Arquivo da tag: Aureliano de Figueiredo Pinto

Um inédito Aureliano de Figueiredo Pinto

Artigo publicado na 10ª ed. da Revista Sepé

Possivelmente não exista na poesia rio-grandense livro tão inédito quanto foi Itinerário – poemas de cada instante (1998), de Aureliano de Figueiredo Pinto.

Aureliano não apenas não o publicou em vida como tratou de garantir que o caderno de manuscritos não fosse conhecido até que ele mesmo e sua esposa não vivessem mais. Mesmo assim, ainda levou cerca de 40 anos mais (Aureliano morreu em 1959) para que o filho entregasse os originais para publicação, aos cuidados do Prof. Carlos Jorge Appel, da editora Movimento.

Na página frontal do manuscrito, uma misteriosa dedicatória rasurada indicando a quem o livro seria dedicado, mas cujo conhecimento parece ter ficado mesmo restrito à família. 

Se a informação perdeu-se ou se desvaneceu no tempo, o mesmo não se pode dizer dos poemas do livro. Ainda assim, ao contrário dos outros livros de Aureliano, até hoje Itinerários não teve público para uma segunda edição. Isso talvez se explique um pouco pela temática rural dos outros livros que, no Rio Grande do Sul, até há bem pouco significava a garantia de um bom público leitor. Os versos de Romances de Estância e Querência (1959) e do póstumo Armorial de Estância (1963) foram popularizados por diversos cantores e folcloristas, especialmente nas gravações de Noel Guarany, em 1978, no bojo do movimento nativista, fortemente inspirado, aliás, em sua poética.

Romances de Estância e Querência foi o único dos livros que Aureliano chegou a ver editado; saiu pela Globo e o filho levou até São Paulo, onde ele buscava recursos e tratamento, os primeiros exemplares para que o pai conhecesse. Memórias do Coronel Falcão é póstumo (teria sido escrito no final da década de 30) e foi publicado em 1973. Acabou sendo reunido aos demais romances realistas de 30 publicados à época em que foram escritos, como Sem Rumo de Cyro Martins, Xarqueada de Pedro Wayne e Fronteira agreste, de Ivan Pedro de Martins.

Quando publicado na década de 90, não se imaginava que o médico e intelectual discreto que Aureliano foi tivesse produzido versos daquele qualidade lírica e intensidade erótica. Primeiro, seria de pensar que, caso houvesse material inédito, seriam poemas que continuassem a temática dos seus dois outros livros anteriores, com motivos rurais. Segundo, a guinada lírica um tanto quebra em pedaços o estereótipo de que um poeta que tenha se celebrizado pela “cor local” não possa alcançar os temais universais, como o amor, o erotismo, reflexões existenciais quanto à vida e finitude humanas.

Como em vida Aureliano não esteve em busca de publicação ou reconhecimento e sua obra seja praticamente toda póstuma, a crítica literária o alcançou tardia e parcamente. Basta dizer que as duas mais extensas apreciações publicadas ainda são as mesmas dos anos 80, quando o falecido escritor Luiz Sérgio Metz realizou e publicou para a coleção Esses Gaúchos, da editora Tchê um livreto dedicado a ele, em 1986, e a professora Helena Tornquist produziu para a coleção Letras Rio-Grandenses, do Instituto Estadual do Livro, um caderno especial, em 1989. Ambos os trabalhos têm o mesmo titulo: Aureliano de Figueiredo Pinto.

Apesar disso, nos também já anosos volumes da história literária do Rio Grande do Sul seu nome comparece muito mais associado à poesia regionalista. A despeito de ter uma “realização grande”, conforme o assinalado por Luís Augusto Fischer, os poemas líricos de Itinerário não contam nos mais difundidos livros de história literária com uma apreciação correspondente, bastando que se o situe entre o simbolismo ainda muito praticado no Rio Grande do Sul dos anos 30 e as inovações formais modernistas que ele aproveitou mais, curiosamente, na poesia de inspiração rural.

