Hoje é dia de Santa Marta de Betânia, irmã de Lázaro e Maria Madalena, que ressuscitou um homem afogado como se fosse um deus e enfrentou com um frasco de água benta uma fera descrita como “um dragão metade animal, metade peixe, mais gordo que um boi, mais comprido que um cavalo, com dentes cortantes como espada e pontiagudos como cornos, munido de cada lado por dois escudos”, gerado pela “união do Leviatã com o Onachus”.
Essa santa prodigiosa teria sido a mártir que converteu os primeiros francos ao cristianismo, numa região também governada pelos romanos no século primeiro depois de Cristo, a quem ela hospedou.
O dragão de Tarrasque é uma besta medonha pela descrição que é feita nas lendas medievais. Ao invés de cuspir fogo como um dragão ordinário, ele inflama tudo com os seus excrementos que são como bolas de fogo que arremessa longíssimo. Vivia a fera num covil próximo à floresta escura onde hoje é a comuna de Tarascón, devorando todos aqueles que ousassem invadir a mata densa.
Marta jogou umas gotas de água benta no monstro e mostrou-lhe um crucifixo. Foi o bastante para o monstro deixar-se aprisionar pela cinta das vestes da santa e por ela foi levado ao vilarejo, onde foi espancado até a morte pelos aldeões.
Após este feito, a mirófora Marta, que teria sido também oradora admirável, foi ganhando a fé de todos ao redor e naquela terra de crendices ergueu uma basílica em homenagem à mãe de Jesus, a virgem Maria.
Desde a época medieval ocorre na região uma procissão a que se consagrou em 2008 o estatuto de Patrimônio Cultural da Humanidade. Na procissão, repete-se a chegada de Marta e o dragão carregado pelo cinto sendo atacado pela população. Na Espanha e na Bélgica, a procissão costuma acontecer junto à celebração de Corpus Christi.
Santa Marta é a padroeira dos cozinheiros e em algumas representações ela aparece enfrentando o dragão com uma concha de madeira ou colher de pau.
Existem muitas interpretações do encontro das duas criaturas, mas eu não vou tão longe. Melhor deixar essas coisas para quem estuda. O máximo que fiz foi escrever uns versos. Mas não para a santa, para a vilipendiada besta..
As aspas são da Legenda Áurea, de Jacopo de Varazze.
Santa Marta em Tarascon
2017
Eu levo quem vem e vai
ao fundo de todas as águas.
Sou o último à passagem
entre a natureza e a cidade,
para matar-me não basta coragem.
É preciso ser como ela.
Vencer todos os medos,
ter o milagre aos dedos.
ferrões de todas as abelhas,
grilhões de tecido e seda.
A julgar por minha aparência,
o solaço da primavera
neste ano chegará mais tarde,
como um exército de covardes
trepida ante minha couraça.
Há muitos tipos de morte
que eu tenho a oferecer.
Depois de ser trucidado
ninguém haverá de invocar-me
como a Lázaro, o ressuscitado.
Abaixo do som das palavras,
a minha voz somente ameaça
os tolos, os fúteis e os vis.
As bestas eu deixo que passem
pois elas são seres sutis.
Engulo-os pelos pés e das mãos,
seus medos, anseios, fedores.
Não lhes basta o próprio espelho
pois poucos sobreviveriam
em face dos próprios horrores.
Qual o teu nome monstro?
Ela indagou olhando meus olhos.
Nenhum, eu disse, ou jamais
e ela de pronto entendeu
desfazer dos meus ancestrais.
Pior que a própria Medusa,
ela ergueu sua mão para o alto
e numa língua confusa
entornou o silêncio dos jarros
até retirar-me do lodo.
Iludiu-me com vinho e promessas,
levou-me a um redemoinho.
Febril, pedi-lhe compressas
e ela, falando baixinho, disse-me:
monstro, como és mansinho..
Leva-me, que a vida me farta
e não posso ser compreendido.
Serei o exemplo perfeito
do que deve ser combatido;
e à morte levou-me indefeso.
O povo saudou com festa e pranto
a sua salvadora. Santa Marta
do meu sangue livrou-se,
mas eu, de sua memória,
nem tanto…