Onde vivem os livros?

“Onde vivem os livros?” seria um bom título hipotético para um livro que tratasse do que é feita a vida dos livros no Brasil. Do que é feita e também do que não é feita.

Que eu saiba, esse livro ainda não foi escrito e nem o tema dele muito explorado. Com exceção dos textos bipolares que aparecem na imprensa ora apontando mais uma crise insolúvel do setor, ora comemorando resultados inesperados, o mundo editorial é feito muitas vezes de números discordantes e inexplicáveis imprecisões.

Eu tenho por aí uma pequena coleção de textos que publiquei a respeito do assunto, mas a minha sensação é de que quanto mais eu leio e penso nisso, menos entendo. A culpa pode ser minha, eu sei, de uma fraqueza do meu raciocínio, mas cada vez mais eu me certifico de que essa é uma equação que não fecha, não adianta. As variáveis extrapolam do argumento e os valores então nem se fale, são quase números aleatórios dos quais o jornalismo sensacionalista se lambuza.

O que eu verifico com muita parcialidade é justamente que muitas vezes se criam situações estatísticas para provocar reações mercadológicas. Nas regras do jogo competitivo, isso está longe de ser uma prática criminosa, pois sempre se pode alegar um recorte determinado em detrimento de outros. Na prática, todo mundo faz isso, inclusive as instâncias do governo quando divulgam relatórios soberbos, inclusive as pessoas na economia familiar e pessoal, quando precisam ou desejam se justificar por qualquer razão, um gasto impensado, uma compulsão.

Mas a tentativa de responder a essa pergunta exige que se reporte aos dados disponíveis e eles são tão incongruentes que simplesmente dissolvem os raciocínios antes de que se possa pensar em conclusões.

Ou como se poderia harmonizar, por exemplo, os dados de uma pesquisa que informa que perdemos quase 5 milhões de leitores a cada quatro anos com outra que comemora o crescimento de 30% de vendas no mesmo período?

Como concatenar a informação acima com a notícia de que nos últimos 5 anos o país perdeu pelo menos 800 bibliotecas públicas e segue perdendo, em detrimento de negócios e pacotes fechados de “soluções” educacionais, institucionais, etc.

Como entender o país que tem o oitavo número de ISBNs registrado no mundo inteiro, mas não tem um depósito legal eficiente e notícias de livrarias fechadas tornaram-se habituais? De onde não se consegue um exemplar publicado há mais de vinte ou trinta anos sem que se tenha de vender um rim para conseguir comprá-lo? De um setor que, mesmo com a tecnologia estrepitosa, se comporta ainda como se na época da tipografia?

Como harmonizar a ideia de que 60% das escolas do país não contam com bibliotecas e mesmo assim o MEC descarta milhões de livros didáticos ano a ano?

E, principalmente, como aceitar que todas são informações válidas, se quando tomadas em consideração globalmente não pareçam fazer qualquer sentido?

Pois essa é apenas a pontinha do fio de Ariadne que amedronta qualquer pessoa sensata a enfrentar o labirinto de informações e ajuda muito mais a concluir que o melhor talvez seja viver sem entender. Mas viver sem entender é justamente ser um refém voluntário da ignorância, sem dúvida uma das mais inaceitáveis formas de mediocridade que existem.

Como conhecimento sem dor não existe, é preciso se colocar à disposição da realidade para enfrentá-la. E a realidade é que há o mundo real e o mundo da fantasia das estatísticas e das manchetes. Em primeiro lugar, seria preciso discernir quais livros estão sendo vendidos para qual destino e com que finalidade. Não é tão difícil. As próprias estatísticas das pesquisas encomendadas pelo setor livreiro e seus sindicatos informam isso, embora poucos se atentem ao que isso significa. A proficiência da leitura (e consequentemente, da escrita), por complexa, é outro assunto, mas não menos aterrador.

Nessa explosão editorial, 75% são reimpressões e não títulos novos. De todo o volume de vendas, mais de um terço do volume total da indústria livreira é destinado ao setor público, num faturamento que chega a dois bilhões/ano. Livros digitais (e-books) respondem por 4% dos títulos e vendas em números estagnados (o e-book é um péssimo negócio editorial). 53% de todos os títulos são obras didáticas e quase 20% são de conteúdo religioso. 10% são apostilas e a literatura adulta responde por imensos 6% do volume editado.

Por que esses números não são problematizados nos artigos estrepitosos que chegam à mídia via de regra culpando o leitor ou o combalido sistema educacional? Isso eu também gostaria de saber, mas continua integrando o combo da minha ignorância.

Enfrentar o senso comum e a sensação de que cada vez se lê menos sem entender esse descaminho imenso, leva a pensar que viveríamos uma apoteose livresca, com quase 400 milhões novos livros circulando anualmente. Mas onde estão esses livros todos? É isso precisamente que eu gostaria de entender, mas acho que vou morrer sem conseguir. Só o efeito disso eu vejo a cada vez que saio às ruas e a nossa pobreza social imensa me entristece profundamente. Mas se nem ela, que é evidente, consegue ser objetivamente combatida, imagine-se coisas e problemas que nem se consegue formular direito? No Brasil, pessoas se aborrecem com políticos e autoridades, eu me desanimo é com isso, com a ignorância generalizada que nos acomete sobre quase tudo.

* Onde vivem os livros é uma adaptação do título do filme “Onde vivem os monstros?”, baseado no clássico infantil de Maurice Sendak.

* Os dados estatísticos que citei são das pesquisas da Câmara Brasileira do Livro e Instituto Pró-Livro.

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