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Uma vizinha

Até ontem, vivia nessa casa mantida com capricho e cuidado uma vizinha que viveu longos 104 anos de idade.

Quando instalaram numa das lojas do meu condomínio uma lancheria eu fui um dos que não gostou muito da ideia. Questões de higiene me preocupavam, afora um possível incômodo com os transeuntes e frequentadores.

Ela, não.

A Dona Ida estava sempre por ali. Numa mesinha, às vezes acompanhada, às vezes sozinha, quando tinha jogo do Colorado ela sentava-se e bebia uma (ou mais?) cerveja de 600 ml enquanto o time fazia das suas em campo. De acordo com o dono do estabelecimento, era pé quente. Dificilmente o Inter perdia se ela assistia.

Às vezes, eu a via tomando a linha 77, do Menino Deus, e descia poucas paradas adiante, no Zaffari. Fazia suas compras e tomava um táxi de volta para casa.

Ao lado da porta de entrada da sua casa, num banco de madeira, às vezes eu a via sentada com alguma visita. A casa tinha um ar de descanso e só de pousar nela os olhos me acontecia um degelo. Na semana passada ela estava ali, se não me engano. Cuidando com os olhos alguma coisa, um passarinho, a altura da grama, não sei o quê…

Talvez alguém herde ou compre a sua casinha. Não sei se tinha parentes, na verdade falei com ela uma vez apenas, quando num dia de São Cosme e Damião ela postou-se no portão oferecendo balas e doces para as crianças que passavam. Uma vez eu e minha filha passávamos ali e ela lhe ofereceu uma boa porção.

A rua já está bem mais feia sem ela, que gozava da saúde que todo o idoso merecia ter. Decerto não foi de graça e nem por uma benção que ela obteve essa vitalidade centenária. Por isso, para mim ela era uma pessoa paradigmática. Tomar sozinha um ônibus nessa Porto Alegre asselvajada, entornar uma Antártica e ainda por cima torcer para o Colorado, aos 100, não é para qualquer um.

Procurei aqui, mas não encontrei, uma reportagem feita para a tevê com ela. Não encontrei no Google, que já começou a me oferecer – só pode ser por desaforo mesmo – cadeira de vovó e ofertas de casa de repouso.

Um pesadelo

Nessa noite acordei de um pesadelo estranho. Acordei meio injuriado. No sonho, estava sentado junto a outros dois interlocutores e, conversando comodamente sentados, eles divergiam em tudo, sem nunca limitarem-se a simplesmente deixar a conversa morrer. Pelo contrário, eles tranquilamente argumentavam, mencionavam exemplos, ponderavam como se aquela conversa tivesse alguma finalidade. E não me deixavam apartá-los, mudar de assunto, desviar o foco. O único que tornava aquilo tolerável (e ainda mais estranho) é que não havia neles qualquer indício de alteração. Não iriam matar-se, sequer um enfrentamento. Havia uma civilidade torturante na conversa a que me submetiam que me parecia ser algo previamente combinado. Como se nada no mundo fosse mais importante nem dependesse daquilo. O seu ar desinteressado e falaciosamente circunspecto dava a entender que viveram ambos suas vidas para aquilo. Em vão eu tentava levantar-me simplesmente e partir, mas o ambiente fechado, com cortinas pesadas e estantes lotadas de livros não parecia ter portas. Eu pelo menos não as via. Acho que havíamos sido colocados ali, naquele cenário, para que eu fosse submetido àquela conversa invariável e cordata de pessoas que discordavam em tudo. E como não se dirigiam a mim a não ser em busca de um olhar de aprovação, lá pelas tantas eu comecei a fingir interesse em ambos, talvez assim o ânimo debatedor arrefecesse e aquilo acabasse. Procurei meu relógio e estranhei que o encontrei no bolso do colete. Que roupas eram aquelas? Que lugar era aquele? Em que ano estávamos? Quem eram, afinal, aqueles dois homens? Notando meu incômodo, um deles, o que estava sentado na poltrona à minha direita, encostou a mão no meu joelho como se entendesse o meu desconforto e as perguntas que mentalmente eu me fazia. O outro homem, também olhando-me com familiaridade e um tanto de condescendência, ele que me explicou a situação. “Não se preocupe em ver as horas. Estamos aqui em nossa oitava encarnação. Muitas haverão depois dessa. Nós continuaremos aqui, sem acordo e sem brigarmos, até que o mundo acabe.”

