se à calçada por estar ali: a vida é cada vez mais ir e vir e menos estar. A rua desempenha a função de trafegar os entes, só nunca se percebe que é um tanto viva também.

Da minha janela, entretanto, nesses dias vi deslocarem sonoramente a sua pele. Ruazinha estreita da Azenha que mal comporta uma mão única, mas se fez mão dupla certamente num decreto da prefeitura, não efeito da observação de criatura viva que se convencesse opticamente da impossibilidade. Mas, à distância, tudo é possível e simples. E assim decidiram atrolhar de carros e movimento a ruazinha que, num passado não muito distante, talvez não comportasse sequer duas carroças em sentido contrário. Agora tem suvs e caminhões espremendo com seu rugido as margens das calçadas e espantando o povo pra dentro de casa.

Sob a pele, o esqueleto de uma cidade empedrada ainda, mas asfaltada à força. “É pra andar mais rápido”, eu lembro-me do pai me explicando, criança, numa vinda à capital, muito tempo atrás e eu ficava fascinado que a gente andava no carro sem tremer inteiro por dentro graças ao deslize fácil da cobertura preta. Alguém me disse até que agora em novembro próximo se podia fritar um ovo ao meio-dia só quebrando a casca e depositando clara e gema sobre o asfalto. Nunca fiz nem vi a experiência, mas deve ser possível. O solado emborrachado dos tênis e sapatos gruda mesmo, parece um molho derretido entre o corpo do indivíduo e o chão da cidade, num prato sui generis mesmo: o homem urbano.

Retirada a pele, o esqueleto de que falava Quintana aparece como fratura exposta de um lugar que já não sossega muito, nunca está muito a passeio, que é devedor dos próprios deveres, e de um povo que às vezes parece nunca dever nada à cidade. Quase nunca. Só por cobrá-la do que muitas vezes também se prefere não lhe oferecer. De bom grado, Porto Alegre se entristece às vezes, e mais do que merecia. Mas não dói, quase não se nota sua dor, não grita ao descarnamento, à exposição. Sequer geme.

Será essa a “dor infinita” de que falava o poeta? Tem quem hoje recuse Quintana como o grande poeta da cidade também. O “velho bobo”. Mas que desaforo! Tem que ser muito poeta pra ouvir um lamento desses. Vista do alto, do meu terceiro andar, Porto Alegre faz bem em não doer mesmo. Finge bem a cidade como uma velha mãe desiste de queixar-se pra não fustigar os filhos..

Muito em breve em Porto Alegre

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Porto Alegre é uma linda cidade que encanta visitantes de todas as partes do mundo, mas que cada vez menos consegue encantar aos próprios habitantes. Suas mazelas machucam-nos, esta que é a verdade, e não há declaração oficial que nos possa trazer conforto, até mesmo porque declarações oficiais costumam ser não mais que pedidos de desculpas tardios e apenas supostamente preocupados. Dependendo de vindos de quem, bota supostamente nisso.

Esses machucados se fazem notar seja quando as enchentes desabrigam centenas ou milhares de pessoas e sabe-se que se cometem furtos nas doações espontâneas que são feitas, seja quando tornados (agora temos disso também!) evidenciam o destrato histórico que uma das capitais mais arborizadas do país (e que se jacta por disso) tem para com o seu patrimônio natural.

Isso sem falar das obras viárias intermináveis nas avenidas longitudinais, surreais, que duram desde os preparativos da Copa do Mundo de 2014 e até hoje são refeitas e refeitas, numa demonstração impressionante de complete com o que quiser aqui. E sem falar, também, do lixo urbano e seu sistema de coleta sugismundo, terceirizado e precarizado, para o qual muitas vezes a higiene acaba incidindo no trabalho “voluntário” dos próprios moradores.

Seja como for, em torno daqui a cem dias os cidadãos porto-alegrenses estarão indo às urnas para decidir os próximos quatro anos da sua administração, assim como a futura composição da sua Câmara de Vereadores. Muitos sem saber direito quem são os possíveis candidatos, isso mesmo considerando o tempo exíguo para o pleito. Culpa, talvez, da complicada situação política nacional ou estadual. Ou, como quero dizer, de uma identificação precária dos quadros políticos com as questões da cidade.