Como Itinerário vem a público no final da década de 90 e tais trabalhos são praticamente da mesma época, essa parte de sua obra permanece mal reportada. No tocante à sua lírica, Aureliano se arroja em conteúdo ao mesmo tempo que se contém nas formas mais tradicionais da poesia simbolista e neo-parnasiana. Um dos mais extensos artigos produzidos a respeito da literatura de Aureliano, publicado em 1974 pelo Prof. Guilhermino Cesar, por exemplo, ignora a existência dos poemas de Itinerário. No artigo, Guilhermino reconhece o caráter reservado do poeta e lamenta que não tivesse até então se registrado em sua obra “uma descida mais vertical à paixão do homem”.

Os versos a seguir demonstram bem que o poeta, afinal, cumpriu o desejo de Guilhermino, porém de forma inédita, sem que o mesmo pudesse sabê-lo:

XI

A água que eu bebo tem o gosto do teu beijo;
a manhã lembra a luz pagã do teu sorriso.
Sugere a névoa o vago olhar, longe, impreciso,
de quando aplacas, fina e langue, o teu desejo.

A asa que passa, no céu alto, em vôo andejo,
lembra o teu gesto arisco em sutil sobreaviso.
E, na árvore alta e fina, e na flor do paraíso, :
tendo-te toda em mim, sempre em tudo te vejo.

Bruna e pálida, alta e trêmula, os cabelos
cheios da escuridão das noites em que amamos!
— Sinto-te no meu sangue em tumultos e apelos.

Em tua leve silhueta o mundo se resume.
E quando, sem encontrar-nos, nos buscamos,
ruge em minha alma em sombra a alma do teu perfume.

Em que pese sua aparição apagadiça, a obra de Aureliano vem sendo estudada mais ou menos diretamente. Em sua maior parte, seu nome é citado co-lateralmente em trabalhos que problematizam o romance de 30. Por ele referir-se mesmo em sua lírica a elementos de sua vivência em remissivas geográficas (como ao “vento pampeiro”) parte dos poucos trabalhos dedicados a ele notam em sua lírica póstuma a marca indelével do regionalismo, como uma chaga fosse, como se isso anulasse o alcance universal de sua visada lírica, a meu ver uma apreciação contaminada de preconceitos.

Embora nos anos em que estudou Medicina em Porto Alegre tenha tido um convívio próximo aos escritores que viveram o fervor modernista rio-grandense, nos cafés do centro e em torno da Livraria do Globo, Aureliano logo que pode retornou à Tupanciretã e lá estabeleceu-se como clínico-geral, interrompendo as publicações que fez por meio de periódicos como a Revista Kodak, que circulou entre os anos de 1912-1920.

Paradigma de um autor verdadeiramente reservado, Aureliano de Figueiredo Pinto por muito pouco não passou completamente despercebido pelas gerações suas posteriores. No caso, ele teve um dos filhos que se preocupou em não deixá-lo cair no oblívio completo e a sorte de um editor preocupado em recuperar e conservar a memória literária do Rio Grande do Sul sem qualquer preconceito temático, linguístico ou de procedência.

Instinto e estigma no regionalismo

Artigo publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo, 20/03/2021.

Um risco que os escritores nascidos nos vizinhos Uruguai e Argentina nunca correrão é o de abordarem a sua população do interior e verem suas obras guardadas na gaveta taxonômica do “regionalismo”. Para os escritores do Rio Grande do Sul, isso poderia até suscitar inveja se o contraste não constituísse um espelho privilegiado pelo qual se pode notar o distanciamento cada vez mais radical que é travado no campo literário quanto ao impasse da representação rural na literatura rio-grandense, seus temas e dilemas.

Para o Rio Grande do Sul, trata-se de uma caracterização inescapável cujos personagens vão sendo obliterados na literatura aqui produzida. O fenômeno não é recente, vem de algumas décadas, e o desaparecimento paulatino de enredos interioranos ou rurais na ficção rio-grandense se acompanha por outros fenômenos, como a preponderância do meio audiovisual no lazer urbano desde os anos 60, a hegemonia tradicionalista da representação popular e o crescente deslocamento para temáticas cosmopolitas, com o recalque da representação rural aos conteúdos históricos.

