Parem o mundo que eu quero filmar

Pessoas filmando a posse do papa

Sou dessas pessoas que têm fixação em números e séries estatísticas. Rankings também são legais e eu faço questão de usar meu tempo para entender as coisas que eles dizem. Na verdade, já há alguns anos eu venho procurando me tornar uma pessoa pragmática, voltada inteiramente ao mundo concreto e às ações sumárias. Chega dessa bobagem de cogitum ergo sun. Vamos aos fatos. E deles às ações, por favor, que ninguém aqui tem tempo a perder.

Estou lendo nesse momento a informação de que, em 2013, o incremento das vendas de smartphones chegou a 110% em relação a 2012. Poucos produtos tiveram um salto dessa proporção. A venda de automóveis, por exemplo, terá um aumento entre 1 e 3% em relação ao ano passado. Já a venda de TVs de LCD e LED caiu 7%. Parece que apenas o consumo de água aumentou numa razão semelhante ao dos smartphones. Não sei quais são os índices, mas a Global Footprint Network está dizendo que ultrapassou já a própria capacidade de renovação que o planeta pode oferecer.

Se em relação à água chegamos ao vermelho, em relação aos smartphones os dados indicam que estamos no apogeu. Mas será positivo que o mundo e o comércio possam saciar a sede por smartphones mas não possa garantir o consumo de água potável para 770 milhões de pessoas? Perigando chegar aos 3 bilhões em 2015, segundo diz a FAO em pessoa?

Voltemos aos números e sua frieza taxativa. Basta de interrogações. Afinal, de que serve interrogar sobre questões sabidamente sem resposta? Bons mesmo são os números, especialmente se o numerário na sua conta bancária lhe permite renovar seu status tech com a mesma avidez que os fabricantes anunciam seus novos modelos e escutam o tilintar das moedas.

Enquanto fabricantes e vendedores festejam o consumo de smartphones, a água escasseia e setores econômicos inteiros e indivíduos chegam ao vermelho econômico, o mundo segue sua jornada irrefreável. Ele e seus habitantes.

A vantagem evidente que os lucrativos e cobiçados smartphones trazem ao mundo nessa situação é de que ele, o mundo, pode agora ser registrado como nunca antes fora. É claro que a câmera embutida não irá transformar uma pessoa de forma automática num Glauber Rocha ou num Sebastião Salgado, mas eu pessoalmente não tentaria dissuadir ninguém quanto a isso.

Mesmo que as pretensões de seus donos normalmente sejam mais singelas, ao comprar o aparelho às vezes parece que uma mensagem subliminar embutida grava em regiões profundas do cérebro a ideia de que todo e qualquer momento é sublime, especialmente se for uma projeção do eu em relação ao mundo. O mundo por si só é algo mais ou menos desinteressante até que seja focado e clicado, mesmo que para ser visto num borrão ou em cenas indistinguíveis. Ou para não ser visto nunca mais, se é que isso faz alguma diferença.

Há muito sabe-se que o registro do tempo é um imperativo para os seres humanos desde a época em que os recursos para tanto resumiam-se em rabiscos nas cavernas, mas com a “vantagem” da portatilidade, há todo um universo a ser explorado. As possibilidades são infinitas. Você não pode perder nenhum momento. O tempo está esvaindo-se. Esse é o recado dos anunciantes dos apetrechos e até mesmo o físico e astrônomo Marcelo Gleiser parece concordar com isso. Na Folha de São Paulo, há algumas semanas, ele foi além ao afirmar que “os celulares tornaram-se parte integral de nossa existência, um apêndice tecnológico que nos define como indivíduos”.

Parece que a charada está decifrada, a função oculta do aparelho então seria a reconexão com o tempo, o mesmo tempo – este – que está permanentemente esvaindo-se. A questão é saber se dá tempo de tomar um copo de água ou se, ao nos reconectarmos à falível e biológica natureza, ainda haverá alguma água para beber.

Seja como for, as vantagens em preservar os recursos hídricos, como não obedecem ao círculo vantajoso do voraz mercado, são constantemente desprezadas. Isso não significa que deveriam ser desprezíveis, mas a ação pragmática de muita gente só onde chega é nesse estado de coisas, nessa situação. Como bom pragmático, me resta perguntar “fazer o quê?” Mas nem pensem que eu tenha a resposta. Sou pragmático, bobo não.

Além de ler os índices acumulados e rankings anuais, esses dias topei com o trailer do novo filme da série “O Planeta dos Macacos” (trailer aqui). Desde criança essa série vem me assombrando, mas o espanto não se deve tanto à imagem da ruína da Estátua da Liberdade nem pela maquiagem dos macacos (as máscaras antigas serão obviamente sempre insuperáveis), o que me assombra é a mera possibilidade de que a humanidade simplesmente possa perder a vez no planeta. Uma cena do último filme da série, na qual o líder Caesar angariou o maior atributo do homem, a linguagem, mas justamente para dizer “não”, já tinha me feito perder a respiração. Na época eu escrevi um pequeno texto sobre essa cena para mim antológica, está neste link.

No novo filme, que estreará no mesmo mês da Copa brasileira e do aniversário de um ano das manifestações populares que pintaram de catapora o mapa e a face do Brasil, os macacos entraram finalmente em guerra com os humanos. Eu não imagino como o roteirista do filme vai resolver a pendenga, se vai armar até os dentes os parentes primatas ou jogá-los num banho de sangue. Se estivesse em seu lugar, eu faria com que os humanos depusessem seus smartphones em troca de umas frutas suculentas e umas gotas de água pura. E vamos às árvores que o ano novo vem aí e façam o favor de seguir o conselho dos vendedores dos “smarts”, não há tempo a perder, nem num texto “pragmático” como este.

Uma consideração sobre “Parem o mundo que eu quero filmar”

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