Excluindo-se alguns nomes já certos e algumas pesquisas de opinião pouco divulgadas, o que não se pode perder de vista é a possibilidade de um revival de uma disputa insossa, capaz de mencionar mais maquetes computadorizadas que a realidade das ruas e promessas que muito logo acabam por revelar-se desvios de finalidade. Também é certo que não faltarão promessas por mais segurança pública utilizando-se a guarda municipal e outras inconstitucionalidades do gênero, bem como o anúncio de novas fontes de captação de água sem que haja indício de como isso poderia ser feito e com quais recursos. Fiscalização e auditoria nas contas das concessões de transporte público então nem se fale!

A tudo isso temos sobrevivido, portoalegrenses naturais e chegados. Ônibus lotados e frota maquiada é nossa praia! Até água com gosto de lodo e efeito parquet no trânsito toleramos. Só o que não se suporta mais são debates sem graça nem sentido e promessas que não encham nem balão de ar. Isso nós todos não fizemos nem pagamos por merecer.

Porto Alegre: poesia e piada prontas

Uma coisa ninguém pode dizer contra a cidade de Porto Alegre: a de que ela não seria uma cidade poética. Afora os poetas que a circunscrevem de versos dos mais variados estilos e lirismos, a administração pública municipal também presta diuturnamente sua contribuição direta e ostensiva para a concretrização do predicado. Não, não estou falando de iniciativas consagradas como os bem conhecidos “poemas no ônibus”, mas da distribuição de conteineres de recolhimento de lixo pela cidade.

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Inadvertidamente, o poder público municipal tem distribuido cópias in vivo do poema “O Bicho”, do pernambucano Manuel Bandeira por aqui. Poucas vezes em sua história a cidade contou com tantas dramatizações poéticas unitemáticas como presentemente. Algumas pessoas, sobretaxadas pelo adjetivo “pessimistas”, chegam a dizer que o famoso pôr-do-sol no Guaíba está ameaçado pela imagem dos detritos urbanos (e daqueles que só tem a isso por alimento) que se espalham uniformemente pela cidade, de tantos em tantos metros, revelando um projeto de engenharia urbana realmente formidável.

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Aguarda-se que, em virtude da Copa do Mundo que se aproxima, cartões postais (ainda se usa isso?) e camisetas serão impressos louvando as imagens poéticas da capital dos gaúchos. Não deverão faltar, obviamente, imagens dos conteiners de recolhimento de lixo e seus arredores, esses espaços pictóricos por excelência nos quais a população deposita diariamente o que já não mais lhe serve para alimentar, ou seja, o lixo orgânico e tantas outras coisas das quais é até melhor nem lembrar. Desculpem a má poesia, mas a sujeira é reconhecidamente um valor poético e estético há muito tempo já, como atesta o “Poema Sujo”, de Ferreira Gullar. Porto Alegre, neste caso, pode considerar-se das mais poéticas cidades do país, e tudo obra de uma repartição pública comandada desde o paço municipal, o Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU).

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Sim, Porto Alegre institucionalizou a poesia do lixo urbano e rapidamente acostuma-se a outras poesias típicas das cidades sem planejamento, como o trânsito caótico e os espaços públicos abandonados, por exemplo, além de outras vertentes ainda mais realistas que, por pouca relevância, só chegam mesmo a publicar-se nas páginas policiais dos veículos de imprensa. Mas tanta poesia tem os dias contados. Desde o último dia 03, vigora na cidade legislação que permite aos agentes fiscais da repartição em questão, o DMLU, aplicar multas e autos de infração aos cidadãos flagrados ao descartar no espaço público desde um milimétrico papel de balas até volumosos entulhos de obras.

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Trata-se de uma solução viável, aos olhos dos gestores e legisladores da coisa pública municipal, mas com efeitos efetivamente imprevisíveis. Se a ameaça de multas irá ou não coibir a proliferação de lixo no espaço público é coisa que não se pode ainda saber. Resta imaginar que, num rompante de autocrítica, o DMLU aplique multas a si mesmo por permitir que os resíduos destinados a sua solução mágica, os containers espalhados pela cidade, re-amanheçam por toda a cidade, em aniversários repetidos.

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Talvez por apreço a essa espécie peculiar de poesia urbana praticada diariamente em Porto Alegre, alguns desses seus moradores “pessimistas” antevejam aí uma política pública fiasquenta e malcheirosa. O certo é que, se um dia o problema da limpeza urbana e do uso racional dos espaços públicos fossem realmente enfrentados, muita gente, “pessimistas” e “otimistas”, dispensaria com prazer a saudade desse tipo de poesia que existe apenas para infectar a paisagem e o olfato dos habitantes locais, sem esquecer dos visitantes que logo logo vêm aí comemorar a festa da Copa brasileira.