Epílogo

Não são muitos a essa hora na rua, ainda mais que maio já exulta um frio que emerge das superfícies, por tudo… Brota das gretas e das rachaduras da tinta uma espécie de suor. Os tijolos suam do tanto que fazem em suportar as vidas em seu interior. Aqui onde estou não há ninguém, mas alguém ainda mantém um fogo aceso. Sinto o ardido da lenha verde queimando e exalando o perfume de uma lareira ou um fogão a lenha aceso já por um desses velhos madrugadores. Mas, na rua, ninguém. A cerração é uma nuvem que desistiu de voar, a mãe disse um dia, e a essa hora há como uma fusão das duas neblinas, a da noite e a do dia. O Fernando não está aqui como disse que estaria e em lugar nem um me parece haver alguém conhecido a quem possa mostrar o recorte de jornal que trago no bolso traseiro da calça jeans. Uma folha do Correio do Sul dobrada em oito ou doze partes, uma imagem borrada ali dentro, a face imberbe de um Alexandre como eu o conheci. Não pode ser a mesma pessoa, eu penso. E por isso preciso tirar a limpo essa informação com alguém. Morreu mesmo? Mas isso é verdade? Quando foi? Alguém foi a esse velório? Era ele mesmo? E se ele botou alguém no lugar dele? Um cupincha que se prestasse… E se ele fez isso para fugir ao Uruguai, Bolívia, o raio que o parta? Quem é que numa hora dessas pode andar por essa maldita cidade e me dar certeza? “Morreu, sim”, quem vai me dizer? Viu a certidão de óbito? Doente de quê? Morto por quem? Pensa bem, tu estás falando do Alexandre e ele tem tantas vidas como um gato, um gato vadio que ninguém segura ou aprisiona. O Alexandre, eu quero dizer, é ladino e felino, o filho-da-mãe, e só vocês mesmo, que são burros, acreditam nas lorotas dele. Eu sei bem que ele está solto a essa hora. Aonde? Que sei eu? Na zona, num boteco fuleiro, na cama do prefeito, o Alexandre ele pode estar onde ele bem entender e é por isso que eu vim aqui, que de outro modo não viria. Não tenho interesse nesse lugar depois da morte do pai e de que consegui finalmente levar a mãe comigo. Vim porque me deram a certeza de que era verdade, mas eu não acredito em ninguém que ainda viva aqui. Este lugar sempre foi um poço de mentiras, meias verdades, um precipício de ilusões dementes. Ali adiante, onde morei, a mesma casa. Se olho ao sul, só o vento de sempre, anavalhando o que encontra pela frente. Pela noite, ruínas de memórias revestem a cidade que parece a mesma, mas não há mais ninguém aqui se ele morreu. É um lugar propício onde morrer de tanta paz, de tanto tédio, de tanto nada para fazer. Eu vim buscar quem me confirme da morte desse traste humano e nem o Fernando, que gostava de mim, consegue estar ainda aqui, ele que resistiu mais que todos nós. Escorado nessa mesma parede, ele fumava lentamente e olhava adiante como se pudesse tocar outro destino com os olhos. E raspava as palmas das mãos como se fosse dizer algo surpreendente, mas só se queixava do frio. “Que frio é esse?”, indagava num discurso pró-forma, sem esperar resposta, sem esperar nada. Ao lado dele, não me intimidava o Alexandre, porque nesse caso ele é quem se intimidava. Nem ao menos o Fernando aqui, claro que não… Ninguém que parecesse conhecido, somente a figura de um Alexandre pálido no bolso das calças. E nem ele poderia me salvar mais de estar aqui, porque nunca me deixaria escapar, pegar a estrada de volta e fugir. Espero que venha de uma vez o dia antes que a noite me deixe também sem alma.

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