Não há nada melhor para fixar o retrato de uma geração de escritores do que a publicação de uma antologia “definitiva”. Isso é um dado histórico na literatura, não suposição pessoal. Idealmente, se chancelada por um figurão acadêmico, um “entendido”, a antologia costuma ser ao mesmo tempo celebração de alguns e pá de cal na esperança de muitos outros em pleitear um espacinho na glória, essa ambição imaterial e supostamente perpétua que tanto fascina os mais incautos espíritos quanto envenena as relações entre as pessoas. O paradoxo não é meu, eu apenas o noto e gostaria muito mesmo de estar errado em minha interpretação acerca da competitividade desembestada que há no meio literário contemporâneo e, talvez, de todos os tempos.
Há cerca de dois anos, o livro é de 2017, coube à compositora, cantora e diletante Adriana Calcanhoto a fixação de um cânone da poesia contemporânea. Escolhida pela mais influente editora nacional, a Companhia das Letras, Adriana simplesmente fez reunir o que a ela pareceu “ter a ver” (sic) com o seu próprio filtro. Com a ressalva de trazer em seu próprio título a denominação de “incompleta”, a antologia, de acordo com reportagem da Folha de São Paulo, poderia ter sido realizada em muitos volumes, mas a organizadora teria optado por fazê-la em um apenas, reunindo exemplos de 41 autores nascidos entre 1970 e 1990. Pouco tempo antes, uma antologia preparada a pedido da Folha de São Paulo tinha abarcado um universo um pouco maior, com 70 poetas.
Datando uma contemporaneidade essencialmente “jovem”, a antologia de Adriana parece ser sobretudo um mostruário de uma determinada dicção “jovem”. Para mim, que penso em “jovem” como um atributo dos adolescentes, o termo se esgotaria lá pelos vinte e poucos anos. Depois disso, o que vejo são adultos, muito embora nunca tenha sido tão complexa a definição destes limites. Seja como for, a antologia preparada por Adriana é realmente um cardápio de boa poesia, a meu gosto, embora certamente tenham ficado de fora dela outros excelentes poetas. É o imponderável em questão. Mas, ao contrário de denominá-la por “contemporânea” eu diria “recente” ou, sendo irônico mesmo, “descolada”.
Para além das acepções sociológicas, é preciso clarificar o fato de que contemporâneas são todas as pessoas vivas de um mesmo período de tempo, quer tenham vinte e poucos ou oitenta e tantos anos de vida. No que me importa dizer aqui, é a definição a que me atenho. Sob esse ponto de vista absolutamente geracional, é bem interessante o uso da antologia de Calcanhoto para observarem-se características comuns, influências, etc. No caso da antologia em questão, salta aos olhos uma semelhança notável no uso do verso livre, do coloquial quase crônica e também de uma estética liberal, ainda que não necessariamente libertária ou politicamente engajada. Se essas características podem resumir as qualidades de toda a poesia realizada atualmente, este é outro debate e, para mim ao menos, muito mais inacessível.
Não é preciso que eu diga o quão polêmico foi a publicação da antologia e o número de reclamações, postagens, discussões e etc. A julgar pelo prêmio Oceanos, um dos principais do país e no qual centenas de poetas anualmente inscrevem seus livros no afã de concorrer, é compreensível a grita. Não compreendê-la, sim, é o que seria incompreensível.
Ainda que noutra qualidade de polêmica, no mesmo ano, 2017, foi escolhido para ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras o poeta, critico e professor de filosofia Antônio Cícero. Porque as unanimidades quase sempre ocorrem aos já falecidos, obviamente a escolha suscitou desagrados. Como o dito logo acima, seria incompreensível é se não suscitasse. Pode-se sem dúvida objetar pela qualidade literária de seus livros, pertinência, pela própria credibilidade da Academia, o que seja, mas a indicação sobretudo ofende exatamente essa noção de contemporaneidade. Cícero é um poeta que tanto escreve dentro de uma vertente formalista quanto mais livre, mas também flerta com a canção popular e, o mais grave de tudo, com a filosofia.
