O que mais tem no mundo hoje é protagonismo. E eu acho estranho que essa ideia prospere tanto nos novos movimentos sociais porque é evidente que ela espelha uma noção competitiva nas relações sociais. Ao invés da busca por reformá-las ou transformá-las, vale aparecer mais, aparecer antes, capitalizar a imagem. A busca por protagonismo é uma nova forma de exploração do individuo pela sua imagem e o sofrimento correspondente a esse processo.
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Caso a inteligência artificial assuma cada vez mais as funções comunicativas, é de esperar que o indivíduo se aliene completamente nesse self ponderado por algoritmos e disjunções aritméticas. Num mundo de redes de relações proveitosas, ou networks, a exclusão assume formas imponderáveis e inimaginadas no modo como as pessoas de mais de vinte anos de idade foram educadas. Todo o esquema de status pessoal torna-se um produto do sucesso da comercialização do seu ego. A ideia de carreira, de obra ou trajetória sucumbe a uma nova ordem de acumulação simbólica. Mais importante que talento é aferir valor a si mesmo, e vender-se a este preço, num esquema licitatório que seleciona as melhores ofertas de valor ao que o sistema simbólico (cultural) necessita explorar.
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Às vezes, só às vezes, temos noção realista do tempo mal empregado de nossa energia mental e vital. No mais das vezes, por uma espécie parassimpática de proteção, essa percepção nos é vedada. Com ela, saberíamos que a maior parte dessa energia foi simplesmente dispersada. Como uma carga elétrica que se perde num circuito, simplesmente muitas vezes os grande aportes de energia não resultam em nada. Quando muito, choques periféricos sem maiores consequências. E a energia não se armazenou, não constituiu um fundo de aposentadoria, ela simplesmente evaporou. Sumiu. Acabou.
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O maior agente de dispersão de energia são as pessoas. E não é porque elas sejam essencialmente dispersantes, mas porque são necessariamente egoístas. Muitas pessoas pensam que o egoísmo é uma deformação de caráter. Eu discordo. O egoísmo é uma forma elementar de diferenciação do eu ao notar que, para o seu bem estar, é preciso prestar mais atenção a si mesmo do que dispersar sua energia.
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Não estou defendendo o egoísmo, claro que não, mas é fácil constatar que 99% das pessoas vivem dessa forma, priorizando a si mesmas. O egoísmo é a forma mais conservadora de comportamento. É um espécie de acumulação primitiva ahistórica, inarredável por qualquer processo revolucionário. O egoísmo só cessa com a morte do indivíduo.
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O protagonismo é uma espécie de egoísmo da imagem, uma receita simbólica que se origina na comercialização do eu. Uma super projeção do eu, isto é, uma virtualização.
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Dispersante, por outro lado, é o gregarismo, a vida em grupo, o cuidado. Quem dispensa cuidados dispersa sua energia, sua atenção. O benefício que ele tem é o de alienar a sua consciência, o de pensar menos em si mesmo e mais no contexto do que de si depende, mas isso só acontece quando ele o faz sem notá-lo.
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O bem que se sabe bem e que se autodeclara, não é bem, é mera vaidade, disse Hannah Arendt.
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A vida social é desarmônica porque o altruísmo é uma noção intelectualizada de ação política. Quem pratica o altruísmo muitas vezes está mais interessado no benefício moral da ação do que no bem estar coletivo.
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As pessoas que dizem que preferem ajudar a alguém que pode olhar nos olhos ao invés de colaborar com a sociedade anônima computam recompensas que, se ajudassem a um fundo público organizado, traria mais resultados, mas elas então não afeririam benefícios da ação.
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A situação mais vulnerável em que uma pessoa pode estar é a dependência do outro. No entanto é ao viver essa situação que se pode superar a condição do egoísmo. Por essa razão a negligência com as crianças e com os idosos é punível.
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Deixar de fazer algo, abster-se, é mais poderoso que participar, pois se anula o emprego de energia e ela dessa forma não serve a nada nem ninguém.
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Não podem coexistir a ideia inclusiva e o protagonismo. É um paradoxo.
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É isso que agride a sensibilidade contemporânea e nos leva ao fascismo pós-moderno: a ideia de que a nossa melhor energia será de uma forma ou de outra canalizada num esquema competitivo de proveitos simbólicos e políticos. A mesma ideia da vingança, mas delegada.
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Nada está mais distante do mundo hoje que a ética cristã ou budista. O séc. XX nos serviu para perceber definitivamente o fardo inútil da moral social. O séc. XXI nos vem servindo para dispersar a própria energia mental indefinidamente.
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Um caderno vazio, no qual se projetasse uma forma de vida mais desinteressada, um mundo conscientemente distributivo e reparador, poderíamos ambicionar? Não descreio, mas antes precisaríamos ir até o final do livro que viemos escrevendo. Um livro com protagonistas demais. E um caderno cujo protagonista seria, de forma natural e especial, ninguém.