Um disco faltoso

Para mim, que sou avesso às listas de melhores, chega a ser uma sordidez dizer que, na minha opinião, estes sejam alguns dos discos mais importantes da música brasileira.

Todos são de música instrumental e é por isso mesmo que para mim eles são dos mais importantes. Para mim, muitas vezes a música instrumental – por estranho que possa parecer – “fala” mais que a música cantada, com letra.

É que a exigência expressiva da música instrumental é essencialmente superior à canção letrada. Tendo de trazer significantes exclusivamente sonoros, livremente musicais, a ênfase na mensagem necessita ser muito mais amplificada. É nesse sentido que eu posso dizer que estes sejam, no meu modo de perceber, os mais importantes, porque comportam e veiculam a musicalidade no seu estado mais puro e incorruptível. E são ainda mais importantes porque são discos autorais. E porque, apesar de serem músicos que serviram ao trabalho de letristas talentosos e intérpretes excepcionais, sua música fala por si só e, ao mesmo tempo, compõem cada qual um universo muito particular. Além disso, são essencialmente brasileiros e trazem a influência popular transposta numa elaboração maior, mais refinada, e nem por isso afetada.

A minha sordidez reside em apontar que não temos no Rio Grande do Sul, até hoje, um disco nessas condições, um compositor nesse nível de composição e com recepção universal.

Pessoas me lembrarão de Yamandu, certo, Yamandu tem público onde for, mas o seu trabalho maior ainda é o de intérprete. Como compositor, dificilmente alguém consegue apontar de memória uma gravação ou tema inesquecível de sua autoria.

Tem também que o seu apogeu acontece justamente no declínio da cultura do disco. Se tivesse gravado nos anos 80 ou 90, época em que a qualidade das gravações brasileiras teve seu auge, talvez a situação fosse outra. Yamandu é um músico da era do single, na qual ninguém mais ouve um disco do início ao fim.

É claro que nada disso diminui a sua grandeza, mas, de fato, essa conjugação autoral ele ainda não conseguiu fazer na sua brilhante carreira de músico. Falta-lhe popularizar-se como compositor e dadas as condições de execução disponíveis, não se pode mais garantir essas coisas para ninguém.

Nesse ponto, eu diria que o músico com essas melhores condições no Rio Grande do Sul ainda chama-se Renato Borghetti. Mas Borghetti, decerto por uma ainda mais radical identificação e caracterização gauchesca, dificilmente um dia será apreciado na medida em que mereceria por suas características e não pelos preconceitos que lhe colam.

Sorte diferente têm estes outros três senhores. Ninguém lhes diz baiano demais, mineiro demais ou fluminense demais..

Fato é que, além do talento e de uma marca pessoal altamente elaborada, todos eles elevaram a musicalidade popular até chegar a um paradoxal alto nível de simplicidade formal. É impossível ouvi-los e não pensar imediatamente no Brasil. Se resta alguma dúvida, é suficiente usar os links abaixo.

Toninho Horta (Igreja do Pilar)

Dori Caymmi (Porto)

Egberto Gismonti (Lôro)

Renato Borghetti (Sétima do Pontal)

Da música para a poesia

Talvez se possa dizer que é uma forma de plágio, mas eu às vezes tento reproduzir por escrito, gramaticalmente, os compassos e harmonia de algumas músicas que me encantam. Em sua maioria, são músicas não cantadas, instrumentais, mas também acontece com músicas com letras e o resultado, isso que é o mais estranho, costuma ser completamente diferente dos versos que os letristas originais acomodaram às suas partituras.

O que eu faço é procurar notar os fraseados, os recomeços, os respiros, acentos, andamentos, ligaduras e etc para reproduzir aquela mesma condução musical e, sob ela, encontrar uma espécie de rítmica subjacente. Tudo isso sem manter qualquer relação semântica com o tema original, já que o que me importa, no caso, é a música em seu estado de pureza sonora.

