Talvez se possa dizer que é uma forma de plágio, mas eu às vezes tento reproduzir por escrito, gramaticalmente, os compassos e harmonia de algumas músicas que me encantam. Em sua maioria, são músicas não cantadas, instrumentais, mas também acontece com músicas com letras e o resultado, isso que é o mais estranho, costuma ser completamente diferente dos versos que os letristas originais acomodaram às suas partituras.
O que eu faço é procurar notar os fraseados, os recomeços, os respiros, acentos, andamentos, ligaduras e etc para reproduzir aquela mesma condução musical e, sob ela, encontrar uma espécie de rítmica subjacente. Tudo isso sem manter qualquer relação semântica com o tema original, já que o que me importa, no caso, é a música em seu estado de pureza sonora.
A música, ao passo que pode induzir (e induz) ao sentimento, por outro lado se produz por uma linguagem estranha, indecifrável, e que antecede ao conteúdo verbal. Prova disso é que muitos esquemas rítmicos mais complexos são intraduzíveis nos sistemas métricos disponíveis para os artistas da palavra. E muitas composições são tão ou mais desconexas do que a maioria dos textos escritos, mesmo os mais experimentais.
Não sei quando eu comecei com isso, mas não foi uma decisão racional do estilo “agora vou fazer assim e assado”. Simplesmente procurei seguir a intuição musical alheia por uma linha paralela, sem buscar qualquer ponto de contato com a “matriz”. É uma atividade inversa a da que é mais costumeira, quando compositores tomam do trabalho de poetas e escritores para musicá-los, como no caso do excelente Literary Jukebox da compositora norte-americana Carla Kihlstedt com a musicalização de e. e. cummings e outros tantos poetas anglófonos.
Porque o meu gosto musical é eclético, meu critério é variado, mas segue menos minhas preferências do que minha percepção musical por si mesma. Desta forma, no meu programa de influência — um programa sem qualquer programa — apenas me deixo levar por melodias que vibram para mim de forma especial, de estilos tão diversos como a música folclórica da Noruega quanto o trabalho de sambistas nascidos, crescidos e falecidos no Brasil. E também música pop. E coisas mais experimentais de que eu gosto.
E erudito também, sim, mas aqui tem um detalhe importante: a música erudita costuma ser longa e, por isso, sua “interface” verbal acabaria por resultar muito maior e complexa do que um poema. E na prosa, à exceção da prosa poética, costuma-se eliminar vestígios líricos pareáveis – embora eu já tenha pensado em contos e relatos breves a partir de composições mais extensas.
Mas há músicas que pareceriam levar a um poema e, de repente, se alargam, aumentam, dizem mais do que o enunciado. Nestas, o que eu percebo é uma espécie de eco, uma reverberação narrativa tomada por repercussões culturais, históricas, etc.
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Uma composição que me levou a essa sensação é a “Valsa sem nome”, composição de Baden Powell e letra de Vinicius de Moraes. Abstraia-se da letra de Vinicius e procure-se perceber que a música em si mesma é matriz inesgotável de verbalização. Mesmo as estrofes regulares de Vinicius e o ritmo sincopado da valsa expandem-se no violão solo de Baden.
Como isso pode ser? É que a vibração da música não se prende ao tema, não se prende a nada, ela é a essência na qual se pode alicerçar qualquer coisa, se ela permitir. Não é que Vinicius não tenha escolhido bem (quem escolheria melhor do que ele?), mas o que eu quero dizer é que enquanto a palavra enunciada é um fecho, a música é uma fonte.
A “Valsa sem nome” é um composição com intensa conotação sentimental, mas ela mesma, nos seus enlaces harmônicos, ultrapassa o lirismo convencional da letra de Vinicius. Ali cabe muito mais e também está dito pela melodia muito mais. Isso eu não diria de, por exemplo, “Samba em prelúdio”, para o meu gosto o casamento mais perfeito da dupla de compositores, na qual a letra teria sido composta alta noite, de uma só vez, após o próprio Vinicius ser convencido de que não se tratava a melodia de duas vozes um plágio de Chopin.
A “Valsa sem nome”, por outro lado, ela é um pelo menos um conto. Um conto sem palavras, inteiramente sonoro. Quando a melodia introduz o tema, para mim o que ela está fazendo é assentar um cenário completo. Nessa introdução, menciona seus elementos e fugas apenas insinuando o desfecho, sem revelá-lo. Só depois disso Baden desenvolve o arco imprevisto, aumentando progressivamente a carga dramática quando ele “estoura” as cordas do violão quase junto ao cavalete, como é sua característica. Depois, ele a repete do começo ao fim suavizando-a ao contrário. E o tema – amoroso, sentimental – conclui-se no drama suavizado do arpejo final.
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Pode ser um delírio meu, de ouvir música dessa forma, mas, às vezes, é assim mesmo que eu escuto. Mas a verdade que também é assim que eu leio, distinguindo intuitivamente a escrita musical da estritamente racional, mais direta e monocórdica. Sem desmerecer o trabalho da segunda espécie de autores, que também admiro, eu prefiro os primeiros. E provavelmente a maioria das pessoas leia e escute música assim sem notar que o faça e se identifique, talvez, com os artistas que se expressam com sensibilidade semelhante à sua.
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O disco em que Baden melhor gravou a “Valsa sem Nome”, “Rio das Valsas”, de 1988, eu diria que ele mesmo é como um livro, tal a riqueza de motivos e complexidade das composições. Em 1967, o violonista havia gravado “Poema on guitar”, mas este me parece mais arranjado e, curiosamente, menos poético. Mas parece que ele tinha essa ideia de diálogo poético-musical muito em mente também.
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Se um dia eu fosse dar um curso sobre criação literária, meu programa principal seria ouvir muita música. Mas não de uma forma estruturalista, com o aparato sensorial-mecânico — com o aparato contemplativo, da alma.