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Deficiência, previdência e risco social no Brasil

Um fantasma ronda os dependentes das políticas assistenciais brasileiras: o recadastramento. Não é novidade a aparição nem muito menos inovação do atual governo. No anterior, diversas vezes os titulares das pastas econômica e fazendária cogitaram medidas semelhantes, tendo no alvo os benefícios de aposentadoria e o próprio Benefício de Prestação Continuada (BPC) .

Interessa saber que se trata de um benefício de valor muito baixo e destinado a atender famílias com um renda per capita de até R$ 353,00. Ainda assim, de acordo com declarações de autoridades federais como o ministro Rui Costa, da Casa Civil, e Fernando Haddad, da Economia, seu somatório estaria impactando o orçamento federal numa esfera bilionária, contribuindo para gastos previdenciários extremos que estariam forçando ainda mais o déficit previsto para o ano de 2024.

Tendo sido cogitadas medidas legislativas unilaterais, como a edição de uma MP disciplinando os cortes e medidas administrativas, e decretos, a posição do governo acaba afligindo pessoas em situação de vulnerabilidade econômica que dependem do BPC para dar conta, como possível, dos altos custos de vida que incidem no Brasil sobre recursos privados de atenção à deficiência. A ideia do governo é mais impessoal: o estimado é que, com as medidas, poderão ser poupados até 26 bilhões de reais destinados às pessoas com deficiência que vivem na pobreza, fora do mercado de trabalho e idosos que nunca contribuíram com o INSS.

Órgão que provavelmente assumirá a tarefa do “pente-fino”, o INSS tem contribuído no diagnóstico do “rombo”. Para o Instituto, a judicialização de medidas concedendo o BPS, aliados ao aumento progressivo dos casos de autismo beneficiados e possíveis fraudes seriam as causas do incremento dos gastos sociais. Não se cogita, por exemplo, que a própria situação econômica do país esteja empurrando progressivamente pessoas para além da linha da pobreza. Certo ou não, é o modo que o governo encontrou de enfrentar a situação que, por natureza técnica e jurídica, corre o risco de agravar a vida dos beneficiários, uma vez que mesmo o teto de recebimento é muito inferior ao necessário provimento das condições de existência de quem quer que seja.

Desnecessária uma formação em Economia para se perceber que a sustentabilidade econômica das famílias de baixa renda está sempre por um fio. Ser pego no pente-fino por uma diferença mínima é, portanto, de uma indignidade contábil. Quem não paga as contas com uma renda per capita de R$ 353,00 não pagará com outra de R$354,00. A injustiça não se aplaca com isso, apenas se aprofunda. O propalado modelo social da deficiência, se serve para a confabulação teórica de classes abastadas, sacrifica sem clemência as pessoas mais pobres que não encontram saída a não ser desertar de atendimentos, de educação, de tudo. Essa espécie de solução técnico orçamentária que nulifica as individualidades tem por único objetivo desonerar o Estado para investimentos politicamente mais rentáveis. O que se destinaria numa avaliação biopsicossocial  a pessoas que por razões econômicas não podem mais se sustentar nem com o auxílio? Pois é para isso que serve a assistência social no modelo econômico vigente (não no “modelo social”), para ajudar a custear um sistema quase de todo privado. Sem nem isso, para quem disso precisa, restaria exatamente o quê?

Também se deve lembrar que, ao ser apontada a judicialização das concessões do BPC, o que se revela como background é que sua concessão pericial não tem sido facilitada. Isso impacta diretamente o trabalho da Defensoria Pública, órgão jurídico que visa proteger as camadas sociais menos favorecidas. Além disso, a necessidade expressa uma condição de vulnerabilidade social muito grande e, para imagem política do país, isso também não é nem um pouco positivo, ou seja, o pente-fino é também uma espécie de mal que vem para o bem — resta saber o bem de quem.

O governo, por sua parte, parece disposto a enfrentar os dissabores e o desgaste da medida. Da necessidade de cortes nos gastos públicos dificilmente alguém discordaria, mas no momento é o que está na linha de tiro. O que será decidido e realizado é outra situação. E o desgaste político, quando atinge a pobreza, parece sempre pesar pouco quando comparado a outras medidas que colaborariam com a melhoria da situação econômica. É uma decisão que será avaliada e pesada no futuro eleitoral por quem conta com o benefício. Que é uma tradição, nem se comente. Cortes e pentes-finos no andar de baixo no Brasil já são história.