Nasce a Valentine

Se aos quinze anos alguém me dissesse que quase aos cinquenta eu me portaria na vida como um outsider, acho que eu não estranharia muito, mas me manteria um tanto incrédulo. Até porque a imagem convencional do outsider (até os outsiders têm uma imagem convencional) é a de um sujeito intrépido, desafiador e inconformado e nenhuma dessas imagens ou arquétipos casa muito bem com a minha. Ficam bem num Dylan Thomas, num Allen Ginsberg, num Jim Morrison, num Kurt Cobain, etc, mas não exatamente na minha que, como quem me conhece sabe, é bem menos (ao menos na aparência) atormentada. Também, isso é preciso dizer de uma vez, não fui um gênio literário aos quinze, portanto está tudo errado nessa composição (ok, talvez aquele cabelo desgrenhado e a barba mal feita enganasse a alguns). Apenas que, ao mesmo tempo, não está.

Acho que dei azar, certamente dei, ao ter me resolvido (ou me auto impelido) por voltar a escrever numa época de decadência do hábito da leitura. Não vou vaticinar aqui sobre o hábito de leitura amplo senso, que é um assunto muito discutido, delicado (e bombástico!), mas apenas falar da tendência realista e verificável de que o hábito de leitura tem sido absorvido, talvez como nenhum outro, pelo impacto da expansão tecnológica (isso falando no leitor mediano, conforme pesquisas têm revelado). Seja como for, não pretendo ponderar a respeito de toda essa problemática, mas apenas tomá-la como ponto de partida para explicar como cheguei aqui.

Poucos anos antes de morrer, o escritor norte-americano Philip Roth também previra que esse hábito (o da escrita ficcional) logo acabaria, já estava acabando e, portanto, parecia-lhe um contrassenso alguém investir seu tempo nisso. Antes de eclodir a segunda Grande Guerra, Walter Benjamin também advertira que “a cotação da experiência baixou”, continuando terrivelmente a seguir dizendo que continuará baixando “até desaparecer por completo”. Talvez (e vejo às vezes muitos escritores aconselhando-se a isso) o melhor fosse que todos passassem a roteiristas, uma vez que, assim como o romance ficcional predominou no lazer cultural até algum momento impreciso do último século, hoje poucos se atreveriam a questionar a preponderância do meio audiovisual e do seu objeto mais consumido: as mui difundidas séries televisivas. De um ponto de vista de mercado, já chega a parecer que nem a coexistência pacífica seria mais suficiente, dado que a oferta já não mais encontra uma procura correspondente, e dizer isso, embora triste, também é apenas tentar ser minimamente realista.

Eu concordo com o que Philip Roth disse, mas acontece que o ímpeto de escrever é meio que inelutável. Ou inevitável até, porque a escrita não começa no papel ou na tela em branco, mas na mente. Então escrever, pelo menos no meu caso, é apenas uma questão de amarrar pontos. De chegar a um termo nas ideias depois de mastigá-las mais ou menos demoradamente. Não fecha muito comigo o termo “compulsão”, acho que não; muito mais me serve “necessidade”, porque o tempo da literatura muitas vezes me parece como uma ou mais dilatações do tempo real ou, pelo menos, de desembestadas tentativas de ir para além da obviedade factual da vida histórica e cotidiana.

Para além disso tudo, pelo menos quanto a mim, é um momento de estar livre com o próprio pensamento. E, por isso talvez, por uma indisposição contemporânea ao tempo de reflexão do outro, a literatura hoje possa soar um tanto quanto “desnecessária”. Ok. Não vamos discutir aqui sobre preferências nem sobre o “contemporâneo”. Não é mesmo o caso disso e não haveria tempo e argumentação que bastasse.

Também é preciso levar em consideração quem entenda a coisa toda como uma procura por status social. É claro que existe e isso é muitíssimo evidente nessa novíssima esfera pública virtual: a internet. Essa é teoria da psicologia do gosto e do consumo conspícuo. Como não possui uma função prática, a produção artística seria mera tática de impressionar os demais, sejam estes os vizinhos, os alvos sexuais, os colegas, a família, quem dera a humanidade… Porém essa é uma situação que a idade (está bem, “avançada”) me permite desprezar e transcendê-la. A essa altura, não tenho pretensão alguma de impressionar a quem quer que seja. Bem como o mais resguardado poeta brasileiro, Dante Milano, penso que a busca pela glória (estrepito y ceniza, segundo Jorge Luis Borges) deveria pressupor o desejo de admiração da humanidade, mas, para ele, essa admiração dependeria igualmente da sua admiração individual “pela” humanidade e esta, segundo escreveu, infelizmente inspirava-lhe muito mais piedade que admiração… Daí certa dificuldade que também compartilho.

