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Michael Jordan, poeta

de quando Michael largou a poesia e se tornou um gênio

Há quem maldiga o seu algoritmo por muito pouco. Não eu.

Eu tenho descoberto com ele coisas bem interessantes, como, por exemplo, que o maior jogador de basquete de todos os tempos também tentou a carreira de poeta. Ainda que tenha sido um poema só, e ao que tudo indica dedicado à sua mamãe, ele tinha tudo para se tornar também um gigante dos versos.

É isso mesmo! Quem me revelou isso foi um vídeo do Reels (aqueles vídeos aparentemente aleatórios que cronometram milimetricamente a atenção dos indivíduos para lhe dar e mais mais do mesmo, como se fossemos hamsters).

É por onde o algoritmo parece descobrir o ponto fraco do freguês, a sua droga favorita, a sua perversão secreta, a sua obsessão patológica e passa a lhe oferecer mais e mais daquilo para que ali ele fique o máximo de tempo possível, seja assistindo a vídeos de gatinhos fofos ou coisas que às demais pessoas não importa nem convém saber.

Os vídeos do Reels são, não mal comparando, a cracolândia das redes sociais.

Depois de um tempo variando a oferta de conteúdo, finalmente o algoritmo descobriu que, no meu passado, eu fui um jogador de basquete. Primeiro amador, depois ainda amador e finalmente ex-amador. Essa foi toda a minha carreira.

Mas descobriu o algoritmo que eu ainda hoje posso passar horas sem fim assistindo principalmente às jogadas dos meus diletos gênios da bola ao cesto.

Os gênios são muitos, em todos os tempos, mas divindade, como todos sabem, há uma apenas. Atende pela nome de Michael Jeffrey Jordan, o imortalizado número 23 do Chicago Bulls. Michael Jordan (MJ), o jogador poeta. Sim, talvez o autor de um poema só, escrito na High School, como saber? Mas que importa? Não se pode ter preconceito com detalhes secundários como esses. A poesia é um caminho aberto a todos que se atrevam a trilhá-lo.

Mas desde que eu vi aquilo, entendi subliminarmente que ele, além do basquete, sempre esteve envolvido numa, como eu quero demonstrar, poética.. Exagero? Provarei que não. Pelo menos me deixem blasfemar com liberdade..

Na verdade, nem é preciso que eu prove muito. Os vídeos de Michael estão aí e são auto explicativos. Basta que se perceba a sua atitude em relação ao objetivo do jogo e cada investida sua contra a cesta adversária para que se entenda a intensa catarse a que ele se sempre se entregou ao jogar.

No basquete, como todos que já o praticaram reconhecem, o objetivo da vitória final é secundário, detalhe decorrente de muitas outras coisas. O que importa é que a bola caia no cesto. Quantas tentativas num jogo profissional isso acontece para que o objetivo se cumpra? Centenas, milhares.. Mas cada uma das tentativas é um esforço total, isso em MJ é mais que evidente. E o incrível nele é que sempre o fez de inúmeras maneiras diferentes. Não é uma jogada especializada apenas, um lance de 3 pontos infalível, mas uma versatilidade aliada ao foco que o fez obter o que obteve: ser ainda hoje considerado o “goat”. O bode. O greatest of all times..

Na verdade, o que acontece no basquete são milhares de pequenos jogos dentro de um grande jogo. Há os arremessos de longa distância, média, infiltrações, enterradas.. Para cada uma dessas modalidade de encestamento, diversas possibilidades específicas: reversão, antecipação, explosão, etc etc etc.

Além disso, o jogo em quadra, os movimentos, a levitação, a percepção espacial e de oportunidades. Tudo isso praticado com uma necessidade de solução imediata, de pronto, irrefletida. MJ foi um mestre exímio em tudo isso. É como fosse um Musashi das quadras, um Bach, um Mozart, um Shakespeare, um Machado da bola em gomos.

Mas o que nele há de diferente dos outros jogadores?, indagaria um neófito no melhor de todos os esportes.. O Lebron James não é tão jogador quanto ele? Kobe Bryant não foi? Magic Johnson? Oscar Schmidt, o “mão santa”? A Hortênsia?

Esse é o tipo de heresia que não se pergunta jamais a um basqueteiro..

A questão, para o que interessa aqui, é que nele, MJ, há um senso de obtenção do efeito que é completo. Não há um acaso sequer. E mesmo no erro, o erro é menor, ele não é valorizado, perde o efeito, é como se não existisse em face da nova tentativa. Isso é o suprassumo da vontade criadora. E é aí que justamente reside o que chamo de “poética desportiva” deste hoje senhor sexagenário e multimilionário.

A bola tem de cair e ele vai empregar toda, completamente toda a sua energia para obter um, dois ou três pontos no épico que é cada jogo por inteiro. E isso a cada lance. É um desgaste de atenção descomunal, como sabe bem quem já tentou jogar basquete por mais de cinco minutos.