A música, ao passo que pode induzir (e induz) ao sentimento, por outro lado se produz por uma linguagem estranha, indecifrável, e que antecede ao conteúdo verbal. Prova disso é que muitos esquemas rítmicos mais complexos são intraduzíveis nos sistemas métricos disponíveis para os artistas da palavra. E muitas composições são tão ou mais desconexas do que a maioria dos textos escritos, mesmo os mais experimentais.

Não sei quando eu comecei com isso, mas não foi uma decisão racional do estilo “agora vou fazer assim e assado”. Simplesmente procurei seguir a intuição musical alheia por uma linha paralela, sem buscar qualquer ponto de contato com a “matriz”. É uma atividade inversa a da que é mais costumeira, quando compositores tomam do trabalho de poetas e escritores para musicá-los, como no caso do excelente Literary Jukebox da compositora norte-americana Carla Kihlstedt com a musicalização de e. e. cummings e outros tantos poetas anglófonos.

Porque o meu gosto musical é eclético, meu critério é variado, mas segue menos minhas preferências do que minha percepção musical por si mesma. Desta forma, no meu programa de influência — um programa sem qualquer programa — apenas me deixo levar por melodias que vibram para mim de forma especial, de estilos tão diversos como a música folclórica da Noruega quanto o trabalho de sambistas nascidos, crescidos e falecidos no Brasil. E também música pop. E coisas mais experimentais de que eu gosto.

E erudito também, sim, mas aqui tem um detalhe importante: a música erudita costuma ser longa e, por isso, sua “interface” verbal acabaria por resultar muito maior e complexa do que um poema. E na prosa, à exceção da prosa poética, costuma-se eliminar vestígios líricos pareáveis – embora eu já tenha pensado em contos e relatos breves a partir de composições mais extensas.

Mas há músicas que pareceriam levar a um poema e, de repente, se alargam, aumentam, dizem mais do que o enunciado. Nestas, o que eu percebo é uma espécie de eco, uma reverberação narrativa tomada por repercussões culturais, históricas, etc.

* * *

Uma composição que me levou a essa sensação é a “Valsa sem nome”, composição de Baden Powell e letra de Vinicius de Moraes. Abstraia-se da letra de Vinicius e procure-se perceber que a música em si mesma é matriz inesgotável de verbalização. Mesmo as estrofes regulares de Vinicius e o ritmo sincopado da valsa expandem-se no violão solo de Baden.

Como isso pode ser? É que a vibração da música não se prende ao tema, não se prende a nada, ela é a essência na qual se pode alicerçar qualquer coisa, se ela permitir. Não é que Vinicius não tenha escolhido bem (quem escolheria melhor do que ele?), mas o que eu quero dizer é que enquanto a palavra enunciada é um fecho, a música é uma fonte.

A “Valsa sem nome” é um composição com intensa conotação sentimental, mas ela mesma, nos seus enlaces harmônicos, ultrapassa o lirismo convencional da letra de Vinicius. Ali cabe muito mais e também está dito pela melodia muito mais. Isso eu não diria de, por exemplo, “Samba em prelúdio”, para o meu gosto o casamento mais perfeito da dupla de compositores, na qual a letra teria sido composta alta noite, de uma só vez, após o próprio Vinicius ser convencido de que não se tratava a melodia de duas vozes um plágio de Chopin.

A “Valsa sem nome”, por outro lado, ela é um pelo menos um conto. Um conto sem palavras, inteiramente sonoro. Quando a melodia introduz o tema, para mim o que ela está fazendo é assentar um cenário completo. Nessa introdução, menciona seus elementos e fugas apenas insinuando o desfecho, sem revelá-lo. Só depois disso Baden desenvolve o arco imprevisto, aumentando progressivamente a carga dramática quando ele “estoura” as cordas do violão quase junto ao cavalete, como é sua característica. Depois, ele a repete do começo ao fim suavizando-a ao contrário. E o tema – amoroso, sentimental – conclui-se no drama suavizado do arpejo final.

* * *

Pode ser um delírio meu, de ouvir música dessa forma, mas, às vezes, é assim mesmo que eu escuto. Mas a verdade que também é assim que eu leio, distinguindo intuitivamente a escrita musical da estritamente racional, mais direta e monocórdica. Sem desmerecer o trabalho da segunda espécie de autores, que também admiro, eu prefiro os primeiros. E provavelmente a maioria das pessoas leia e escute música assim sem notar que o faça e se identifique, talvez, com os artistas que se expressam com sensibilidade semelhante à sua.

