Meu caro Gustavo
Começo a te escrever sem ter concluído inteiramente teu livro. Quando isso me acontece, é porque nele algo me capturou como a presa que deve, talvez, ser idealmente todo o leitor. Ah, que história fabulosa a dessa violoncelista, meu caro amigo! Eu imagino que longos devem ter sido os dezesseis anos que o tempo desse concerto gotejou em tua mente! Imagino nem porque já passei envolvido com histórias alheias, de pessoas reais, por longo tempo também, e sei que, ao mesmo tempo em que desejamos avançar na narrativa, às vezes precisamos apenas parar e entender o que estamos fazendo e muitas vezes retardar imprevisivelmente qualquer insinuação de desfecho.
Mas não é por compartilhar da angústia de escrever que fui capturado, mas pelo desejo absurdo, sei que absurdo, de escrevê-la contigo. Não intrometer-me no teu fluxo mental, longe disso, mas de ver junto a ti e compartilhar aquele momento em que tu, como escritor, agias já mediunicamente. Bem, isso não é uma teoria minha nem tenho ensaio escrito a respeito disso, mas a sensação de se apoderar da biografia de alguém eu acho que fatalmente leva a que experimentemos até fisicamente sua condição.
No teu caso, que tratou de uma musicista que é possível inclusive assistir em execução em vídeo, penso que deve ser irresistível experimentar a sensação e a descoberta de que por meio da própria execução musical algo esteja ocorrendo sensorialmente, fisicamente. Que ousado isso, Gustavo! Muito corajoso mesmo!
Bem, até onde sei o amigo não é músico. Ou é? Ou, pelo menos, já experimentou utilizar dessa linguagem perecível, a menos duradoura dentre todas? Bom, não tenho essa resposta e nem acho que precise tê-la afirmativamente, mas eu te garanto que tua percepção do ato musical, mesmo externo, internalizou-se muito bem. Se estou errado, todavia, e pelo menos brincas de tocar um instrumento (e esse é o meu caso também), então deves saber a espécie de sensações e insights que a execução musical causa. Mas eu intuo que não, que tudo seja um exercício devocional. Devocional e especulativo. Depois me contas.
Voltando à leitura, bom, a sua primeira parte é de ler num instante só. Na duração do próprio concerto, se possível. Ou de alguns replays. E aqui eu confesso algo que poucos sabem, sou um escritor músico-dependente. Quero dizer que a música faz parte inteiramente da minha forma de concentração. Quando começo a escrever narrativas longas, preciso saber antecipadamente que trilha sonora me acompanhará e até o que estarei escutando no momento de atingir determinado momento. Isso tudo me aconteceu com o livro do pequeno Darwin, claro, mas, depois, com tudo o mais que escrevi. Sejam contos, novelas ou mesmo o romance Trapézio. Duvido que os leitores percebam isso, mas o andamento narrativo de cada um está/foi determinado por trilhas sonoras ouvidas exaustivamente. É uma pesquisa prévia que faço logo ao começar a escrever e não é apenas de motivação minha, mas de modulação, ritmo, harmonia e melodia. Para mim, ao menos, não há forma mais rápida de voltar ao estado de concentração anterior que sendo retomado pela música. Dito isso, volto ao teu livro e a sua segunda parte. Esta, eu ainda estou concluindo e me demorando bastante em refletir a respeito da tua experiência e percepção e comparando com minhas próprias convicções (?) ou impressões.
Ensaísta perfeito, e que consegue unir perspectiva de autor e leitor e ser humano ao mesmo tempo, é um deleite esta segunda metade e me cabe, sim, retardá-la e prolongar o tempo da reflexão. “Tempo”, aliás, tratado habilmente pelo amigo e isso posso ver pelo respeito que dedicas a essa dimensão física e metafísica. No capítulo IX do ensaio, encontrei como poucas vezes a expressão de um tormento que sempre me ocorre ao escrever, que é subordinação do tempo ao tempo. Ou ao tempo do tempo. Eu nunca sei… Porém compartilho inteiramente da sensação de que um narrador (especialmente se interno) dispõe de muitas camadas temporais para situar-se e, se não é possível perder-se no espaço, o tempo é, por sua vez, uma dimensão convidativa e apelativa. O amigo colocou no seu livro, com propriedade, um metrônomo e um cronômetro para instrumentalizar e “disciplinar” o tempo com conveniência e sem perder sua amplitude. Para mim, é um verdadeiro ensinamento.
Como quem padeceu igualmente de crises labirínticas, leio com calma teu ensaio e evito a vertigem da leitura desenfreada. Como aquele Teseu, adentro os domínios de Minos com cautela até porque em seu coração, além da nota amarela, sei que há um homem dominado pela paixão pela arte como poucos se encontram hoje, tenho certeza disso. De forma que agradeço muito pela oportunidade de encontrá-lo e de me permitir aumentar o momento narrado da cellista du Pré para de volta ao não-escrito, o espaço do leitor, que muito habilmente o amigo sabe respeitar.
Muito obrigado, Gustavo, pela leitura imensa que me deu no fim desse ano infindável. Vamos aumentar essas histórias, escrever outras, tomá-las e sermos tomados por elas como a música que preenche tudo e ao mesmo tempo se esvai, porque, se não, a vida é mesmo um escorrer vazio da areia que nos entontece e perturba. Por nos desfazer e a si própria no tempo, mas por nos conduzir, a música é, como insinuou Joseph Campbell, o sangue invisível dos deuses. Há livros que fixam esses momentos por uma intuição à nota amarela. O teu é um mapa muito pessoal desse encontro, mas dadivoso como é em essência a natureza humana do amigo.
Texto adaptado de correspondência enviada ao autor de
A nota amarela seguida de “sobre a escrita: um ensaio à moda de Montaigne”,
de Gustavo Melo Czekster (publicação da Zouk, 2021).