* * *

Apesar de que prefiro ver aqueles lances bem antigos em que Jordan simplesmente ultrapassa os adversários rumo a mais um dunk destruidor, tem um lance que é muito emblemático na sua carreira. Aconteceu num jogo contra o Los Angeles Lakers, na final do primeiro do seus títulos, quando suplantou outro gênio das quadras: Magic Johnson.

Numa infiltração em três passos (bandeja), nosso herói se depara com uma impossibilidade espacial, uma barreira imprevista, o que ocorre junto ao próprio esgotamento do seu movimento de três passos. Pois de algum reflexo cinético felino, ele simplesmente muda a trajetória no ar e faz com que a bola passe por um espaço humanamente impossível e que não se encontrava bloqueado pelos dois defensores. Mas a bola passa. Passa e cai. Dois pontos só e daí, diria uma pessoa abilolada pelo pragmatismo.. Uma obra-prima do esporte, diriam os fanáticos.

Michael Jordan – famous switch hands layup

Você provavelmente já viu um cesto de lixo de um escritor que faz justiça ao nome, isso antes do computador.. É o mesmo do que se dá na quadra de basquete. Muitas bolas fora até a obtenção do que realmente tem valor.

Isso independente das suas escolhas formais e estéticas — embora elas possam até garantir algum efeito extra no lance (mas jamais antecipar seu efeito). Isso sempre depende muito de quem joga, dessa habilidade, mas também, complementarmente, de quem assiste. É preciso fazê-lo, simplesmente. Just do it, como diz o lema dos tênis..

Pois assim precisa ser um poema. A bola tem que cair.

Nessa minha livre analogia, o poeta tem que fazer tudo, absolutamente tudo, para que a maldita bola caia. Isso de atirar para cima e talvez ela caia, com o perdão da metáfora, não é a mesma coisa. Não tem valor algum. É sorte. Acaso. Valem dois pontos no placar, mas não têm graça alguma..

A ação poética, nessa perspectiva comparativo-desportiva, é o emprego dessa energia, sem perda de tempo, eficiência ou atenção. O treino não vale. A brincadeira também não. Magic Johnson, um brincalhão, diziam que era muito mais competitivo que Michael Jordan.. As pessoas enganam muito.

A ação se dá quando o sujeito entra em quadra e faz tudo que pode fazer, com o maior empenho possível, até que pareça aos olhos dos outros uma trivialidade (que ele, no entanto, sabe perfeitamente o quanto lhe custou obter).

É o que fazia Michael Jordan ao jogar.

* * *

O poema juvenil de Michael Jordan é imprestável. Felizmente ele foi jogar basquete e não continuou naquelas chorumelas..

* * *

A má notícia aqui é que o algoritmo também descobriu que eu tenho fascínio em vídeos de répteis. Valei-me Freud, mas eu simplesmente gosto de observar a existência desses seres primevos. Se querem me interpretar, bom proveito, eu não me importo..

Mas eu tenho pensado há tempos também numa aproximação poética sobre os répteis.. Que que tem de mais?

* * *

Estou pensando nisso enquanto assisto às finais da NBA..

Que jogadores canhestros e desgraciosos…

* * *

Que os dragões os devorem vivos..

Poesia e mito indo-europeus

Eu não entendo uma linha de hitita, do antigo nórdico, do avesta, do protocelta, do védico e nem do grego. Mesmo assim, desde que o abri pela primeira vez, não consegui largar mais esta lindeza de livro que a editora Mnema lançou há poucos anos por aqui, do filólogo inglês Martin L. West. É o livro que tenho lido neste período extenuante que temos vivido aqui no RS.

Eu certamente tenho me valido dele como forma de levar minha mente para muito longe daqui, ao menos pelo tempo possível, da leitura. Mas isso se deve muito mais à fluência com a qual o livro foi escrito do que por uma razão “escapista”.

Mas M. L. West, o autor, ele tem me feito acreditar que, se não conheço os antigos idiomas a que ele se refere, consigo compreender perfeitamente como estes povos antigos articulavam linguagem e arte poética.

Para além da constatação de que os recursos retóricos e linguísticos de que dispomos hoje têm uma história mais antiga do que presumimos, o livro em si é uma viagem muito completa (e complexa, mas não inacessível) através do tempo, comunicando culturas que se transformaram e dissociaram séculos afora, mas mantendo equivalências que os filólogos revelam com a mesma facilidade com que eu, por exemplo, posso abrir uma janela ou folhear um livro. É uma naturalidade espantosa e acachapante.