* * *

O disco em que Baden melhor gravou a “Valsa sem Nome”, “Rio das Valsas”, de 1988, eu diria que ele mesmo é como um livro, tal a riqueza de motivos e complexidade das composições. Em 1967, o violonista havia gravado “Poema on guitar”, mas este me parece mais arranjado e, curiosamente, menos poético. Mas parece que ele tinha essa ideia de diálogo poético-musical muito em mente também.

***

Se um dia eu fosse dar um curso sobre criação literária, meu programa principal seria ouvir muita música. Mas não de uma forma estruturalista, com o aparato sensorial-mecânico — com o aparato contemplativo, da alma.

O homem velho

𝘖𝘭𝘥 𝘮𝘢𝘯, 𝘭𝘰𝘰𝘬 𝘢𝘵 𝘮𝘺 𝘭𝘪𝘧𝘦
𝘐’𝘮 𝘢 𝘭𝘰𝘵 𝘭𝘪𝘬𝘦 𝘺𝘰𝘶 𝘸𝘦𝘳𝘦

𝘕𝘦𝘪𝘭 𝘠𝘰𝘶𝘯𝘨

Então é isso a velhice. Nada de sabedoria, apenas ideias abstrusas do que é feito o mundo e quase nada a respeito do que faz os outros.

Em seu desdém vertical, as árvores do caminho de casa sabem do que estamos dizendo porque são iguais a nós. Para elas, é indiferente a sonoridade das aves que a ocupam. Ou mesmo a plumagem. E a quantidade. Tudo se resume no quanto elas suportam — e parecem suportar muito.

Tu já não suportas tanto…

E mesmo que durem centenas de anos e nós apenas um átimo, as árvores velhas têm uma casca que nos lembra a pele que nos encasaca. E nomes que nos emprestam e caem tão bem: Oliveira, Pereira, Nogueira… Só nunca conheci ninguém de sobrenome Jacarandá. Seria insuperável.

De dentro de um armário, tomas uma peça de roupa que te caía bem, mas agora é provável que te deixe apenas ridículo. É o que pareces pensar enquanto os dedos examinam indecisos a frágil trama do tecido.

Havia ali também um chapéu que te protegeria a calva do sereno da madrugada, mas não está mais, pelo jeito. Tu também já não vais à madrugada.

Pela casa, as molduras das lembranças, perenizadas, parecem te observar. A ti e ao teu próximo esquete. Não caberias em muitas mais, mas, nas poucas ainda possíveis, gostarias de aparecer. E mesmo que naquele momento estejas pensando noutra coisa qualquer, são essas as coisas que fazem sentido.

Mas não é apenas no mundo mesquinho e doméstico que pensas. Este é um engano que cometem os que pensam em ti sem nada saber do que se passa em tua mente. Pensas em muito, ao inverso dos poucos que pensam em ti. Os arquipélagos que manterão, é óbvio, as ilhas inóspitas e selvagens a salvo dos teus pés. A astronomia que não te permite entender se há mesmo vida superveniente a esta, o que talvez redimisse nossa tamanha precariedade.

Já as rotinas menores, que se fazem dentro de casa, estas consumirão a maior parte do teu tempo e energia. E quando estiveres descansado, e a poltrona cessado seus rangidos, poderás pensar melhor nessas coisas distantes, e nos fatos do jornal dobrado e intacto ali perto, no que deverias fazer pela tarde se não fosse melhor, muito melhor, entregar-se à preguiça que aos devaneios do mundo real.

Se a chuva começa é sempre melhor. É o subterfúgio ideal. Não irás molhar os pés nem as costas. Deves cuidar dessa tosse.

Sentado, lembras que gostavas de ouvir uma gravação de Albeniz, e aquele acento fatal. E filmes de máfia. E crimes de amor. Traições e negociatas. E revanches indefectíveis. Mas a chuva… De onde ela tem esse poder encantatório de nos dar certeza de que fazendo nada se obtém mais?

Súbito, levantas. Essa mania de falar a ti como se fosse outro parece erguer outra pessoa ante teus olhos, mas são teus músculos e ossos que notam o esforço. Então és tu mesmo.

