Artigo publicado na 9ª ed. da Revista Sepé.
Imagine-se um mundo sem redes sociais, sem internet, sem televisão, sem rádio ou jornais. Este é o mundo de Sombras na Correnteza, romance histórico que Cyro Martins publicou aos 71 anos de idade, em 1979, e que tem como pano de fundo a centenária Revolução de 1923.
Talvez o mais certo fosse dizer que se trata do olhar de Bilo Martins, o pai do próprio Cyro que é homenageado no romance e é também o personagem que testemunha o desenrolar daqueles dias remotos detrás do balcão de um comércio rural (um bolicho, na linguagem campeira). Mas o mais certo mesmo parece ser que o escritor tenha recombinado no livro memórias antigas com o olhar distanciado e a experiência acumulada em setenta anos de vida e muitas publicações nesse percurso. É o que ele próprio adverte no texto de orelha do livro, publicação da Movimento.

Na vida do campo, o bolicho não é apenas um local de comércio, é onde as pessoas se informam e propagam as novidades de boca em boca, de chasque em chasque. Na pasmaceira dos dias idênticos, o bolicho é o centro de comunicação que coloca em contato campo e cidade, o interior e o mundo.
Neste mundo quase um desvão do Brasil sem ainda uma imagem clara da modernização porvir e dominado pela figura autocrática do presidente Borges de Medeiros e a máquina político-militar do Partido Republicano Riograndense, uma eleição marcada pela suspeita (ou certeza) de fraude é o estopim para que o campo ainda muito militarizado em função da Revolução Federalista de 1893 volte a armar-se revivendo os momentos de violência que banharam de sangue o Rio Grande do Sul.
Em trinta anos, porém, o mundo havia mudado e muito. A marca maior da mudança tecnológica proveniente da I Guerra Mundial é o uso das metralhadoras em campo de batalha e agora, sob as ordens de Borges de Medeiros, a Brigada Militar as têm prontas para enfrentar as colunas enfileiradas nas coxilhas pelos apoiadores da candidatura de Joaquim Francisco de Assis Brasil, do Partidor Libertador. Sob o comando do Gen. Flores da Cunha, as forças governistas vão bater-se contra a organização caudilhesca de figuras quase mitológicas, como o Gen. Zeca Netto e o Cel. Honório Lemes. Mais tarde, a revolta ainda será conhecida como a em que o facão enfrentou a matraca, numa alusão à disparidade das forças em combate.
Além de flagrar as escaramuças do conflito e retratar as longas viagens empreendidas pelas colunas militares, o olhar de Cyro é sensível também às pequenas mudanças. O próprio comércio do seu Bilo é afetado pela intensa evasão populacional da região da Campanha em direção às cidades. Embora até a década de 50 a população rural quase equivalesse à urbana, esse movimento revolucionário de 1923 foi definitivo na configuração geográfica e política do estado do Rio Grande do Sul. A partir da chegada de Getúlio Vargas ao poder, o foco da economia passa à industrialização incipiente e o campo a gerar e exportar a pobreza rural para a cidade. Em 1923, o gaúcho a pé que Cyro caracterizara em seus romances anteriores mais conhecidos (Sem rumo, Porteira fechada e Estrada Nova) estava em vias de migrar para a cidade.
Sombras na correnteza é um romance político de um autor já maduro e mesmo sua linguagem é mais direta e clara aos olhos urbanos que seus livros anteriores. Cyro, que havia denominado sua literatura por “localista” no lugar do regionalismo mais otimista, não hesita em mostrar as feridas sociais e psíquicas que tanto afetam as pessoas do campo quanto as da cidade. Ao lidar com um exército precário contra o Estado organizado e militarizado, se ele coloca em pé de igualdade militares de campo e de gabinete, é porque foi dos últimos escritores a viver aqueles tempos tais como eles aconteceram. Não é livre de um tom melancólico que ele narra a guerra frátria do épico de 1923. A sensibilidade do autor para com o povo do Rio Grande do Sul e sua história nunca abandonou o homem cosmopolita que ele foi.