Também não demora muito para que se dê a percepção de que seu autor não é apenas versado num ramo linguístico x ou y, um especialista, mas que detém aquela condição meio que do magnífico, que é a capacidade de transitar entre ciências sem vacilar, algo bastante incomum quando comparado às fragmentárias ciências humanas do séc. XX, nas quais as teorias tornaram-se disciplinas mais ou menos auto suficientes e, talvez por isso, pareçam aos leigos, como eu, sem muito apoio no tempo e nem no espaço.

O leigo é como um aluno, um desiluminado. E não são todos os autores (na verdade, uma minoria) que mantêm a dignidade de estabelecer contato com a sua condição precária. A quinta-essência desse distanciamento parece se dar justamente na filosofia da linguagem e suas hipóteses teóricas contemporâneas, as quais a linguagem poética, sustentada na metaforização e suas figuras, esclarece às vezes com mais sutileza do que em teses que chegam ao extremo hermético da algebrização. Os leigos, exaustos e impotentes, não tomam parte nessa especialização, até porque o caminho oposto, o da historicização, é muito mais encantador, como costumam ser os nomes em relação aos números, pelo menos no meu gosto..

Apesar de ser um livro de filologia antiga e centrado no estudo comparativo das línguas indo-europeias, é um trabalho de encantamento no qual o autor se dirige à mitologia mais ancestral com uma facilidade desconcertante. Então, pode-se pensar que se trata também de um livro de mitologia e religião comparadas. Mas não foi dessa forma que eu o li, ou melhor, estou lendo ainda. Eu estou lendo como literatura, como se as referências que ele realiza sobre o mundo da antiguidade clássica fossem personagens.

É dessa forma que eu sempre li os livros de história antiga e mitologia, desde J. Frazer até M. Eliade e Jung. É uma leitura parcial, sem dúvida, mas que me desobriga da tarefa de me deter no incompreensível do detalhismo e de aproveitar a escrita como uma tarefa “homérica”, de quem se serve da eloquência alheia para desnutrir os limites da própria ignorância.

Autenticidade poética

Se alguém procurasse recuperar o que de relevante se passou na poesia rio-grandense no ano de 2022, dificilmente poderia deixar de registrar a descoberta de um poema inédito de Mario Quintana no interior de um dos 5.000 exemplares obtidos de uma coleção particular por um livreiro de Porto Alegre.

Jornais e leitores de todo o país correram para anunciar a descoberta, assim comprovando a vitalidade e o interesse que o poeta ainda desperta Brasil afora, quase 30 anos após a sua morte.

Apesar de trazer sua assinatura ao final do poema, logo se procurou verificar sua autenticidade. Fizeram-no o professor e diretor do Theatro São Pedro, Antônio Hohlfeldt, e Gilberto Schwartzmann, escritor e presidente da Associação de Amigos da Biblioteca Pública Estadual do RS. Uma vez “certificado” o original, o poema foi adquirido pela associação para daí ser doado ao acervo da Biblioteca e exposto na Casa de Cultura Mario Quintana entre outros manuscritos e objetos do poeta.

Fico eu pensando: mas não bastaria bater os olhos nos versos do poeta para saber-se que não é uma falsificação?

E penso mais: como é que se poderá daqui a 30, 50 ou 70 anos investigar a autenticidade de um inédito de quem quer que seja? Como é que se poderá saber que um poema corresponde a uma autoria quando somos inundados por deep-fakes inacreditáveis de tão perfeitas? E o que dizer da imensidão de adulterações, repetições e falsificações que trafegam internet afora sem qualquer certificação?

Por uma “dicção” particular não será. Sabemos pelo exemplo de Quintana, que é um poeta dos que se costuma denominar por “inconfundível”.

Neste ponto, vivemos num tremendo impasse. Por um lado, não se imagina que se possa refrear a pulsão informativa das redes, muito menos filtrá-la. Uma iniciativa desse porte exigiria o emprego de inteligência artificial e, até onde eu sei, não há como se programar o gosto estético do que é puramente técnica, ou garantir sua incorruptibilidade. Por outro, a noção de materialidade da obra escrita esboroou-se, tornando impossível sua organização; isto significa que as bibliotecas não têm mais condições de comportar tudo o que é escrito e os meios dissolvem-se na tentativa vã de abarcar o aluvião digital.

Mesmo com isso, o impasse da autenticidade permanece.

Tudo o que poetas de todos os tempos sempre aspiraram foi a ambição de não serem confundidos com ninguém, mas aí, de repente, se faz necessária uma investigação.

A bem da verdade, ninguém aceita muito bem a despersonalização de um estilo, nem sua generalização. Todavia a vida digital assim exige. É uma imposição do meio que todo o publicado seja automaticamente liquidificado. E a todos se exige uma espécie de self adaptável, como o os oferecidos pelos apps de “desenho” inteligente.