Vais à janela. Em redor, a cidade e suas milhares de rotinas em trânsito. Já estiveste ali como os demais, mas não tens saudade.

Num café próximo, ainda notável pela fachada, neste instante parece estar entrando alguém familiar no modo de andar e subir os degraus e de acenar aos funcionários e tomar da mesa que mais apreciavas para olhar o movimento da rua. Parece que te enxerga, a criatura incômoda, mas deve ser apenas impressão.

A velhice, então, é isso. É poderes fazer e preferir não fazê-lo. É gastar tua atenção no essencial, ainda que te escape o que possa ser isso a essa altura da vida. Apesar de tudo, é bom ter a certeza de que ganhas mais em saber do que não precisas no lugar do que ainda poderias aspirar. Se isso é ruim ou bom, tu não sabes. Nunca soubeste. Teu juízo, sempre particular — e ao mesmo tempo o mais inclemente.

Chamam-te à porta, na campainha. Pelo olho mágico, não vês ninguém. Ainda brincam disso as crianças? Que estranho… Prepara-te para sair à rua para investigar e a poltrona, convidativa, parece te chamar em contrário. Dorme mais um pouco… Vais aonde mesmo? Não. Deixa. Contanto que vás, não é preciso explicar. Eu também não preciso mais entender.

Silêncio Ghibli

Às vezes, me acontece uma grande vontade de silêncio. Não é o silêncio da ausência dos decibéis, mas aquele dos pequenos ruídos. A possibilidade de calar os grandes rumores e concentrar-me nos pequenos resíduos. Como se fosse possível prestar atenção contínua no som que o vento causa ao passar pela superfície das folhas e das ramas, no zumbido de uma abelha indo e vindo, numa portinhola de uma casa abandonada batendo para ninguém. Um silêncio como o dos filmes do Studio Ghibli.

Estar no mundo de uma forma silenciosa é um desejo um pouco metafísico e por isso mesmo inacessível. É preciso estar no mundo para saber-se vivo. E estar no mundo significa ouvir incessantemente o que está sendo dito, ler o que está sendo escrito, devorar o que está sendo oferecido. É estar submetido à informação, aos anúncios das coisas e portar a angústia de não conseguir debulhar isso tudo numa forma razoável de consumo. É um empanturramento de vazios. Vazios rumorosos.

Ou você tem livros demais para ler ou tem todas as músicas do mundo à sua disposição ou está zapeando um catálogo labiríntico de uma referência que se dissolve noutra, de uma montanha de produtos que se materializam para você. Coisas que aparentemente existem e estão ali disponíveis, mas nada disso é o que você quer.

O seu desejo é o de poder ouvir a água como um peixe pode ouvi-la. Zunir como um inseto e ser ignorante do zunido. Ter aquelas imensas orelhas de um elefante e o seu mesmo direito de não compreender nada.

Mas não tente encontrar uma porta por onde acessar esse silêncio que não é o dos museus e suas coisas, tapetes, objetos e falsas aberturas. Esse silêncio de todas as músicas quando se as espreme muito. Talvez seja mais simples entrando numa indústria e aquele ruído tão absoluto que não se pode ouvir mais nada, e apenas suporta-se sem saber quando aquilo vai terminar, como uma espécie perfeita de infinito.

Por outro lado, há sons extremamente silenciosos. E há pessoas silenciosas que não ocupam mais do que o espaço que têm, embora se exija cada vez mais que todos estendam a sua existência e a prolonguem e signifiquem para além da própria vida. Logo já não será possível mais morrer neste mundo. Alguma coisa técnica tomará o seu lugar e continuará a sua vida, reproduzindo uma sucessão de hábitos, como se viver fosse apenas esse deslocamento da sua aparência e seus pensamentos repetitivos. Algo como os livros faziam e cada vez mais serão outras coisas e objetos.

A minha vontade, às vezes, era de acessar um silêncio elementar como o que eu sentia quando era criança ao carregar com minhas mãos infantis, numa vasilha, a água para encher os vasos de flores das sepulturas dos antepassados nos dias de Finados, quando acompanhava meu pai. O som da água na vasilha sacudindo era tão silencioso… Mas, se quisesse, eu podia quase tocá-lo e parar até ele com meus dedos. Essa possibilidade que agora me falta absolutamente, que a vida toma de todo o mundo e só mesmo a morte restitui, porque definitivamente não há outra forma possível de obtê-lo. Até mesmo escrever isso não é uma forma de rompê-lo?