Muitos escritores gostam de, por falsérrima modéstia, mencionar seus poucos leitores. Bem, esse é o meu caso real e, sendo o mais honesto que consigo, sempre me senti tranquilo com isso. Esse, talvez, seja um privilégio de ter retomado a escrita já adulto, quase aos quarenta anos. Escrever sem nenhuma pretensão acessória me parece mesmo uma espécie de luxúria literária. Também há que, à exceção dos ghost-writers e roteiristas contratuais, não há muitos bons escritores que se organizem em torno a ideias “necessárias”.

A atividade da escrita, com efeito, é sempre “não solicitada” e, deste modo, é uma sujeição que o autor faz em relação aos seus leitores, mesmo que seu número restrinja-se a casa decimal. Não é esta miserabilidade, no entanto, a que mais costuma afligir aos autores literários, mas a espectral “fortuna crítica” e suas manifestações corpóreas: a reputação e o reconhecimento. Vem daí que o sistema literário possa estar, em razão de uma crescente especialização e elitização, migrando cada vez mais claramente para um modelo mercantil no qual o livro e a literatura passam a ocupar e disputar espaço entre muitos outros objetos culturais e, pelo tempo e dedicação que a leitura exige, atualmente em grande desvantagem. Pelo menos eu penso assim.

Já disse isso uma vez: não tenho nada contra o sistema literário nem contra o mercado literário. Muito menos, entretanto, tenho a favor. Já ouvi e li de muitos escritores sobre suas motivações e nunca me senti totalmente representado. A opinião preponderante de que livros são escritos para serem lidos, aliás, me parece das mais problemáticas. Tudo que já escrevi na vida foi, em primeiro lugar, para ser escrito. Caso alguém tenha lido e gostado, ou venha a ler e a gostar, eu só posso achar isso impressionante, pois um escritor que escreve focado na audiência é uma pessoa talhada para a mediocridade, ainda que seja alguém que conte com uma repercussão unânime. Nada de muito interessante pode resultar de quem se dedica a escrever para agradar a quem quer que seja ou por edulcorar o status quo, qualquer que seja ele.

Nesse ponto, concordo com Charles Bukowski quando ele diz que “if you first have to read it to your wife / or your girlfriend or your boyfriend / or your parents or to anybody at all, / you’re not ready” (se tens que o ler primeiro à tua mulher / ou namorada ou namorado / ou pais ou a quem quer que seja, / não estás preparado). Ocorre que, pelo menos no sistema literário corrente, é isso que veladamente se tem solicitado aos escritores. Obviamente que não de uma forma explícita, contratual, mas de uma implícita nos escritórios das editoras, nas reuniões dos conselhos editoriais, nas decisões de premiações e também nas bancas de pós-graduação, que é de onde mais recentemente se tem chancelado e exarado o que é hoje entendido como o “literário”.

Penso que não é difícil entender como, afinal, acabem por existir uma ou mais tendências outsider na literatura. Existem porque o sistema é estreito, um curral, um caixotinho. E o mais estranho é perceber que, se a internet tenderia a permeabilizar e/ou facilitar o trânsito de novas experiências, ela tem acabado mesmo é por contribuir na guetificação pactuada entre autores, leitores e publicações. Vou tentar exemplificar, a seguir, minha compreensão com um pouco da minha própria experiência.

Atualmente, com a expansão das facilidades tecnológicas que há, a primeira barreira editorial parece estar mesmo superada, ou seja, dificilmente um autor não vai encontrar editora que o publique, basta que ele se submeta ao critério comercial de pagar antecipadamente pela publicação. Desculpem-me se lhes apresento alguma novidade, mas é como as coisas realmente são. Isso, todavia, nada tem a ver com a consecutiva decência do trabalho editorial no que confere desde a revisão ortográfica e gramatical até a fase final do trabalho: sua distribuição comercial. Não é o mais grave. Muito piores são os profissionais do ramo que exigem dos seus contratados uma vocação extra: a de marqueteiros. Sei por mim mesmo que há casas editoriais muito criteriosas que submetem autores a comprovar o número de seguidores em redes sociais e que isso consiste, pasmem, em critério definitivo para a publicação. Nada disso de leitura técnica. Nada disso de “parecer”. Um formulário preenchido na internet e uma vasculhada no nome do proponente resolvem tudo. É isso.

Pois é nesse ponto da situação que o canto dos outsiders volta a me soar como o único possível, mesmo em se tratando de indivíduos já um tanto “longevos” para o termo, como eu. É que não dá para encarar isso aos cinquenta com (ou contra) uma geração inteira que acredita que assim é que as coisas são e devem ser, justamente fortalecendo essa dinâmica. Simplesmente, é preciso guardar a viola no saco ou, como desejo fazer, cantar à minha própria maneira, nem que pareça em direção à parede. Não me importo e por razões muito simples: não tenho tempo ou paciência e muito menos vocação para a autopromoção, essa que é a forma ultraneoliberal de viver que a internet veio coroar. Além disso, prefiro usar esse tempo indefinido que me resta lendo outras coisas (minha lista de débitos é irrecuperável), e talvez ainda mentalizar outras ideias e projetos… Não sei. Não julgo quem faça as coisas de outra maneira, mas estas são as minhas possibilidades reais. E o tempo, claro, urge e ruge.

