Do que me lembra Victor Jara

Em fins da década de 70 e princípio dos anos 80, ainda fazia muito sucesso principalmente entre os estudantes universitários a canção de protesto latinoamericana. Num tempo sem direito a factchek nem fakenews (pelo menos oficialmente), as notícias corriam de boca em boca, de mimeógrafo em mimeógrafo e livros e discos andavam de mão em mão e toca-discos hoje em sua maioria obsoletos.

Foi nesse tempo (hoje parece muito mais tempo do que de fato é) que conheci os discos de Victor Jara e dos demais artistas latinoamericanos da época. Era impressionante o que se produzia fonograficamente naquela época e a riqueza sonora e gráfica dos antigos discos de vinil comparados ao streaming de hoje é algo incomparável. Isso falando em qualidade de áudio mesmo. E os discos e encartes eram um deleite à parte.

Eu, uma criança em torno dos dez anos de idade, ouvia embasbacado aquela musicalidade muito poderosa toda escrita e cantada em espanhol. Assim que, aliado a ter nascido próximo à fronteira do Uruguai, fui precocemente introduzido ao idioma espanhol através da nueva canción chilena e da mixagem de folclore e canção de protesto produzida principalmente na Argentina e Uruguai. A experiência foi tão marcante que quando anos mais tarde fui ler meu primeiro livro em espanhol, parecia que dentro de minha mente se havia despertado um hispanohablante por conta própria, de tanto que riscara aqueles discos que perambulavam em minha casa trazidos pelas mãos de meus irmãos mais velhos, universitários à época.

Ao lado daquele conteúdo dramático e, mesmo naquele tempo ainda subversivo, paralelamente ouvia também a construção de toda uma mitologia em torno ao martírio revolucionário, levada a efeito em seus ícones políticos, mas sobretudo nos artistas engajados. Assim que, por muito tempo, muitos daqueles personagens misturaram-se em minha mente através do que era comentado à boca pequena, entre uma faixa e outra daquela abundante discografia.

Victor Jara, a quem quase meio século depois de sua morte finalmente é feito justiça, além de brutalmente executado com 45 tiros, teria tido antes de morrer, segundo se comentava, as mãos atoradas por torturdores. Não que isso diminua a barbárie, mas parece que na realidade não foram. Sobre o folclorista Atahualpa Yupanqui dizia-se algo semelhante: que teria tido as mãos esmagadas por uma máquina de escrever (mas antes dos militares, durante o último governo de Juan Perón) pela polícia e por isso tocava com a mão esquerda. Porém, na verdade, ele sempre fora canhoto. Violeta Parra, também chilena, teria cometido suicídio mar adentro, mas quem o fez realmente foi a poeta Alfonsina Storni, ainda na década de 30, conforme canção imortalizada por Mercedes Sosa, esta sim intérprete inigualável de todo o cancioneiro latinoamericano de protesto. Violeta, na verdade, disparou um tiro de espingarda contra si mesma em uma situação envolvendo conflitos afetivos, bem como mostra o filme Violeta subio a los cielos, antes mesmo que Salvador Allende chegasse ao poder no Chile.

Toda essa mitologia tinha o claro propósito de sensibilizar as pessoas quanto à injustiça e abusos das ditaduras e por tabela também alargar as fileiras e emoções do movimento estudantil de esquerda e simpatizantes dos opositores aos regimes totalitários.

Muitos anos mais tarde, em 2014, ninguém menos que o próprio Eduardo Galeano, o autor do clássico-anticolonial As veias abertas da América Latina, foi um dos primeiros artistas da época a admitir que seu livro era menos um documento do que um panfleto e que admitia não ter na época qualificação para escrevê-lo e que não seria capaz nem de reescrevê-lo e nem de reler esse livro: “cairia dormindo”, segundo suas próprias palavras.

Apesar da ficção e da mitologia, entretanto são inegáveis as injustiças, abusos e violências perpetradas nestes países por cerca de duas décadas, atingindo mais de uma geração de pessoas. A justiça tardia quanto ao caso de Victor Jara (e ainda por ser feita em inúmeros casos no Brasil), me traz à lembrança aquela cantata que Jara conduziu junto ao grupo musical Quilapayun sobre o massacre de mineiros grevistas na cidade de Santa Maria de Iquique em 1907, e o quanto me impactou aquele relato que de certo modo veio a se repetir na ditadura de Pinochet, na qual sucumbiu entre tantos o próprio cantor e compositor.

A condenação final, obtida inicialmente em processo movido em 2013 pela viúva do cantor em Orlando, nos Estados Unidos, chegou há poucos anos à Corte de Apelação chilena, que tem decidido por condenar violações aos direitos humanos no regime ditatorial. Seja como for, penso que faz muito bem o Chile em procurar entender-se com o seu passado. Nem estou pensando nas retratações e punições cabíveis, mas num acordo sentimental para com o seu próprio povo e história. Por outro lado, me parece que faz muito mal ao Brasil continuar a escamotear a violência entre seus compatriotas durante o período militar. Parece-me que muito do compreensível ressentimento político ainda presente teria sido dessa forma amenizado. Talvez por isso e também porque aqui se continue a trocar investigações e devido processo legal por indenizações pecuniárias, os fantasmas da violência do regime ditatorial custem tanto ainda a se recolher para sempre na sua indignidade e estupidez.

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