Nesse ponto, realmente a porca torce o rabo, desculpem-me o dito abrupto, porque se há um preconceito visceral da poesia brasileira é em relação à filosofia. Uma não pode ser a outra e, de fato, não ocupam o mesmo espaço nem requerem as mesmas características, mas fazem um namoro fascinante que poucos, como Cícero, conseguiram levar a um casamento. Isso é minha opinião. Os namoros da poesia brasileira com a filosofia ou, noutro extremo, com a canção popular, são sempre muito mais reclamados do que com uma possível tradição com o bom humor. Quando o flerte é com a filosofia, simplesmente ocorre o veto e a determinação estranhamente provém (no mais das vezes) mais dos poetas que dos filósofos. Nesse sentido, pelo menos, ocorreram recentemente debates acalorados nas páginas do mais importante jornal brasileiro e daí afora (ver o artigo em que Mariella Masagão acusa a poesia contemporânea de “sisuda” e “hermética”).
Mas eu não diria isso apenas de Cícero, outros poetas vivos (não tão joviais quanto os antologizados por Adriana) e atuantes também vão à berlinda com os temas metafísicos, do pensamento e da reflexão. Penso que são contemporâneos também e sobretudo porque sua temática não é casuística ou delimitada temporalmente. Nem maiores nem melhores que os outros, isso não, pois não é meu critério, mas me parece absolutamente incompreensível apontar a poesia contemporânea e, ao mesmo tempo, sepultar em vida poetas produtivos e com uma obra complexa ou obliterá-los em razão, ora veja-se, da sua “lírica”. Esse é que me parece ser, aliás, o descolamento mais impressionante da poesia contemporânea: para com a subjetividade. Isso que não estou falando aqui dos que não publicam ou deixaram de publicar (por n razões), mas continuam escrevendo. Ou seus “títulos” de poetas foram cassados porque seus nomes não estão nas feiras e festas literárias e antologias da hora?
Seja como for, na minha opinião, há muita injustiça no mundo e continuará havendo; sou muito pessimista em relação a isso. Eu apenas considero relevante apontá-la e suas nuances e implicações secundárias. Espero que seja tolerado por isso.
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A título de curiosidade, porque foge ao assunto (ou o circunscreve), só há pouco fui assistir ao filme realizado em homenagem ao cantor Freddie Mercury, compositor e vocalista da banda de rock britânica Queen. No filme, além dos nostálgicos momentos musicais, há um momento breve que é muito tocante em meu ponto de vista. A cena transcorre quando a banda está dissolvida, antes do regresso no Live Aid, e Mercury está solitário, já se sabe soropositivo e tenta reatar com o restante dos músicos pois deseja volta a cantar com o grupo.
Num encontro promovido pelo produtor, os músicos aceitam conversar com aquele que os havia dispensado num surto arrogante. Antes de recebê-lo, porém, o guitarrista Brian May, devoto à genialidade do cantor e amigo, resolve dar um “gelo” em Mercury. Os demais integrantes da banda não irão simplesmente recebê-lo com uma festa. Então ele simplesmente alega que a banda tem de conversar um pouco sem a presença de Freddie para decidir. Acontece que os integrantes da banda não falam absolutamente nada. Não trocam uma palavra porque não tinham nada a dizer, mas queriam que o astro de carisma irresistível pensasse um pouco com seus botões, sozinho, e percebesse que precisava dos outros mais até do que eles precisavam dele. Faz parte de ser uma melhor pessoa reconhecer o caráter intrinsecamente humilhante que há na vaidade excessiva.
Essa noção de coadjuvar, de simplesmente “estar com” e de não “estar para este ou aquele” é em meu ponto de vista uma das faltas mais melancólicas da literatura, ainda que não expressa em versos e nem sempre mostrada tão bem quanto após o advento das redes sociais. Como diz o autor (também não antologizável, já que rapper) Mano Brown, “ninguém quer ser coadjuvante de ninguém”. Alguém o refutaria? É que é muito próprio das sociedades violentas, como o Brasil, a escassíssima simpatia para além das listas vip, dos círculos preferenciais, das panelinhas tediosas. Reconhecer a necessidade da presença dos outros não é um traço de grandeza ou nobreza, mas de reconhecimento devido, sobretudo de respeito interpessoal. E de um viés democrático que, infelizmente, não está tão evidente quanto gostaríamos em nosso cordial modo de ser.
Mas notem que nem sempre fomos assim ou, não sei, talvez tenhamos sido mesmo e só agora nos é facultado esclarecê-lo. Sempre que penso nisso, lembro-me dessa foto e, ainda que seja impossível entender o que passaria naquelas cabeças, eu nunca vejo nela um pódio. Mas eu sou um lírico, não contem comigo para espezinhar a malevolência humana. O que eu tenho mais dos poetas é um pouco de pena, porque julgo entender um pouco do que os anima. Para mim, são pobres estrelas desconsteladas, sobrando no vazio noturno, com suas arestas ferindo a poesia inacessível da noite..