Como vai ser isso no futuro, é no que eu fico pensando. Alguém comprará um poema inédito de alguém para expor aonde? Numa biblioteca? Biblioteca de que espécie? De postagens do Instagram?

¿Que sé yo?

Poesia para quê

Não foram muitos os críticos (críticos de verdade, com carreira nisso) que comentaram comigo sobre coisas que andei escrevendo nessa última década. Afora estes poucos, recebi de alguns outros até em mais evidência um “gostei”, um “impressionante” e alguns “lindos”, embora estes, para o efeito de crítica, valham muito pouco, se é que valem algo. Mas esses poucos a quem me refiro foram muito especiais. Detiveram-se em mim muito mais que eu merecia e, aparentemente, mais que habitualmente críticos e estudiosos hoje parecem reservar à leitura, haja vista seu afinco e comparecimento nas redes sociais.

Curioso é que as duas pessoas em questão, os professores Cícero Galeno Lopes e Carlos Felipe Moisés, leram coisas diferentes. O prof. Cicero leu minha prosa, meus contos rurais, enquanto que o prof. Carlos Felipe Moisés leu minha poesia, a primeira versão dos poemas de Falso Alarde. Trágico, mas não curioso, é o fato de que meu diálogo com eles foi brutalmente interrompido pela morte de ambos, fatos que aconteceram num período relativamente curto, de poucos meses, no ano de 2017. Certamente não perdi apenas eu com sua partida, mas para mim foram muito impactantes, ainda mais porque a ambos fiquei devendo respostas que, por minha demora, não lhes chegaram nunca.

No Rio Grande do Sul, o professor Cícero estudava – como pouco se estuda hoje – a vertente literária que trata do mundo rural do interior do estado. E eu só posso restar agradecido, senão espantado, porque ele não apenas leu como entendeu o propósito daqueles contos tão sentimentais que reuni em A aposta. E notou, como eu havia notado por outros caminhos, a ausência paulatina tanto de uma aproximação temporal ao presente (e um consequente congelamento histórico), quanto do preconceito crítico e acadêmico quanto aos temas rurais e do interior, fundantes (e de repente abandonados) da literatura rio-grandense.

De outro lado, o professor Carlos Felipe Moisés tinha (como eu tenho) preferência declarada e manifesta a respeito da poesia mais subjetiva, não tão voltada ao mundo da concretude e objetividade. Além disso, tinha ele um dos estudos mais consistentes a respeito da poesia de Fernando Pessoa no Brasil, talvez comparável apenas ao da professora Leyla Perrone Moisés. Eu, como diletante admirador da obra pessoana, pude ter uma nesga da sua compreensão a respeito de Pessoa e, por felicidade empírica, muitas impressões coincidentes. No entanto, para além disso e ao contrário do que aconteceu com Cícero, a interrupção brutal de nossa correspondência pode ser continuada pela leitura de seus livros de teoria literária. O mais recente deles, este do qual quero comentar um trecho e vai a capa anexa, foi lançado em 2019 pela editora da UNESP, uma editora fabulosa mesmo, talvez hoje a melhor do Brasil em humanidades.

Eu não tinha ideia de que também compartilhava com ele um sentimento dúbio, dúbio de duvidoso, na relação entre poesia e sua “presença” virtual, nas redes sociais. Apesar de seu livro ocupar-se de outras coisas, como as questões políticas e sociais da poesia e suas peculiaridades, de alguns temas já tradicionais como a “inspiração” e a sobrevivência da poesia e suas linguagens, mas é a respeito da leitura, do momento da leitura, que ele decide fazer um voto de desconfiança em relação ao substrato de permanente diluição das redes sociais, no qual pelo ralo temporal fundem-se todas as qualidades de texto e de metáforas, conformando um todo avassalador baseado muito mais na excitação alterada do que na reflexão, muito mais em pensamentos descartáveis que em fluxos de consciência.

Se eu houvesse combinado com ele de unirmos impressões, provavelmente o resultado não seria mais coincidente, mas nunca tratamos desse assunto. Eu ainda hoje não sei dizer se sinto mais estranheza ou complacência quando vejo poesia circulando nas redes sociais. Não é que pense que não possam ou devam poetas deitar seus versos no fluxo contínuo das redes, mas sempre isso me acaba acusando a sensação de anulação do ritmo poético, de dissolução mesmo. Já não se trata mais de uma pesca sem isca, mas de outra ainda mais efêmera, sem linha, sem anzol, só mesmo uma aparência do que de fato é. E isso, todo esse potencial, acaba sempre soterrado pela digressão hostil, pelo sarcasmo e, não raro, pelo escárnio, uma espécie de anti-poesia essencial. É um convívio impossível e cada vez mais doloroso esse.

