Que o Rio Grande do Sul é lugar de pouca lenda ninguém desconhece. Tira-se o boitatá, o negrinho do pastoreio e Sepé, ou seja, Simões Lopes Neto, sobra praticamente nada. A pobreza imaginativa é acachapante e o excesso de realismo é a regra.
Visando suprir essa lacuna é que o Paulo Damin deve ter escrito “A lenda do corpo e da cabeça”. Será que foi? Eu acho que foi isso. Ele deve ter pensado: “vou bagunçar isso aqui de uma vez” e se lançou ao teclado.
Bom, não sei se foi mesmo assim ou se ele fez um uso prévio de psicoativos (ou graspa), mas que há no texto indícios de alteração de consciência, isso há. Estou por ser desmentido, mas fica o registro dessa dúvida.
Não é uma história normal, de gente normal, essa que agora virou livro e antes, por outra espécie de insanidade, os editores da Parêntese haviam publicado como um folhetim. Como é que eles se animaram? Eu fico pensando onde é que eles estavam com a cabeça.. Será que foram ameaçados de decapitação e se renderam? Fica o registro de mais essa dúvida.
A escrita mediante psicoativos (ou graspa), como é sabido, faz o autor ficar meio hiperconfiante. A adrenalina brota dos olhos e ele vai, naquele surto, se recompensando das loucuras que vão saindo da sua mente aos borbotões por outras loucuras ainda mais loucas. De minha parte, eu fico só imaginando as expressões faciais do autor ao escrever barbaridades que nem me animo a reproduzir aqui.
Todavia, se não foi do uso de drogas, decerto tudo aquilo ali provém de alguma técnica bretoniania. Um descompromisso total com a realidade no qual vai se contando a história de um corpo decapitado cuja condição, demente in extremis, não impediu que continuasse uma aventura com ares medievais. Isso o corpo. E a cabeça remanescente, imagem depositária da razão, ainda é mais lisérgica que o corpo e tem conversas animadas com os cursos d’água (isso mesmo), que também falam pelos cotovelos (?!).
Ao encontro de caçadores, bruxas, rios que conversam, sombras despegadas do corpo, cabeças navegantes e um bandoleiro com mais de uma centena de anos, o leitor logo percebe que está lendo um texto desinteressado (modo educado de dizer louco). Aqui o Paulo não traz uma fábula moralizante ou uma metáfora poética rebuscada, parece apenas ter-se deixado levar pelo prazer ancestral de contar uma história no tom mais coloquial, ainda que sem muito pé nem cabeça..
Mas exatamente por isso a gente se deixe contagiar fácil e rapidamente envereda pelas desventuras algo medievais e pelo insólito dessa lenda meio trash contada num modo de dizer absolutamente espontâneo. E isso, vamos combinar, é uma raridade entre os escritores destes dias tão, tão.. Me falta a palavra.. Ah, sim. Tão cabeçudos..
Pois o Paulo conseguiu me fazer rir como um livro não vinha podendo fazer há muito tempo. Eu, que estava por comer uma bergamota, até esqueci da fruta ali na mesa, no solzinho. Mas vou lá buscar que é a capaz da cabeça avulsa cruzar ali, roubar o fruto, e eu ainda por cima ter de testemunhar alguma coisa.
Não vi nada, não sei de nada, só que o livrinho é imperdível.