Espero que tenha sido claro que essa atitude, essa posição, não significa o mesmo que dizer que nenhuma casa editorial seja digna ou séria. Realmente não é essa minha intenção, porque as conheço e poderia elencá-las se desejasse, mas não é o caso. Isso, todavia, não me faz sobrevalorizá-las. Nunca é demais lembrar que foram empresas desse ramo que rejeitaram Proust, Faulkner, Gertrude Stein, Cummings, Kipling, Orwell, Joyce e até fenômenos de vendas como Agatha Christie e Stephen King. Por essa razão, acho bem razoável ter prudência com o ramo. Nada contra, no entanto, obviamente, a sua existência e razão de ser. E longe de mim querer dizer-me incompreendido pelo “sistema”. Não poderia, pois mal cheguei a dirigir-me a ele…

Dito isso (sei que já fui bastante longe, mas para mim é importante dizer isso tudo), há algum tempo venho testando algumas alternativas editoriais. Alternativas que me parecem mais adequadas a um modelo, digamos, mais sustentável de publicação. Como quem já passou pela experiência convencional, não acho mais possível nem honesto bancar grandes tiragens para nada. Também não vou me engajar no endomarketing. Definitivamente, não é para mim. Minha ideia é bem mais modesta e começou com testes que fiz no sistema de publicações impressas da gigante Amazon.com. Aconteceu que eu desejei ver como ficaria o resultado visual de algumas coisas nas quais trabalhei e fui dessa maneira organizando tudo o que havia escrito na última década, em revisões bastante radicais que às vezes duraram muitos anos até chegar ao ponto que desejava.

Para minha grata surpresa, o resultado gráfico se mostrou muito razoável tanto na qualidade do papel interno como nas capas. A única desvantagem é que não comporta as famosas “orelhas” e elaborações gráficas mais personalizadas. Mas mesmo isso tem um lado bom, que é o de não precisar pedir aos amigos a redação de apresentações e etc. Dessa forma, quem vier a ler terá de decidir se valeu ou não a pena por sua própria conta. É uma dispensa arriscada a de jogar-se nesse mundo sem quem me apresente, mas estamos aqui falando em outsiders, não é mesmo?

Antes de concluir (de verdade), eu gostaria de dizer que o mais difícil para um escritor nem é tanto escrever bem quanto escrever algo que interesse às pessoas. Mas confundir esse fabvro com oportunismo ideológico ou mercadológico é um veneno que se encontra disponível inclusive aos mais talentosos ou bem intencionados. Se eu fosse um tiquinho preconceituoso, pensaria ao ver de longe o que estou fazendo como algo ridículo ou inadequado ou nem saberia o que pensar a respeito. No fundo, essa iniciativa toda tem apenas um mérito: o econômico. Nem que eu quisesse alguém toparia editar e publicar de uma vez só oito livros e, nem que eu quisesse também, nesse modelo comercial vigente, teria eu recursos para financiar isso tudo.

Então a situação toda obedece, no fim das contas, à possibilidade de eu gerenciar a minha vida e em não ser gerenciado por demandas e exigências de ninguém mais. Eu acho isso muito bom. No entanto, nem por hipótese menosprezo o trabalho de quem se relaciona com o mercado editorial de outra maneira. Então, mesmo sabendo do preconceito em torno à autopublicação, estou bem tranquilo com a minha opção. Não há que sentir compaixão por isso porque se trata de uma atitude meramente racional. Não estou fazendo isso porque não encontrei quem me publicasse, mas, das condições que pude conhecer, nenhuma me serviu. E, depois, me enjoei um pouco da ideia de publicar, é verdade.. Se, a partir daí, me surgir uma nova ideia ou conseguir proposta menos aviltante, volto a pensar noutra forma de fazer as coisas.

Por ora, vai ser assim mesmo. Afinal, o bom da liberdade é que cada um vive como quer, escolhe o que lê ou não lê e não precisa justificar-se para ninguém. Para mim, tentar portar-me como um outsider quase aos cinquenta é apenas uma forma de resistir à desistência, por isso só peço que não sejam complacentes. Um livro (ou oito) pode ser muito bom e interessante para uma pessoa e péssima experiência para outra. Mas isso é da vida! Não há que se queixar por essa razão e, aliás, por nenhuma outra.

Saiba mais em http://ed-valentine.com

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