Também não é só a poesia que é agredida nesse meio ambiente, isso é evidente. A própria comunicação interpessoal acaba reduzida a um ritual simbólico elementar no qual a palavra, a palavra mesmo, é no mais das vezes dispensável. A reação emocional vale mais e é mais visível em seus likes, smiles e loves. A significação empobrece e as relações são diluídas e às vezes simplesmente perdidas no vácuo virtual. Não me espanta que tanto o professor Cícero quanto Carlos Moisés fossem pessoas não afeitas às redes. Mas gastavam e gostavam de gastar muitas e muitas palavras para se fazer entender e isso numa oferta desinteressada.

Essa “coisa”, que é uma coisa rara e ao mesmo tempo poética e prosaica vai se transformando com a internet, é isso que eu sinto, assim como a leitura paciente, demorada e que cumpria a tarefa de nos ensinar a perceber como se da primeira vez, o nunca imaginado nem sentido, como ponderava Carlos Felipe Moisés. Agora é reforço sobre reforço no próprio viés de confirmação. Like sobre like, love sobre love. Há de haver bons poetas nesse mundo assim, sem tempo, certamente há, mas vai ser muito mais difícil para eles nessa disputa interminável pelo mais novo, quando já não há mais opção entre durar e não durar se tornou para a poesia o único tempo possível.

A magia apenas

De toda a poesia, prefiro a metafísica. Penso que tenho mais facilidade (e curiosidade) em compreender o inapreensível, o que passa e o que não se registra do que a concretude das coisas materiais. Além disso, penso que as coisas concretas estão muito bem nas mãos dos prosadores, dos engenheiros, arquitetos, construtores e pedreiros. Não me ocorre competir com sua perícia em desenhar e erguer o mundo das coisas nem por hipótese. Também não me ocorre competir com os estudiosos das relações sociais a primazia da interpretação do mundo político, por isso gosto menos da poesia politica do que da romântica, mesmo que esta se detenha ao mínimo eu. Pois é deste mínimo eu, e especialmente da retina para dentro, que me ocorre ser a grande competência da poesia, para onde qualquer ciência parece incapaz de descrever e qualquer credo se mostra insuficiente para confortar e tudo é tão somente tentativa e erro do ser na sua travessia pela vida.

Dos poetas brasileiros, dos antigos – que dos contemporâneos é impossível saber – ao menos, os metafísicos nunca foram muito valorizados por aqui. Isso talvez porque não seja essa a nossa maior vocação como país tropical, exposto, luminoso, etc. Mas há muitos poetas com momentos introspectivos e metafísicos muito poderosos. Penso no primeiro Vinícius de Moraes (a quem Manuel Bandeira detestou), Murilo Mendes, Carlos Drummond, o próprio Bandeira em seus momentos mais intimistas, Mario Quintana, Jorge de Lima, Cecília Meireles e sua dedicação à poesia lírica, Augusto Frederico Schmidt, Lucio Cardoso, Augusto dos Anjos e sua lugubridade, alguma Adélia Prado…

Mas, mesmo diante de nomes tão conhecidos como os acima, nem um outro mais que o tão pouco conhecido e avesso Dante Milano, que rigorosamente empreendeu uma poesia que se sabia falha inclusive ao investir-se como instrumento racional. É esta capacidade de perceber-se alheio e ao mesmo tempo completamente acessível que me parece fazê-lo o mais intangível dos poetas brasileiros. Um poeta despido inteiramente das atribuições alheias e ao mesmo tempo artífice pleno da própria existência e de seu estilo.

De seus poemas, este soneto abaixo – (além dele, há tantos poemas complexos de Dante Milano) -, mas o soneto abaixo não foi escrito na língua portuguesa, mas na verdadeira língua da poesia. E deste lugar atento a si, de quem se defronta consigo mesmo e não vê aventura nisso, apenas a magia em si mesma.

Monólogo
Dante Milano (1899-1991)
Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p. 148

Estar atento diante do ignorado,
reconhecer-se no desconhecido,
olhar o mundo, o espaço iluminado,
e compreender o que não tem sentido.

Guardar o que não pode ser guardado,
perder o que não pode ser perdido.
— É preciso ser puro, mas cuidado!
É preciso ser livre, mas sentido!

É preciso paciência, e que impaciência!
É preciso pensar, ou esquecer,
e conter a violência, com prudência,

qual desarmada vítima ao querer
vingar-se, sim, vingar-se da existência,
e, misteriosamente, não poder.

Dante Milano, por Cândido Portinari.

O afiador de versos

EW

  • Germina – Revista de Arte & Literatura

Quem, entre qualquer pessoa, poderia atestar sobre os passantes na rua: ali vai um tabelião, um pouco atrás um sapateiro? Um professor, o mais de trás? Aquele outro talvez seja… Quem sabe? Um poeta?