Cosmos

A pior coisa que aconteceu na minha vida escolar foi quando, em 1982, a rede Globo passou a apresentar aos domingos, após o Fantástico, a série Cosmos, projeto de divulgação científica de Carl Sagan e sua esposa Ann Druyian.

Eu não assistia Cosmos no horário noturno, assistia a reprise da semana anterior aos sábados pela madrugada. A série era reprisada ali pelas 6 horas da manhã e não havia nada que me impedisse, a não ser a falta de energia elétrica, de assisti-la enrolado numa coberta naquelas típicas manhãs frias de Bagé.

Eu nunca tive coragem de assistir ao remake de 2004, com a apresentação de Neil DeGrasse Tyson. Seria uma espécie de profanação da memória sobrepor as novas imagens de computação gráfica àquelas primeiras, que se pareciam ainda um pouco aos efeitos de Jornada na Estrelas e Perdidos no Espaço. E a trilha de Vangelis, insubstituível, e que depois foi responsável por que se impedisse sua veiculação e reprodução em função de copyrights.

Com Cosmos eu fiquei sabendo de coisas que a educação formal nunca me ensinou. Pode ser que a memória me traia, mas eu tenho quase absoluta certeza de nunca ter tido nada além de rudimentos das ciências exatas e humanas e mesmo assim ter progredido. Ao longo dos anos escolares, não lembro de ter tido uma explicação mínima sobre o trabalho de Charles Darwin, de Galileu Galilei, de Nicolau Copérnico, J. Kepler, sobre os gregos nada além de Pitágoras (sem nenhuma contextualização de quem foi o sujeito), nada de filósofos e de literatura apenas nomes e períodos sem que precisasse distinguir nada. Em história, um vai e vem de datas desconexas, sem causa nem efeito. Nem em religião aprendia-se nada, isso que a minha era uma escola católica. A ciência sempre dogmática, o oposto do que deve ser. Arte? Nada. E assim tudo.

Quando passei no vestibular, pensava em como alguém com a minha educação poderia se sair tão bem em história, literatura e língua estrangeira sem ter estudado quase nada disso, afinal, precisava me concentrar nos meus déficits, as exatas, ou melhor, os decorebas das exatas. Eu tenho tanto horror às exatas que me recuso a fazer cálculos com números maiores de 1 dígito sem usar uma calculadora. Faço questão de não guardar nada disso e nada do que seja conhecimento aleatório no meu cérebro.

Com Sagan eu entendi pela primeira vez a importância das bibliotecas e quando fui conhecer a única que havia na minha cidade natal, soube que a minha ignorância não era individual, mas coletiva. E que certamente algo estava sendo sabotado em nosso país por meio de uma educação horrível, que ainda predomina. Com Cosmos eu entendi que deveria fugir à mesquinharia e ao reducionismo como o diabo da cruz. E que é sempre melhor assumir a ignorância do que passar recibo de prepotência.

Pessoas que não conseguem relacionar história e ideias não poderiam estar lecionando, mas há aos montes. Apesar de falar da história do universo, Sagan estava sempre atento ao essencial: de que o conhecimento que não leva a humildade é o caminho mais estreito em direção à violência e opressão. Sagan inutilizou para mim quase toda a educação que conheci depois. É uma lástima. Mas eu o agradeço até hoje por isso.

São Juéverson

Se houver justiça nesse mundo, no futuro, um dia de veneração será reservado nesse país brasileiro a São Juéverson.

Ele ainda santo não é, mas é questão de tempo para que se reconheça a beatitude dessa criatura de Deus.

Eu o conheço há pelo menos meia dúzia de anos, que é o tempo em que o vejo, no supermercado, do lado de dentro do balcão da fiambreria. Sempre a mesma placidez, o gesto imparcial, a correção platônica que o Juéverson oferece de bom grado aos clientes dos seus patrões que, não tenho dúvida disso, sequer suspeitam da sua existência.

