Não sei se por culpa da aceleração de tudo, da pressa ou do que mais, mas eu tenho tido nos últimos tempos cada vez mais dificuldade para me concentrar na ficção. Ficção de um modo geral, mas especialmente novelas e romances. Já venho assim há uns anos: deixo para o fim do ano, para os meses de verão, a leitura de prosa longa. Durante o ano, prefiro ler não-ficção (cabe bastante coisa aí nessa gaveta) e poesia.
No fim do ano passado, entretanto, pouco antes do Natal e logo depois do Ano-Novo, nesse intervalo, eu li de enfiada uns quantos livros de ficção que não me causaram aquele desvio mental que essa esse tipo de leitura vinha me proporcionando. Quer dizer, pude me concentrar com muito mais facilidade. Vão me chamar de bairrista, eu não me importo, mas todos eram de autores gaúchos. Em função e em razão da Sepé, eu procurei ler os autores e poetas daqui que eu não conhecia ainda e outros que conhecia e que haviam publicado recentemente.
A pilha ainda não acabou, mas já encontrei vários livros muito bons. De alguns já comentei por aí, de outros ainda não. Mas hoje eu queria comentar a respeito de um o qual especialmente gostei muito. É o Entre outras mil, da Rochele Bagatini e publicado pela Diadorim, editora daqui de Porto Alegre.
Antes de qualquer coisa, eu digo que não faria isso se não tivesse gostado mesmo do livro. Se não tivesse gostado, não teria inclusive lido até o final. Teria o Entre outras mil ido parar literalmente entre os outros mil inacabados que referi acima. Eu sei que há leitores que têm paciência para encantar-se com um livro lá pela página 139. Não é o meu caso. Isso se aplica – para mim – tanto para autores iniciantes quanto para consagrados. Eu estimo que esse meu comportamento seja muito mais adotado que assumido, mas não vejo problema nenhum em admiti-lo e isso também não cria em mim uma regra. Há autores cuja narrativa exige um tempo maior para que a gente se acostume por uma exigência estilística, um contexto cultural específico ou coisa assim. Não é de livros assim a que me refiro, mas daqueles que enroscam o leitor na tentativa de aprisioná-lo e acabam sufocando-o.
Entre outras mil passa longíssimo dessa situação e isso eu pude ver nele logo ao ler suas duas primeiras páginas. Em primeiro lugar, a novela me pegou pela maciez da prosa e pela objetividade narrativa. Entenda-se bem que, para mim, maciez não é o mesmo que melosidade. Tem mais a ver com a prosódia mesmo, com o modo de dizer e de projetar na mente do leitor a voz das personagens. Pode-se trocar o termo por “fluidez” também, mas eu prefiro “maciez” porque é também a qualidade de um texto que não se vale de tombos, golpes bruscos ou efeitos assim. Nada disso. Trata-se de uma prosa que dispensa airbags e não sacrifica a suspensão do leitor.
E essa metáfora mecânica, automobilística, ou melhor, a sua falta é justamente uma das características que muitas vezes me tem feito abandonar uma novela ou romance. Trafegar cento e tantas páginas aos solavancos exige do leitor muito mais do que paciência. Exige um kit de primeiros socorros com direito a calmante ou estimulante, a depender.
A segunda característica que me ganhou em Entre outras mil foi a objetividade narrativa que a autora maneja com muita maturidade. Não é lá muito bom que a gente saiba do que trate todo um romance para gostar do livro, mas a identificação de um contexto, de um enredo, principalmente quando não se está num projeto psicológico e introspectivo, parece ser cada vez mais dispensável na prosa contemporânea. Sabe aquela sensação de estar por horas a fio navegando na bruma da imprecisão (e aos solavancos sintáticos)? Em Entre outras mil a gente não sente isso e o resultado dessa combinação não é outro que um texto agradável, fluido e nem por isso frio, dado que a narradora é inteligente e observadora: uma mulher em busca de resolver dramas familiares complexos vivendo o que deverá marcar a transição para a sua vida adulta.
Além disso, há um enredo muito rico no qual personagens não são casuais, mas indispensáveis à construção da personalidade da protagonista/narradora e um panorama da condição feminina na história recente, marcada sobretudo pela presença da telenovela como fonte mediadora das mentalidades. Raquel, a protagonista de Entre outras mil, é uma personagem que vem do interior para disputar na capital do Rio Grande do Sul a emancipação de um passado no qual o fantasma do abandono familiar a revisita provocando-a a questionar-se (e muito) em relação as suas próprias expectativas de vida. Não sei se pode dizer que é um romance de formação porque ali não está a formação uma escritora, mas alguém que ambiciona a carreira de juíza. Então talvez se pudesse dizer um romance formativo. Formativo e muito fecundo para um lançamento de uma autora que se diferencia bastante e positivamente de um contexto de livros de ficção um tanto apáticos como os que marcaram as primeiras décadas da novelística rio-grandense deste novo século. A determinação e inteligência da jovem Raquel garantem ao livro uma prosa vigorosa, de uma autora também vigorosa como sempre estamos precisando muito.