Não sei. Provavelmente ninguém. Para mim ao menos são indistinguíveis. Não sei avaliar (talvez nunca saiba) por que modos ou características precisas, se é que deveriam portá-las ou exibi-las ostensivamente, se poderia diferenciar os criadores de versos dos demais seres humanos. Por isso, poetas e não poetas têm a mesma cara na rua. Pela fisionomia não se pode saber com que termos e palavras a pessoa pensa a si e ao mundo. Talvez pelo brilho nos olhos, mas há quem se aproxime o bastante? Cada vez menos. Que dúvida! Poetas e não poetas caminham como os demais caminham. Frequentam lugares, entram e saem através das portas assim como todos os demais seres viventes. Aqueles que imaginam antever uma espécie qualquer de aura provavelmente enganaram-se de referência: estas são para os santos e anjos. De efetivamente seu, poetas mal têm os versos.

No fim da minha infância, num momento impreciso da vida, conheci um poeta no seu próprio território e talvez até um pouco mais que isso, na sua intimidade, mesmo que de modo indireto. Eu subia, muitas vezes atravessando o vento gelado do inverno, um perau, quase um penhasco mesmo, para chegar lá em seu topo, na rua Líbio Vinhas, em Bagé, a uma casa situada num recôncavo da rua postado de frente ao poente. Um ambiente quente e acolhedor onde morava um amigo muito especial naqueles dias e sua família; entre eles, o tal poeta.

De nome eu já o conhecia, mas muito pouco de vista. Com a família, havia residido muitos anos fora, em Santa Maria e outros lugares e voltavam agora, depois da sua aposentadoria, para Bagé, interior do Rio Grande Sul, fronteira com o Uruguai. Logo eu saberia reconhecê-lo nas ruas, mas, apenas porque já o havia visto na própria casa, eu sabia então de quem se tratava. Definitivamente não caminhava como um poeta porque isso não existe. Fazia-o do seu próprio jeito, o olhar mais para baixo que para cima, por uma cidade que conhecia desde a geografia mais óbvia até a mais imperceptível, a que se desenha no modo de ser de sua gente, seu jeito de ser e de falar e, talvez, até mesmo do jeito de andar: humilde em muitos, altivo em uns poucos – às vezes mais do que o cabível e necessário.

O calor de sua casa tanto provinha dos afazeres ininterruptos de sua esposa Dona Vitória e de sua boa conversa, da amizade dos filhos do “homem” quanto de um detalhe muito especial que eu percebia incomum, porque as casas que eu frequentava, a minha própria, tinha espaço para os livros, mas nada perto do que havia naquelas prateleiras. A casa do pai do meu amigo era tomada por livros. Os livros eram, em sua maioria, de seu pai e muitos, os mais antigos, de seu avô, o também escritor Pedro Wayne, autor de Xarqueada e Lagoa da Música. Pronto, agora não posso mais falar da pessoa sem dar seu nome. O pai do meu amigo, o poeta Ernesto Wayne, eu atesto que era mesmo um poeta de ofício. E digo não porque o tenha reconhecido ao caminhar na rua, mas por vê-lo trabalhando. E não pouco.

Durante os anos que convivi com sua família (não foram muitos, mas intensos), jamais deixei de reparar na dedicação de Ernesto Wayne para com a palavra. Mesmo assim, ouvi de sua voz algumas palavras (eu não diria lições) de bom professor de literatura que ele era. Algumas até de um incipiente incentivo, porque algumas poucas vezes me atrevi a lhe mostrar alguns versos. Não me foi condescendente. Mandou-me ao trabalho, mas de uma forma agradável: através dos livros. Mais tarde, a vida, como ela costuma fazer, levou-me para longe daquele endereço, mas não da amizade e das boas lembranças com este meu amigo e de sua família, ao fim todos carinhosos amigos.

Ourives da palavra, artífice da métrica precisa dos sonetos, não é por isso, entretanto, que sempre me admiro da poesia de Ernesto Wayne. Tanto em Ossos do Vento quanto em Extrato de Conta, o que é notável nele é o seu domínio do ritmo. Mesmo que por muitas vezes a escolha de uma palavra obedeça a uma necessidade formal, o Ernesto Wayne de que me lembro jamais deixou de submetê-la ao ritmo interno, de solfejador disciplinado que ele sempre foi.

Ernesto Wayne viveu a literatura de sua época e isso desde a fundação do grupo de Bagé – formado pelos artistas plásticos Glênio Bianchetti e Glauco Rodrigues e pelo também poeta Jaci Maraschin – até o fim de seus dias, ao que me consta. Sei que muitas pessoas e críticos gostam de classificar geograficamente os escritores. Segundo essa ordenação, o sujeito pode ser tanto um autor universal, nacional, regional ou local. Na minha memória, o seu Ernesto (desculpem, mas sempre o chamei assim) está junto com os livros dos poetas que me mostrou e através dos quais travei contato pela primeira vez, protegido do inverno bageense e do açoitador vento minuano, com os versos de Ezra Pound, Fernando Pessoa, T. S. Eliot, Drummond, Quintana, Neruda, Bandeira, Vinicius e mais uma lista interminável. Pouco me importa se ele seja melhor conhecido aqui ou ali, porque é ao lado destes nomes que para mim estará sempre o deste afiador de versos.

