Andei ontem no Centro. Sempre que posso, evito andar por lá. E falho sempre. Não sei que tipo de coisa maldita têm aquelas ruas e prédios acanhados, aquela gente sem viço, roupas surradas e comércio decadente que me botam uma tristeza profunda na alma. Parece que estão ali num mostruário de sobreviventes. Por lá eu não penso nunca em humanidade, em sociedade, essas abstrações. É cada qual uma pessoa só e ninguém, absolutamente ninguém, parece-se aos demais. A diversidade verdadeira é uma condição sobre a qual não se poderia abstrair, ela se esboroaria a menor palavra dita ao acaso. Palavra com erro crasso na pronúncia, palavra desviada das conjugações e sotaque indefinido. Não subentende-se nada nas pessoas que andam por ali. Consigo imaginar de que vida vêm, e o destino que terão ao final da sua linha de ônibus. Todas são um livro imenso, ainda por ser escrito. Passo na portaria de um prédio art noveau de uma demolição intacta, que o tempo roeu e desgastou, e o porteiro me examina como se eu fosse entrar ali. Teria algum negócio a saldar, uma joia a empenhar, uma dívida para cobrar ou quitar. Mas não era eu. Eu seguia andando e passei por um negócio de árabes, mulheres usando o hijab. E coreanos vendendo quinquilharias eletrônicas duvidosas. E sudaneses com tapetes estendidos, como seus ancestrais faziam do outro lado do oceano. Seguranças conversavam à frente de uma loja, contando piadas ou aventuras para a atenção dos outros. Quem por ali passasse não seria revistado. O Centro não exije revista, basta que não se destoe muito. Subo à minha consulta de última hora, de um médico que achei por acaso e atendia sorridente quando toda a cidade já fechou as portas, emigrou. O consultório ameno com a música de um saxofone antiquado, eu poderia ficar ali por vários dias. Mas ele pingou uma gota de colírio em meu olho e quando eu vinha de volta nem notei que era quase Natal. A decoração natalina no Centro é perene e seus melhores produtos amanhecem enguiçados. Há uma graça nisso e um tácito acordo de quem compra um presente desses a uma criança. É como se fosse dito “aproveite bem”. É sua única noite de festa. As demais serão iguais, idênticas às anteriores. Uma caravana a qual todos sabem ir. É o que há de ser feito: atravessar as ruas e o tempo de cada um, tempo intransferível, inescrutável sob as retinas. Numa esquina, encontro um táxi e sinto que faria bem se fugisse. A sensação é a de ter colocado o pé numa ratoeira. És o rato, pensas o quê? O que és? Um rato fugindo pelos bueiros a que avança a água subterrânea. O Centro é o disfarce perfeito de uma cidade, e também sua maior nudez. É bom estar aqui. É mau. As sombras dos prédios não permitem sair. A secretária do médico perdeu a casa na enchente e até hoje dorme no consultório, improvisada. Este homem amistoso deveria ser o prefeito, ela conta à substituta do plantão. Neste ano vai viajar ao interior, passar o réveillon com a família. A outra mulher sorri e nada diz. Essa é a verdadeira e única consciência: ouvir. Ouvir o silêncio da cidade, o que ele diz. E também o que ele não diz.