Prefiro não começar qualquer conversa, nem escrever qualquer coisa, partindo exclusivamente de uma ideia negativa. A negação é um sentimento destrutivo (e, sem dúvida, necessário), mas desde há muito tempo entendi que é sempre mais interessante chegar a ela com alguma carta na manga. Destruir um conceito, uma noção qualquer ou atacar uma realidade sem apontar uma alternativa é, ainda por cima, motivo de rasteira tentativa de objeção, principalmente no terreno arrasado que se tornou o debate público e político brasileiro nos últimos anos.
A pergunta que normalmente se faz é: o que há de melhor para colocar no lugar disso que está atacando?
A resposta, aqui neste caso, é simples, porque meu assunto não é a disputa eleitoral por cargos, mas justamente a forma de ocupação dos cargos públicos após o período eleitoral. Isso diz respeito não somente a uma cultura partidária secular no Brasil como à administração pública de um modo geral. O dado recém revelado pelo IBGE, de que 28 novos cargos comissionados – isso considerando apenas o nível estadual – são criados diariamente no Brasil não poderia ser mais explícito.
Então, neste caso, a resposta àquela pergunta é: ocupe-se os cargos públicos exclusivamente por pessoas habilitadas por concurso público. Simples assim. Alguém se atreveria a fazer alguma objeção nesse sentido?
Atacar a cultura política do cargo comissionado não é entretanto tão simples. Muitas pessoas pensam que essa forma de ocupação da administração pública é algo inevitável, inofensivo ou até mesmo natural. Afinal, no Brasil, teria sido sempre assim, como um tipo de mandamento sagrado. Ou uma condenação a qual todos foram convencidos a simplesmente aceitar e conformar-se. É assim, é o que é dito. Pior ainda é ouvir que quem reclama é invejoso. Claro! Que dúvida!
Não bastasse uma proliferação descontrolada de apadrinhados de todo o tipo (afinal a praga atinge a todos os poderes), a legislação administrativa é tão burocratizada e foi tão permeabilizada que permite inclusive que pessoas nessas condições assumam postos de comando na administração pública. Quem há para atacar o desejo imperioso dos poderosos “gestores” que usam o poder público como se a despensa da própria casa fosse? Os tribunais de contas, “selecionados” politicamente? O STF, pinçado a dedo pelo executivo?
O que já é grave por si só então se ramifica numa rede de “gestão” onde o ato executivo, este sim, é tarefa do concursado subalternizado, quando não do estagiário ou do licitado a terceiros. É tanto gestor e cacique que, somando todos, sua população excederia a própria população indígena dessa terrae brasilis. Lamentavelmente, não é ao custo da troca de espelhinhos que esse contingente é formado, mas da sangria corrente e histórica dos cofres públicos.
Indiferentemente aos partidos políticos que ocupam o poder e suas supostas diferenças ideológicas, o efeito final, por tudo que se viu até agora, tem sido praticamente o mesmo. A lógica de ocupação e distribuição de cargos públicos parece até fixada em lei, de tão coerente que é consigo mesma, mas nenhuma lei existe nesse sentido, apenas uma vontade política uniformemente monolítica. E isso acontece somente porque aparentemente ninguém vê nisso um problema, mas um amplo mar de oportunidades. Ou vê? E, se vê, que medidas tomou?
A essa altura da história brasileira, evocar um sentimento ético – mesmo que somente nesse aspecto exclusivo – parece até um delírio sem sentido. Evidentemente qualquer pessoa pública que argumentar nesse sentido será denominada de “moralista”. O fato é que a moralidade administrativa é um princípio tão genérico e abstrato que ninguém dá por ele e negligenciá-lo sistematicamente não é senão uma forma de legitimar outra prática política. Uma mais versátil, vamos dizer, no impeditivo do uso concomitante dos termos “política” e “moral”.
Então, talvez, pudesse dizer-se que é um problema de gestão pública. Que não há outra forma de fazer-se a máquina pública funcionar. Há. Extinguir cargos comissionados pode ser um bom começo de alguma coisinha. Mas os “gestores” e sua rede de “subgestores” não têm por que ver isso com bons olhos. Por isso, quando vejo protestos visando a “ocupação dos espaços públicos”, sinto uma pontinha de tristeza, porque o espaço público já está ocupado e ninguém precisou nem estudar por isso, simplesmente se o tomou por assalto, sem uso de máscaras, em plena luz do dia e, maravilha das maravilhas, ninguém é culpado ou preso por isso.