Abaixo, transcrevo do seu Extrato de Conta o poema que o intitula.

EXTRATO DE CONTA

Meu corpo coração tem
Com duas pontes, ramal
Que desvia e passa além

Do estreito e triste canal
Que entupir meu peito vem
De pesares em geral.

Minha alma tem também
Coração, mas esse tal
Vai mal, mal bate, meu bem!

Garranchos do meu final
No eletrocardiograma
Da alma que vai muito mal.

Tão mal que a Velha Dama
A mim, deficiente da alma,
Quer levar, porém reclama

Que relate, antes, com calma
O que fiz de anjo ou de cobra:
– De bem pouco levo a palma,

Pago o que a vida me cobra,
Quitada a dívida, a conta,
Somo e reparto o que sobra.

Obra que não está pronta,
Um que outro amigo disperso
E bens de nenhuma monta.

Do azul licor do universo
Que doido sorvi outrora
Resta um pouco em cada verso.

Do que fui, que fica agora?
– Um resquício, ralo caldo.
Pago juros de mora,

De saudade tenho um saldo,
Mocidade na memória,
Recordação de respaldo:

A minha mulher Vitória,
As minhas sete crianças,
Minha existência ilusória.

Raspo em banco de lembranças
A minha conta-corrente:
Descontadas as cobranças

Disponíveis ao cliente
Rasos créditos escassos
Com que velho me sustente.

Descaminhos de meus passos,
Meus depósitos de ventos,
Meus grosseiros erros crassos.

A dor de tantos momentos
Não sei onde começou,
Termina nestes lamentos.

E do que fui, do que sou
Não me sobrou uma estética,
Luta sim, talvez sobrou.

Mais um certo senso de ética
Por sobre o viver diário
Numa visão meio cética.

Contas perdi do rosário,
As que restam arroladas
Vão aqui neste sumário,

Sem ordem, desarrumadas,
Em anos de desenganos,
A seguir discriminadas:

Me ficam perdas e danos;
Dos raros ganhos nem rasto,
Se dissiparam insanos

Na alma não tenho pro gasto.

Os lumes de Mia Couto e a voz de Herberto Helder

Unir em um mesmo texto dois poetas sem que se procure compará-los pode parecer, num golpe de vista, tarefa das mais impraticáveis. Como me situo entre aqueles que não acreditam na possibilidade ou utilidade de comparar-se a poesia de alguém com outrem, então não será necessário procurar comparações aqui. Mesmo que isto implique no risco de aproximar ou abreviar inadvertidamente a distância poética que há entre dois dos grandes poetas vivos da língua portuguesa, o português Herberto Helder e o moçambicano Mia Couto, quero insistir um instante só nessa tentativa. Tenho algumas razões para isso. Vou explicando.

A não ser pela escrita em versos e pelo uso do mesmo idioma, os nomes de Herberto e Mia Couto não costumam aparecer juntos. Sem que, contudo, sejam antípodas, o trato que têm para com a língua também não é muito semelhante (não diria o mesmo sobre o cuidado). E isso, no meu ponto de vista, é um exemplo vivo de como o idioma português abriga mais do que vernáculos específicos, mas muitas e muitas formas de dizer. A expressão poética de um e de outro são amostras sensíveis dessa diversidade muito característica: a diversidade lusófona. Coisa que, num país continental como o Brasil, poderia perceber-se simplesmente como sotaque.

vagaselumes

Não é sobre as características linguísticas destes dois poetas que quero falar, entretanto. Pelo menos não prioritariamente. É que 2014 já vai escorrendo pelos cantos do calendário e foi justamente neste ano que ambos os autores voltaram a publicar seus versos, sem que isso fosse quase notado no Brasil. Mas como pode uma coisa dessas?

A resposta é simples e deve ser direta, sem tergiversações. Vivemos, no Brasil, como numa ilha editorial. Submetidos a uma lista exaustiva de autores irrelevantes e meramente comerciais que frequentam e alternam-se nas listas dos mais vendidos com autores religiosos e biografias de encomenda a perder de vista, não temos tido o direito de acompanhar a edição – ao menos com alguma concomitância razoável – de escritores consagrados e reconhecidos como Mia Couto e Herberto Helder. E isso que se pode, em ambos os casos, tranquilamente poupar custos com tradutores. Mas nem assim.