Do Juéverson nunca ninguém ouviu um “Tá bom assim?”, diante a um deslize de microgramas nos fatiados. Ele corrige seus erros, coisa que a maioria das pessoas simplesmente não faz, quando intencionalmente não piora, sabe-se lá por que razão. E acerta as pilhas de muzzarela, presunto ou mortadela com a precisão de um robô e a delicadeza de um ourives.

Mesmo nunca tendo ganhado um elogio por isso, o Juéverson exibe aquela satisfação inatacável de quem está fazendo o certo pelo certo. Nem o nome esdrúxulo nunca foi capaz de lhe importunar o semblante sereno, mesmo quando clientes engraçadinhos erram por gosto a sua pronúncia, suprimindo o “u” intruso e o “v” trocado pelo “f”.

“É Juéverson mesmo! E eu adoro o nome que a minha mãe escolheu pra mim!”, ele diz sempre que indagado a respeito, sem nem suspeitar do assédio e da importunação embutidos ali ou fazendo parecer que não suspeita.

Aos “tira uma pouquinho”, “bota mais umas duas fatias”, “não, troca pelos daquela outra pilha ali”, “acho que eu não vou querer desse” e “eu não falei duzentas gramas?” de todo o santo dia, o Juéverson exibe sempre o seu sorriso impávido, de Gioconda. E continua o serviço sem nunca olhar para o tamanho da fila, mas plenamente atento à precisão das solicitações inacreditáves que lhe fazem.

No futuro ainda mais distante, se houver mesmo justiça no mundo, não se dirá mais “paciência de Jó”, mas “paciência de Juéverson”.

Mas e o milagre para ser santo? Devem estar fazendo contas os incréus…

Considere apenas que, mesmo em face do seu direito ao homicídio, ele jamais o cometeu. No meu, o critério é o bastante. Não por isso, há mais de 10 meses o Juéverson não erra um pedido. É mandar e pesar. Sempre na bucha. O que seria isso, inclementes, se não ajuda divina?

São Juéverson, residente desde o nascimento na Restinga, em Porto Alegre, filho da dona Mariana e do seu Zacarias. Funcionário na fiambreria do Zaffari há seis anos. Ficha limpa. Padroeiro do queijo laminado e da salsicha a granel.

Ex-fumo

Você nunca ouviu um poeta queixando-se que perdeu as palavras. Isso quando acontece ao poeta lhe põe em silêncio. O seu ânimo recolhe-se seguramente de um modo que não se diga que ele até ontem escrevia como se pudesse impulsionar desde si uma máquina geradora de sentidos. Ele está quieto e pensa que a máquina quebrou-se e talvez nunca mais volte a engrenar. E ao pensar nisso ele (ou ela, tanto faz) vê o desfile de palavras a comando dos outros perguntando-se onde nele foi parar esse fenômeno que lhe fazia adiar compromissos, atrasar deveres e que às vezes o arrastava como um animal é subjugado por uma força superior que, aparentemente sem razão nenhuma, agora esmaga seus olhos no nada, de modo que nada se vislumbre para ele ou a partir dele. O poeta tomando um café e nada lhe ocorre a não ser a noção de que talvez nunca mais volte a ser um poeta. Ele está cansado, sim, da semana, e pensa em tomar banho, lavar-se. Talvez assim remova-se nele o musgo da mudez e da fadiga mental que o castiga da mesma forma que antes o fazia sentir-se livre pela palavra, liberto por ela dos sentimentos inacreditavelmente expostos em versos, como sacrifícios. A palavra o libertava e ele tinha um pacto secreto com elas, que lhe cediam o direito de criar metáforas mais esclarecedoras (pelo menos para ele mesmo) que a ciência exata. O poeta cheio de competências, o ser absoluto de si, as suas habilidades como talheres estranhamente preparados para um banquete que já não será servido e essa consciência consumindo a sua fome, legando em seu lugar a inapetência do símbolo e do signo, a incomunicabilidade que lhe dá certeza que qualquer palavra sua será proferida no vácuo e de lá despencará para uma margem desconhecida do universo onde vivem palavras desconexas, versos inacabados, vírgulas, apóstrofos, reticências. Olhando para isso, o poeta não enxerga direito o que se dá no mundo e não entende o que aos outros ainda parece tão claro. Confunde-se com o que lhe parece ilusão, mas é real. Distingue mal entre os mundos, o seu e o dos outros. Isso me aconteceu mesmo? Ele pensa… Ou foi a outra pessoa? Ele pensa também como poderia, nesse caso, dizer o que fosse para estabelecer um nexo mínimo, uma coerência mínima, entre o mundo interno e o externo. O poeta que perdeu suas palavras pensa que poderia, nos seus melhores dias, ter suspenso no céu uma nova constelação, ter arranjado novas formas da natureza, ter levado sossego ao desassogado, conforto aos desesperados, ter feito alguma coisa consequente e não se desperdiçado em futilidades e compromissos para consigo mesmo. Com suas palavras deveria ter realizado uma obra factível e não uma coleção de desacontecimentos. O poeta pisca os olhos e olha para tão longe quanto consegue e de pronto a distância se resume. Tudo é próximo, rente, e se esfrega nele. Ele coça os olhos e a nova noite não lhe dá esperanças, mas a contabilidade do passado aumentando como uma cadeia de montanhas se acotovela noutra. E assim se formam o tempo e a memória. A consciência de que é dispensável já não o assombra, muito mais ser considerado. O poeta pensa em fumar e lembra que já não fuma. Ele escreveria com um cigarro, pensa. Pensa que o fumo lhe deu (em intensidade e gozo) mais poemas que as palavras, e de bom grado. Estranho que não é o fumo que lhe tenta, mas elas. Malditas… Onde o deixei?

