O calceteiro

Hoje o calceteiro não veio. Havia ameaça de chuva, mas a chuva também não veio. Nem um nem outro vieram. Não sei onde foi parar o som das repetidas marteladas que ontem repercutiram tanto e que hoje repercutiriam outra vez. Havia um partitura pendurada no ar que não se sonorizou.

Às vezes fui a janela observá-lo: ele selecionava como um cirurgião entre tijoletas intactas e machucadas. As machucadas ele ia destroçando e ensacava à disposição de um comboio que passa pela noite levando na caçamba ruínas de pedras, frangalhos e outros destroços que as pessoas deixam na rua.

Na forma pela qual ele alinha as tijoletas, só é possível uma ordem, caso contrário todas perdem o ajuste. E a calçada volta a ser uma espécie de estrada, um caminho. Em frestas retilíneas ele vai ajustando as pedras que não se incomodam do seu manuseio.

Nada disso se parece à vida real, onde tudo se desajusta tão rápido, mais que se possa perceber. Mas, ao contrário dele, que descarta as pedras sem dó, é muito difícil jogar fora o que está arruinado. A consciência de viver é dada por cicatrizes e outras protuberâncias, como o cabelo que cresce, pelos no corpo, unhas, essas coisas. Tudo, menos as coisas intactas.

Já as pedras não têm consciência nenhuma, é claro que não. Se algo lhes falta, não parece ser por culpa do calceteiro. O incômodo rugoso das outras pedras raspando em desencontros é também uma espécie de conforto, assim como as pequenas almofadas nas patinhas dos cães que sem solenidade ou pudor urinam na obra do homem e sobre a sua fronte, tapando-lhe o sol e adulterando sua fisionomia.

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