Pelo menos no caso de Mia Couto e seu Vagas e Lumes, a internet e os e-books puderam resolver minha curiosidade e o desejo de conhecer seu novo livro de poemas. Seja na Editorial Caminho, de Portugal, ou na Amazon.br pode-se comprar com tranquilidade o e-book e recebê-lo no mesmo instante.

amortesemmestre

Já A Morte Sem Mestre, de Herberto, é praticamente um livro inacessível. Programado pelo próprio autor para ter uma tiragem restrita (5.000 exemplares), não há registro de previsão de que um dia possa existir em versão digital. A ausência apenas poderia ser resolvida, portanto, através de uma editora interessada em publicar por aqui o autor de “O Poema Contínuo”. E aí, então, formula-se de forma autônoma a seguinte questão: mas alguém, neste mundo pragmático e tecnológico, ainda interessa-se por poesia? Pelo menos a não consagrada em memes de redes sociais? Ou seja, qual o retorno editorial possível em publicar um autor que parece fazer questão de esconder-se?

Difícil responder, senão impossível. Melhor nem tentar, por via das dúvidas.

Encerrada a sessão de reclamações, quero tentar comentar, enfim, um pouco sobre os livros. Nem tanto sobre os livros enquanto objetos, na verdade, mas sobre o que me impactaram e me pareceram em relação ao que vai por dentro deles, através das palavras de um e outro.

Vagas e Lumes é o terceiro livro de poemas que Mia Couto publica, embora muitas pessoas garantam que ele esconde poemas aleatoriamente entre seus livros de ficção. É uma prática questionável, principalmente para quem não gosta de encontrar poesia em narrativas. Gostando ou não, foram os seus livros de prosa que o fizeram um fenômeno de vendas no Brasil. Injustiça minha, foi sua qualidade. Se poéticos demais ou de menos, isso pouco importa. É muito bom contar com alguém como Mia Couto escrevendo originalmente em língua portuguesa, mesmo que do lado de lá do Atlântico.

Talvez de uma maneira não premeditada, a escolha do título incide precisamente em uma das impressões que fiquei do livro. Os poemas não são uniformes nem têm a mesma intensidade. Compõe-se de uma geografia e de uma humanidade visíveis nos romances que já escreveu. Apenas que, na forma poética, adquirem mais vida as impressões do romancista, aquela vista como se por olhos entreabertos, mesmo quando invadidos pela aspereza do mundo, suas paisagens e os sentimentos das criaturas e personagens desse universo peculiar que ele evoca muito nitidamente. Não ouso dizer quais os grandes momentos do livro para mim, porque não há coincidência possível nesse sentido. Que cada um os encontre, como cada um encontra a poesia onde ela se torna possível como experiência de leitura.

A Morte Sem Mestre, embora pareça um livro que não se queira lido – e constitua-se no mesmo gênero de Vagas e Lumes -, talvez seja quem queira ler e encontrar seus leitores. Que a poesia de Herberto não se pode ler impassivelmente não é uma novidade para quem já o conheceu, mas A Morte Sem Mestre o encontra desafiando a existência, como se provocando a morte a revelar-se. Mas, ao contrário de um poema que acaba, o poeta ali se desafia a continuar, mantendo-se em uma trajetória iniciada na década de 50 do século passado, chegando aos 85 anos de idade como a maior voz lírica da poesia portuguesa.

A tarefa de resenhar um livro que praticamente não existe é das mais perigosas. E se o livro for de poesia, a dificuldade apenas se amplifica. Para aqueles que não puderem encontrar mais o livro de Herberto nas livrarias (ele praticamente esgotou-se no mesmo dia do lançamento em Portugal), resta conformar-se com uma cópia (não autorizada) do CD que acompanha o livro postada no YouTube, onde Herberto, que já foi locutor de rádio, lê ele mesmo alguns dos poemas de A Morte Sem Mestre.

https://www.youtube.com/watch?v=tnTHU1eP3UQ

Apesar da minha primeira razão para unir ambos os poetas tenha sido, sim, esbravejar (admito) contra a inércia editorial que se pratica com a poesia universal por parte de um bom número das editoras brasileiras, a segunda razão consiste tão somente em mostrar que a poesia em língua portuguesa ainda conta com grandes autores vivos que merecem ser conhecidos e reconhecidos em vida. Muito embora as novas gerações de autores sobreponham-se incessantemente, isso acontece cada vez mais de uma forma quase irreconhecível e impossível de acompanhar.

A terceira e última razão é um mero apelo à lógica. Se aquelas iniciativas editoriais que buscam novas dicções deixam de perceber a aparição editorial de poetas como Mia Couto ou Herberto Helder, sem demérito algum da renovação sempre desejável, como é possível desejar que a poesia de novos autores seja valorizada e torne-se visível? Se alguém tiver a resposta para este imbricado enigma, por favor, faça a gentileza de me ajudar a entender…