Esse desvio vem acontecendo numa perspectiva conflitiva na qual a literatura local ora se debate entre o acesso ao “instinto de nacionalidade”, conforme proposto por Machado de Assis em 1873, ora em sua refutação pela identificação com a literatura do Prata. Considere-se ainda que as relações políticas entre província e metrópole desde 1835 nunca foram das melhores. Tudo isso nunca competiu, todavia, em que os autores rio-grandenses procurassem alijar-se do sentimento nacional, apenas que desejavam manter seus traços culturais e históricos a salvo de uma alienação que, ao fim e ao cabo, foi confirmar-se um século mais tarde, no desenlace contemporâneo desse processo.

Presente desde quando Alcides Maya defendeu na Academia Brasileira de Letras a tese do “federalismo literário”, tal ruptura nunca se confirmou e, no decurso do séc. XX, produziu-se aqui uma literatura motivada na vida rural, do interior, e outra cosmopolita, sediada nos bairros de Porto Alegre, conformada por interioranos emigrados. Apesar de que se consolidasse uma crônica de costumes de tom saudosista, no plano editorial a convivência era pacífica e a redescoberta da obra de Simões Lopes Neto elevou a um patamar superior a dicção rio-grandense, descolando-se a partir daí do criollismo platino.

Nos anos que antecederam a Segunda Guerra, ao passo em que se confirmava um campo literário pelo empenho da Editora Globo e seus articuladores, o eco modernista se fez presente numa geração (a de 30) que apenas mais tarde seria revista. No longo período entre as décadas de 20 e de 60, o apogeu e o ocaso da Globo confundiu-se com o próprio destino da literatura rio-grandense e a fixação do seu “regionalismo” se deu com edições de luxo e populares de autores que inventariavam o seu “instinto regional”. A Coleção Província, sucesso comercial sem precedentes, foi o casamento perfeito de uma necessidade de afirmação identitária, autores produtivos e sistema azeitado.

No entanto, logo a confluência da expansão da televisão, a crise da guerra fria e o interesse crescente da crítica e dos estudiosos em desconstruir o discurso nacionalista vitorioso encontrou no ethos da geração de 60 o ambiente perfeito para frutificar em crise. De posse do instrumental estruturalista e materialista, conforme relembra Alfredo Bosi em Entre a literatura e a história, intelectuais empreenderam a recuperação da crítica presente na geração de 30: Cyro Martins, Pedro Wayne, Ivan Pedro de Martins e Aureliano de Figueiredo Pinto. Suas obras, tributárias da geração de Maya e Simões, revelaram o modernismo rio-grandense com uma forte tintura realista e denúncia social, bem ao gosto dos anos 60.

Nesse momento parecia claro que os autores locais haviam criticado a sociedade de uma forma muito menos idealizada e ufanista como hoje costumam se interpretar o seu trabalho. E mais: mesmo Maya e Simões, os dois principais sustentáculos da estética sulista, haviam mantido o olhar crítico para as condições sociais e políticas pelas quais o poder se organizava no Rio Grande do Sul, numa literatura que o professor Antonio Hohlfeldt veio identificar como mais centrada na figura do peão que na do estancieiro.

Ainda assim, por uma pecha inarredável, os escritores rio-grandenses muitas vezes são localizados no que seria um regionalismo agônico. Porque duvidou-se do afastamento total da literatura rio-grandense em relação ao enfoque proposto no regionalismo romântico, a própria designação adquiriu, pelo menos no caso gaúcho, certa conotação pejorativa. E seus autores também. É algo complexo, pois, se analisada na materialidade, nem Érico nem seus antecedentes colaboraram no recalque ou sublimação dos traços sociais da população. Pelo contrário, basta que se os releia para verificar o quanto trataram seu tempo de forma crítica e realista.

