Joyce Carol Oates e a reivindicação do mal

Depois que li “Levo você até lá”, romance de formação semiautobiográfico de Joyce Carol Oates, fui tomado por uma febre oatesiana. O que me passava pela frente com o seu nome eu fui lendo, inclusive alguns livros que ela tinha assinado apenas a introdução, como o Jane Eyre de Charlotte Bronte e os poemas de “American melancholy” que não sei porque não temos uma edição traduzida no Brasil.

Sempre que eu mesmo me vejo na situação de apensar “escritor” ao meu nome eu lembro-me dela e dou uma vacilada. Oates tem uma produção impressionante. Há anos em que ela publicou três livros, entre novelas e contos de sua autoria ou de seus dois pseudônimos. Livros que são calhamaços, de 500 páginas para fora. Não sei quantos livros seus foram traduzidos e publicados no Brasil, mas me parece que quase duas dezenas de uma obra com mais de 120 títulos.

De longe, “A fêmea da espécie” é o livro com a capa mais repulsiva que tenho por aqui. Se a ideia era transmitir uma figura feminina pérfida, no entanto, tenho que admitir que ela é perfeita. A diagramação também é estranha, espremida em margens de, no máximo, 1 cm. Em cada conto, uma pequena ilustração em preto e branco meio borrada. Parecem imagens de carimbo mal carimbado, com tinta sobrando ou faltando.

Eu não tenho os demais livros da “Coleção Negra”, pela qual saiu o livro em 2008 (nos EUA saiu em 2005). São livros noir e hoje, em face da questão étnica, duvido que a Record usasse o termo traduzido. E o livro mesmo traz uma abordagem pouco convencional do feminino que é mais publicado contemporaneamente. Não é um libelo, é um livro de contos e neles as mulheres surgem quase sempre num papel ativamente maligno, amoral ou tendendo ao criminoso.

Não sei exatamente que programa tinha Oates nesse livro, se desejava combater ideias ou, enfim, situações comportamentais que vivia nos EUA na época em que os contos foram escritos, mas é um livro muito ousado e inquietante. Feminista? Me parece que sim, principalmente por assumir a integralidade do caráter humano das personagens femininas, com as violências recebidas e também as praticadas. Ou o que impediria as mulheres de se tornarem tão pérfidas quanto os piores exemplares masculinos? Para Oates, como se vê em seu livro, nada absolutamente.

Nesse livro, nada disso de um desfile de boas condutas e práticas exemplares. O que se encontra são mulheres, às vezes meninas, envolvidas em ardis, desejos mórbidos, impulsos e condutas psíquicas que Oates, uma autora que costuma enfrentar o psiquismo de seus personagens de forma desarmada, não faz questão de dissimular. Mesmo no limiar da contravenção e do crime, nos contos do livro as personagens são exploradas de forma que não se apele à simpatia do leitor, mas se respeite suas personalidades, por mais repulsivas que possam nos parecer.

Em alguma medida, o livro é mesmo uma coleção de alegorias do mal pelo mal, do mal sem necessidade nem atrelamento causal. É como se a expressão “mal necessário” em seus contos encontrasse uma extensão diacrítica e o mal, desnecessário, ainda assim pulsasse e justamente na “fêmea da espécie”. É uma radicalização extrema do desejo de igualdade muito menos maniqueísta e esquemático que os livros-denúncia que tem fartados as prateleiras das livrarias nessa época em que estranhamente a qualidade da leitura determina a qualidade da escrita.

Livro de outro tempo, esse, no qual os lugares sociais estão embaçados de forma muito realista. A argentina Ariana Harwicz (da “trilogia do amor”) deve ter devorado o livro muitas vezes. A capa é mesmo horrorosa, dela eu ainda prefiro “A filha do coveiro” e “Levo você até lá”, mas é um belo livro. Que não se julgue-o pela capa.

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