Nem sempre se pode enxergá-la direito, ou compreendê-la, mas há uma espécie de criatura que vem detrás dos nossos passos, quase nos mesmos rastros do tempo, roendo o nosso passado.
Ela pega do que pensamos guardar e aos poucos vai ocultando tudo em sua barriga enorme, que o seu apetite é infinito.
Ela chama o nosso nome e espera pela voz antiga, doce ainda, talvez, mas ouve ao invés disso um murmúrio insolente. Ouve-o como uma ameaça que ela não consegue decifrar, e, por essa razão, ela não para, não se detém. Mais se embrutece e avança.
A criatura também não enxerga direito, também não entende muito bem, mas continua sempre na sua sina incontrolável. Se pudesse, subiria os nossos calcanhares e, por debaixo das roupas, transfiguraria o nosso corpo, tal tatuagem, a fim de apaziguar-se de uma vez por todas. Mas como nós temos medo demais, e ela, parece, fome demais, nos afastamos sem, no entanto, olharmo-nos por muito um nos olhos do outro.
Por simpatia mútua, por um mesmo temor, por um pasmo sublime, por respeito que seja, talvez ambos desejássemos parar com aquilo. Encerrar essa aproximação indefinida. No entanto, não conseguimos.
A criatura vai tomando o nosso lugar no mundo, desocupando-o de nós, sublinhando no vento as memórias mais duras e as mais preciosas, as alegrias, as surpresas, para que, tomados de amor e horror, notemos que nós também cabemos em seu ventre. Nosso espaço já é previsto e, além do mais, às vezes ali há mais de familiar que ao redor. Há as músicas que ouvíamos aos catorze ou quinze anos; há o retrato da primeira namorada no meio de um livro igualmente perdido; há os livros que nos levaram aonde não parecia possível chegar, em frestas do absurdo, e, sobretudo, há provas concretas, cabais, de que se trata de nós mesmos. Aceite que a vida é igual a fugir, ela parece querer dizer. E continua.
Por um instante só fica claro que na realidade o seu olhar é inapetente, e de repente fica claro também que ela é velha como o tempo, mais velha até que o próprio tempo, e que não é matéria e nem é energia, e que não se pode apontá-la precisamente, e que ela não faz nada. A sensação é inteiramente nossa. O mais é um delírio persecutório que imaginamos de alguma forma deter (não podemos, esse é outro delírio). E enquanto devoramos o futuro cuidando do que inevitavelmente logo perderemos, continuamos adiante, a partir de agora por nós mesmos devorados.