A laranja mágica, 2

Com o tempo, parece que as papilas gustativas vão se tornando mais insensíveis. Insensíveis e esquecidas. Não faz muito, no verão, tomei dos caroços de uns butiás que me presentearam e os parti ao meio em busca de suas amêndoas. Nunca encontrei noz como a dos butiás, mas também não encontrei vestígio do sabor que passeava na boca quando criança e quebrávamos entre pedras as pequenas esferas até recolher de lá de dentro as quatro sementes, cada qual acomodada numa câmara interna da noz, como uma espécie de leito germinativo. Aquilo me causou como uma desolação sensorial. A memória da infância, esse patrimônio que cada um traz consigo, sentia-se ludibriada, desenganada.

Outros frutos me causam a mesma sensação de reencontro frustrado. Os caquis melosos que escorrem pelos dedos. As maçãs nas quais uma acidez confidencial deveria despertar memórias inesquecíveis, mas que pelo jeito foram esquecidas pelos próprios frutos. As laranjas e sua doçura inconfundível. Dentre as laranjas, especialmente as mágicas, de umbigo. Aquelas que dão apenas nas árvores mais frágeis e anciãs, perdidas no fundo dos pátios de casas humildes e antigas que ninguém se lembra de tombar, nas quais não há placas indicativas e às vezes nem numeração.

Se há o que eu lamento é que muitas pessoas jamais encontrarão uma dessas laranjas mágicas na vida. Ao passarem por um casinha como essas a que me refiro, não imaginarão ser possível que lá dentro daquela pobreza possa se encontrar o mais doce dentre os frutos.

Ontem, com o frio finalmente instalando o inverno, saí um pouco de casa para caminhar sem muito destino. Não ventava, o Minuano não acompanhou a frente fria dessa vez e pude caminhar passando as ruas da Cidade Baixa até a Azenha, onde casas como essa há muitas nas transversais à avenida tão vilipendiada de Porto Alegre. Casas de muro baixo, grades devassáveis e portinholas protegidas por cães mansos, incapazes de fazer mal a quem quer que seja.

Uma delas, especialmente, me lembrou da casa de um amigo antigo. Se vivo, que estará fazendo da vida? Viverá em Bagé ainda, onde nos conhecemos e me ofereceu a única laranja mágica que um velha laranjeira do pátio da sua casa tinha a oferecer? Ainda existirá a casa ou foi derrubada para um novo prédio, um novo bairro, outro lugar completamente diferente? Um edifício?

Não tenho ideia… Eu não sei. E, por não saber, deliro que naquele pátio sem muros, contra o céu, talvez a laranja esteja lá mais uma vez, em mais um inverno. Um manjar oferecido como um presente, por natureza tão miserável quanto aquela árvore. E que ele a esteja degustando num banquete único e sazonal, e por causa do sabor doce e incomum do fruto, lembrará de quando eu a devorei como um eclipse engole de uma vez só a lua inteira.