A máquina de desaparecer

Foi na casa de uma tia onde me hospedava, criança ainda, que encontrei o primeiro espelho de desaparecer.

A máquina era estática e dependia de que eu a movesse com as mãos: funcionava caso eu acionasse as portinholas laterais. A maior serventia do espelho era fatiar o rosto em reflexos e desvios infinitos, de modo que não fosse possível encontrar o foco a não ser se ele estivesse planificado como uma lagoa, mas aí perdia sua magia e razão de ser.

Era um espelho que permitia o fitar, e cujo maior atrativo mesmo era o de fazer desaparecer. Pelo menos essa parecia ser a sua vontade, embora, por necessidade, servisse também ao propósito do reflexo perfeito.

Foi ali que pela primeira vez levei uma lâmina de barbear à face de menino. A lâmina descartável de um primo quase desconhecido que o instrumento guardava numa das portinholas. Por um momento rápido, a lâmina aproximou vertiginosamente nosso parentesco e o sangue de um e de outro, mesmo que em tempos distintos.

O primo era alguns mais velho do que eu, mas o suficiente para que me tratasse como criança. E quando nos encontrávamos no longo corredor da casa, sempre parecia que era a primeira vez que me via na vida, tornando minha presença estranha ao lugar, a sua família e suas coisas.

Naqueles dias frios de julho, a mãe faria em Porto Alegre uma cirurgia de vida ou morte e eu me enfiava sob as cobertas sem saber se acordaria órfão ou não. Com as mãos tremendo entre os joelhos e olhos esbugalhados no nada, sentia a presença de uma pequena luz amarela que se movia no escuro do quarto de dormir e só aquilo me acalmava e induzia ao sono. Nada mais me concentrava a atenção.

Todas as manhãs daquela hospedagem involuntária, eu encontrava o espelho já em funcionamento. As portinholas abertas me desviariam para sempre se não as endireitasse.

Eu gostaria de que não me enxergassem nem ali e nem no colégio notassem muito a minha presença e os fiapos de barba que cresciam em meia lua sob os maxilares. Para isso, agora eu tinha de ferir minha própria face, a pele quase imberbe e ainda delicada como a de um anjo tornando-se áspera e os olhos da adultez fulminando a criança que ainda teimava em usar um mero espelho como uma máquina de desaparecimento.

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