Arquivo da tag: Santa Margarida

Margarida de Antióquia

20/07 é o dia de Santa Margarida de Antióquia. Não é uma santa de grande devoção por aqui, mais no hemisfério norte. A história de Santa Margarida é milenar, data de cerca de 300 DC e transcorre no Levante, na Siria antiga, nos 15 breves anos do que teria sido a sua vida inteira. O seu primeiro registro é da época medieval, na Legenda Aurea, o célebre manuscrito de Jacoppo de Varage. O mesmo na qual a história de São Jorge, Santa Marta de Betânia, Santa Bárbara, São Silvestre, São Patricio e outros apareceram em contos escritos pela primeira vez, embora suas histórias fossem bem conhecidas na tradição oral e popular medieval. Naquele conjunto de incunábulos muitas histórias dos santos mártires se popularizaram na Europa cruzada e a santidade e a fé dos mártires serviu perfeitamente para encorajar os militares cristãos em sua batalha centenária contra os mouros. A história de Margarida, apócrifa, nem com iluminura contava.

A simbologia de Santa Margarida repete a de outros mártires que começavam a consolidar o cristianismo nascente durante o último século do império romano ocidental, entre a legalização de Constantino e o édito de Teodósio. Ela mesma teria vivido na época de Diocleciano. Nos séculos seguintes, contra a figura diabólica dos dragões e outras bestas, os mártires confirmavam o credo cristão para depois dissociarem-se na afirmação das primeiras monarquias absolutistas e não era incomum encontrá-los (os dragões) nos escudos e bandeiras da alta idade média, ali como uma lembrança da luta ancestral da qual emergiu (ou na qual foi erguida) a legitimidade das dinastias que governaram as monarquias europeias, cuja autonomia da influência da Igreja só foi se consolidar após a penosa revolução da qual resultaram a reforma, o liberalismo e a moderna noção de estado laico.

Mas há mais do que história factual na suposta (nunca comprovada) vida de Santa Margarida – há a história simbólica e o sacrifício do feminino que o cristianismo começou a empreender desde sua origem (só bem mais tarde com as ordens religiosas de mulheres). Em todas as histórias das santas mártires elas repetem o ciclo de Maria, mantém-se na pureza e depois são elas mesmas sacrificadas. Tornam-se exemplares e fonte de inspiração contra a malignidade e todas as suas tentações na forma dos dragões, normalmente tomados como metáfora diabólica mesmo. Ou meramente adversária..

E é incrível a forma como as mulheres vencem as bestas, se comparadas a São Jorge, por exemplo, que o faz de cima de um cavalo. As mulheres não raro entram em contato direto com os dragões, chegando mesmo a insinuar que seus poderes de persuasão poderiam domesticar o aspecto mais selvagem da besta-fera. Daí que, em muitos credos, a simbologia da luta entre razão x natureza, civilização x barbárie encontre um decodificação perfeita, exemplar, nos mitos cavalheirescos e, mais ou menos ao mesmo tempo, nas baladas populares. E, dessa aproximação, deve-se em muito o caráter diabólico e da contenção do corpo feminino, marcado pela simbologia fecundante, por isso maldito.

Alguns medievalistas, no entanto, e teólogos também, comentam como a Igreja abrigou em seu interior essa simbologia e a incorporou, tornando-se exclusiva portadora tanto de uma mensagem quanto da outra (o mal nomeado pelo bem é mal também), o que também explicaria a sua autoridade para executar obras em nome de Deus com violência, tais como o apoio a expansão de impérios coloniais e as tarefas inquisitoriais. Mas esse é um território muito complexo e, para mim, pouco claro. Dos meandros teológicos eu sei muito pouco, apenas que certamente não devem ser reduzidos a um maniqueísmo barato. Meu interesse é pelas alegorias e o que elas comunicam das crenças e crendices. Não os mitos, mas a mitologia cristã e pagã, e do quanto se confundem.

Na história dos dragões, nunca escrita, Santa Margarida é mais uma a esfolá-lo vivo com a fé imaculada. O dragão, que é o mal em forma de mal (logo não inteiramente mal), é o ser intermediário até o homem cristão e por meio dele será conquistada a purificação. Mito que atravessou as fronteiras no mundo da antiguidade, tanto no ocidente quanto no oriente, ele está na lenda de Siegfried, na de Uther, nos bestiários gregos e nas lendas hebraicas e sumérias. Está no símbolo da sabedoria das virtudes cardinais (até mesmo na Praça da Matriz, em Porto Alegre, sintetizada no brasão dos Bragança a quem Júlio de Castilhos sobrepujou), na alegoria política de Thomas Hobbes e também como domínio do imperfeito e do aspecto brutal do ser humano. Por tabela, das populações bárbaras por dominar e submeter, portanto, como o mal absoluto.

Margarida de Antióquia é a santa que, recusando-se a casar contra a vontade, converte-se ao cristianismo também contra a vontade do pai, um sacerdote de aldeia, por quem, por essa razão, é repudiada. Aprisionada, torturada ao extremo, martirizada, Margarida é a santa dos nascimentos e do bom parto, padroeira das gestantes e por meio de quem Jona D’Arc iluminou-se. No claustro, em solidão, encontrou-se (sem nenhuma razão aparente) com o mal na forma de um dragão e o subjugou (há versões apócrifas que dizem que fugiu da prisão dentro do seu corpo, num sacrifício carnal como querem alguns estudiosos do medievalismo), depois matando-o para renascer purificada e, por fim, morrer decapitada.

Na história cristã, virgem consagrada e inimiga ardorosa do paganismo. Na história dos dragões, que eu saiba, uma lenda só. Quase nada.. (carece de fontes)

* * *

Margarida de Antioquia
2017

Tenho lutado sem forças
contra o que nem posso saber.

Posso entender, no entanto,
o que de mim quer Margarida.

Com nome de flor do campo
e um olhar sereno que furta

o cansaço que dorme em meu corpo
quer me tirar a pele hirsuta,

despir-me até de minha alma,
levar-me embora da vida.

2

Para tanto, ela esculpiu-me
na pele de um monstro hediondo,

disse-me um sujeito tremendo,
implorou meu poder já desfeito

como se o quisesse portar,
parece, em seu corpo.

3

Eu, que buscava dormir
no profundo interior desta gruta,

despertei, como se dado a viver
na benção a mim conferida

pelos mais belos olhos
da alma mais quente dos prados

e fui encontrar-me com ela
para desde então ser banido

e do mundo dos justos aos ímpios
descer em poucos segundos.

4

Eu sabia meu nome dos livros,
mas, sem nunca haver pronunciado

uma queixa de dor ou lamúria,
ela o aprendeu de minha boca

como se eu que a tivesse chamado –
o seu tinha a beleza da vida…

5

Ela sabe e eu sei
que nenhum de nós deve morrer,

mas, de outra maneira,
a paz abandonará estes tempos

até um de nós perecer.
Lutaremos, assim deve ser.

6

Vestido das roupas mais velhas
para o seu corpo envolver,

pensei em levá-la comigo
a um ninho nos céus, um abrigo,

e em farrapos compareci
ao juízo e à ira do povo

parecendo um velho por fora.
Por dentro, o mesmo menino.

7

Minha pele é para ela envolver-se
e pensar que sou como ninguém.

Acima das nuvens, perto de Deus
ou ainda mais longe, além

de tudo e de todos, mas, do meu destino,
Margarida não quis saber.

E entregou meu corpo ao meio partido
no qual a levava comigo

aos mercados da Antioquia
onde nunca valeu um vintém.