Um pouco por animosidade externa ou pelo crescente desejo por um “instinto de globalização”, aos poucos o que era particularidade, um “regionalismo” inocente, foi se transformando em estigma e o tipo humano da região perdendo a aura heroica para dar vez a uma série de tipos cômicos que a popularização de certa vertente tradicionalista contribuiu muito em consagrar, contagiando o métier literário.

Com a crise cultural fixada na universidade, a presença de um movimento cultural hegemônico e uma caracterização desfigurada, transformada em estereótipo, o pior do homem do campo passou a ser dinamizado como essência representativa e todos os preconceitos afiliados, como o machismo, sexismo, misoginia, etc., elevados à condição de um “novo” pitoresco. Já num cenário de intensa exploração midiática, como um produto cultural exótico sobretudo ao Brasil, a literatura rio-grandense viu-se na situação de obliterar a imagem às vezes reduzida ao grotesco do gaúcho rural. Exemplo dessa caracterização se pode ver no Analista de Bagé, personagem de Luís Fernando Veríssimo e sucesso comercial dos anos 80.

Da década de 60 em diante, em que pese o esforço de casas como a Movimento, a Mercado Aberto, a Tchê e a L&PM, os motivos rurais ou decaíram para o segundo plano ou foram preteridos por enredos desenraizados. Alie-se isso à perda sistemática de relevância da região fronteiriça na economia local e a migração simbólica para a zona industrial e serrana, o panorama literário local fez apenas seguir as inclinações de mercado, excetuando-se os momentos que representam inflexões históricas.

Contraposta à historiografia, a literatura confere com a visada de um momento histórico e realidade, mas sempre sujeita a releituras. Teóricos importantes como Erich Auerbach, Roger Chartier e Paul Ricouer atestam que o valor literário é mais simbólico que factual, um bem cultural que preenche lacunas compreensivas. De período à escola, de estética a projeto, de projeto à pecha, muito se tem confundido entre o que seja um viés regionalista político, como o reiterativo separatismo e, outro, cultural, dado pelas realizações artísticas. Talvez porque os autores rio-grandenses tenham inserido as questões políticas em seus enredos, as duas pareçam situações inextrincáveis. É uma confusão recorrente e que mereceria atenção redobrada dos estudiosos e leitores.

De uma forma natural, pois literatura e história inquirem-se o tempo todo, o “regionalismo” rio-grandense tornou-se cada vez mais um fantasma, como aponta a professora Regina Zilberman, e emblemático de uma crise complexa. Se abandonar a memória e as pessoas que continuam no interior é de uma violência atroz, não é menos violento caracterizá-las pela lente exclusiva da decadência: é evidente que são pessoas que vivem experiências comuns a todas as demais. Se o “regionalismo” pode ser considerado a tábua de salvação dos maus escritores, também costuma ser muito mais exigido no que se refere à originalidade. Autores contemporâneos deveriam pensar muito nisso ou, ainda melhor, não levar os preconceitos assim tão a sério.

Da mesma forma que na vida prática, na leitura faz-se necessário superar a intuição do já visto, do conhecido, para só então obter-se simpatia pelas coisas e por sua narração. Superada a negação inicial, a recompensa reside não na confirmação do esperado, mas no flagrante do próprio espanto. Certo que isso exige o trabalho da atenção, mas o atordoamento que se segue ao descortinar um mundo desconhecido é o trunfo principal da boa literatura. A dificuldade maior reside em que as mediações já consolidadas impõem uma série de preconceitos que encobrem o humano e o reconhecimento que a literatura pode propiciar. Ocorre que os estereótipos competem num estreitamento mental e superá-los requer uma leitura desimpedida ou ao menos esclarecida quanto a essa realidade. Enquanto o caminho orientado ideologicamente conduz à recompensa da confirmação, a boa arte costuma ser a que desorienta o previsível e propicia tanto a reorganização da memória social quanto do auto conhecimento.