Todo o mundo já ouviu alguma vez daquela pessoa que escreve “por necessidade” (já disseram isso a meu respeito, inclusive). O que se quer dizer com isso para mim é uma coisa meio insondável. De que necessidade estamos falando? Editorial? Comunicativa? Confessional? Financeira? Uma só necessidade? Duas? Muitas?
Não há como saber. Porém de alguma forma que também não compreendo completamente, me parece simples distinguir um texto literário escrito “por necessidade” daqueles escritos por outros impulsos. Não leva muito tempo. Na ficção, até ao final da segunda página isso se esclarece por conta própria. Na poesia, me parece que ainda no primeiro fôlego, custe isso um verso, uma estrofe ou o poema inteiro. Há poemas (raros) que se vê que foram escritos sem respirar. Ou pelo menos parece que se vê.
O instrumental é simples e totalmente intuitivo, já que as ferramentas disponíveis ao exame do escrito são sempre superficiais e os escritores são artificiosos ao extremo no sentido de criar jogos de espelhos nos quais tanto mostram-se como ocultam-se ou deliberadamente disfarçam-se. Às vezes, kafkianamente, fazem tudo isso ao mesmo tempo. De qualquer modo, parece haver para cada pessoa leitora uma chave para além das chaves. A chave mestra, a chave micha com que cada qual invade o literário para reconhecer o humano da criatura.
É um segredo para além do lacre. Não fosse isso viável ou desejável, desnecessária seria toda a atividade literária. Bastariam o texto dissertativo e o informativo, mas mesmo o mais lúcido texto analítico nos pesa como um rochedo – e o inacreditável para mim é que muitos escritores de literatura (e até de poesia) parecem também aspirar a essa condição, de que seu texto se consolide e seja o mais direto possível, indubitável, recitativo.
Isso me parece ser mais ou menos como a abolição do mistério da poesia: a escrita sem necessidade. É como se fosse uma arte tomada dos bagaços depois que o fruto morreu.
No frigir dos ovos, nem uma emoção estética se repete. Garantias? Nem uma. O que a alguém parece genial a outro parece apenas insuportável. E tematicamente há quem se comova mais com a poesia amorosa, outros com a ideia de Deus, com a natureza, a vida urbana, etc etc etc.
Mesmo assim, o que me parece é que a emoção estética individual seja mero prolongamento de expectativas prévias, coincidente com crenças, ideologias, etc. E que rejeitamos a diferença também numa atitude instintiva e irracional. Antipatia? A outra face da simpatia.
Mas em todas as entrevistas com escritores que já li, nunca encontrei uma em que fosse indagado à pessoa a razão pela qual ela faz o que faz. Parece implícita a necessidade, curiosamente expressa numa desnecessidade.
Mesmo assim, a única vantagem aparente, ou diferenciação, da arte produzida sob o império da necessidade é que ela entrega mais nitidamente do autor do que, por exemplo, um complexo de racionalizações. E se há uma curiosidade superior no ser humano é a de reconhecer no outro a sua semelhança. Há quem desista das pessoas nesse intento e dirija-se a Deus (ou a ninguém), mas, ao contrário da religião, que isola e serializa as pessoas, a literatura é um poderoso artifício de conexão. Basta ver o quanto e como se reúnem os escritores em torno aos seus interesses comuns. Também isso parece ser uma espécie de necessidade. Todos procuram mais ou menos declaradamente aqueles que compartilham seus códigos, valores, repertório, etc.
Mas a necessidade que move escritores é também objetiva, não apenas um desejo de transbordo expressivo. Tornar a pessoa e o self compreensíveis me parece ser uma grande força mobilizadora. Isso é que diz Hannah Arendt em ‘A condição humana’, entre muitas outras coisas. Ela, que dizia pensar melhor por escrito, prova talvez de que a elaboração verbal escrita seja mesmo um dos pontos mais altos da inteligência, pensava também que os sentimentos humanos não sejam narráveis. Essencialmente, ninguém pode compreender tudo o que há e se passa com o outro. Pode compartilhar. E pode também não compartilhar.
Essa talvez seja a razão pela qual escritores usem bastante as redes sociais. Como se pudessem encontrar eco nesse vale tomado de gente, já que o declínio da leitura em livros é meio que evidente (e até certo ponto uma experiência incomunicável). E até escrever – por alguma necessidade – coisas que pareçam desnecessárias e justamente a respeito da própria necessidade.