Artigo publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo, 19/12/2020.

A editora veneziana Âyiné desembarcou no Brasil há não muito tempo. São cerca de três anos incompletos. Desde Belo Horizonte, ela vem distribuindo no Brasil um invejável catálogo de pequenas e cuidadosas brochuras que portam trabalhos de intelectuais estrangeiros que as demais editoras brasileiras costumam publicar apenas eventualmente e em tiragens restritas. Entre os autores já publicados, pode-se encontrar desde intelectuais conservadores, como Isiah Berlin e Roger Scruton, até pensadores de esquerda, como Giorgio Agamben e o melhor livro do coreano Byung-Chul Han publicado por aqui, Psicopolítica, além de outros autores e autoras menos difundidos. Em 2020, entre os muitos títulos editados, a Âyiné trouxe para o Brasil o livro Contra o ódio, da filósofa e escritora alemã Carolin Emcke. Um livro que dialoga com o sentimento que fervilha no mundo presente e é capaz de, de acordo com autora, mover o mundo em muitas direções.
Publicado na Alemanha em 2016 e em 2019 na Inglaterra, no exterior o livro foi recebido como um libelo em prol da tolerância e da democracia pluralista ao tempo da emergência do radicalismo populista. É um livro que no Brasil vai encontrar uma concorrência fraca, dado que os títulos políticos locais se mostram muito mais embaraçados com a crise do modelo econômico, a ontologia da crise político-institucional e a diagnose de seus efeitos, isto é, os libelos aqui continuam tão indefinidos quanto as previsões eleitorais para 2022. De outra sorte, os valores embutidos na moeda do ódio aqui ainda parecem não ter se definido completamente; infelizmente, não a ponto de que o jogo político pareça poder dar-se sem a sua onipresença. Apesar de que o desgaste psíquico da nação tenha sido tremendo desde antes da última eleição presidencial, a impressão mais corriqueira dentre a opinião pública é que ainda temos muito dissenso por gastar até chegar a um novo degrau de convivência e acordo, se é que não é possível mesmo descer ainda mais um pouco na incivilidade. Trata-se de um risco que se tornou permanente.
É bem nesse sentido que o livro de Carolin pode colaborar em arrefecer um estado de espírito que favoreceu todo um vernáculo odioso que se passou a experimentar na mesma medida em que os meios de comunicação foram se tornando mais permeáveis, quando não abolidos por segmentos importantes da população desde aí informados por fluxos não claramente canalizados nas redes. No entanto, o mais relevante de imediato talvez fosse não apenas erguer do chão um animal político em condições de pacificar o caos, mas um que inspirasse a sociedade a refazer-se nos seus tecidos mais sutis e esgarçados e recuperasse a relevância de temas caros a um projeto de interesse público e comum, como melhor educação, acesso à renda, segurança, direitos e proteção social. Trata-se de um vocabulário também deixado de lado pela versão nacional do neoliberalismo que resultou numa crise que vem arrastando o país por longos anos já.
O livro de Carolin não traz, todavia, pacotes ou soluções econométricas para o reestabelecimento da convivência social. Tal espécie de ajustes, aliás, parece mesmo integrar cada vez mais claramente o problema do que a solução para tanto. De outro modo, Contra o ódio vai explorar mais as mazelas e manifestações políticas decorrentes da crise moral do modelo social global do que problemáticas abrangentes como as da macroenomia ou do método político. Desde que se assuma que as pessoas não experimentem ou percebam vivenciar efeitos diretos de assuntos globais como esses, é muito possível identificar que ela está mais interessada em acertar o ponto da vacina do que em eliminar radicalmente a moléstia da crise.
Não se pense, entretanto, que, dada a complexidade do tema e por notá-lo em suas manifestações mais efervescentes, trate-se de tarefa banal que a autora discorre desinteressadamente. Não é. Antes de dedicar-se a escrever ensaios filosóficos, Carolin atuou como jornalista em regiões de conflito por um bom tempo. Para a Der Spiegel, ela cobriu o árduo tema da imigração na Alemanha e as manifestações de xenofobia em solo europeu. Além disso, formou-se em Frankfurt sob a orientação do filósofo Axel Honneth, aluno dileto de Jurgen Habermas e principal desenvolvedor da Teoria do Reconhecimento. A influência desse pensamento se faz notar no livro de Carolin muito rapidamente, uma vez que seu propósito centra-se claramente em defender a noção de que a democracia contemporânea passa necessariamente pelo enfrentamento à intolerância e seus desdobramentos micropolíticos. É desde essa experiência e formação que ela toma a decisão de esmiuçar o sentimento de ódio e a violência procurando demonstrar como enfraquecê-los politicamente – este que é o objetivo central do seu ensaio.
Deste modo, o jornalismo e o relato vívido de situações contemporâneas contrapostos tanto à filosofia quanto à literatura a respeito da invisibilidade social, como o clássico O homem invisível de Ralph Ellison, fazem do livro de Carolin um ensaio truncado em temáticas, mas não em linguagem. É compreensível, pois abordar realidades violentas como as experimentadas pelo racismo, xenofobia, transfobia e outras manifestações discriminatórias radicais requer sobretudo um olhar direto e franco. Nessa perspectiva, Carolin em nem um momento permite-se teorizar a respeito dos fatos a que se refere. Pelo menos, em bem poucos momentos chega a converter a situação existencial das pessoas em especulação teórica, de gabinete. Por certo o jornalismo deu-lhe a mobilidade tão necessária a quem pretende encontrar-se com a dinâmica da exclusão, e não meramente observá-la entre os livros, à distância.
É justamente daí que a oportunidade de sua leitura compreende em facilitar a aproximação de pessoas que não experimentam ou praticam o discurso de ódio, mas tomam parte dele ao engajarem-se em outras formas não tão graves de violência, mas não livres de efeitos, como o silenciamento e a cumplicidade com gestos odiosos e suas expressões de violência. Nunca é demais lembrar que o Brasil, bem como outros lugares do mundo, vive muito a expectativa da doutrinação política, ou seja, recomendações do que se pode ou deve expressar principalmente no ambiente aberto das redes é policiado ou estimulado mais ou menos abertamente.
Quem nunca viu ou teve o azar de experimentar contra si a expressão em massa de agressões excludentes e recriminações costuma, inclusive, reportar essa espécie de abordagem como cerceamento à liberdade de expressão e outras justificativas antecedentes, como se houvesse uma razão histórica ou política solicitando essa espécie de confirmação. Contra o ódio, o livro de Carolin Emcke, não tem a pretensão de frear por completo a escalada de animosidade política e antipolitica presente. Seu livro está longe de ser, por exemplo, um manual de aplicação da lei de incitação aos crimes de preconceito ou uma defesa ideológica da criminalização da homofobia ou psicofobia. No Brasil, seria um livro quase sem efeito, pois o estatuto legal de proteção às discriminações é pouco organizado, difundido e aplicado. Seu mérito maior não está em, portanto, permitir essa aproximação ou equiparação, mas, por outro lado, em procurar inibir a exposição de pessoas vulneráveis tanto à violência interpessoal quanto institucional. Como se sabe, muitas vezes ambas as violências fartam-se na mesma mesa e com o mesmo alimento. Que o sentimento de ódio não constitua o prato principal é o que parece clamar o livro de Carolin porque, como tempero, por outro lado, parece ser infelizmente inerente à condição humana. Sua proposta não é sequer saber dosá-lo, mas nos permitir perceber quando está comprometendo a refeição e entender como evitá-lo.