Só mesmo quem viu com os próprios olhos sabe o quão pouco imaginativa foi a geografia ao desenhar a costa gaúcha. É como se um imenso talho feito no sentido longitudinal tenha desenhado uma costa perfeitamente lisa, sem uma enseadinha, uma bacia sequer, assim, um mínimo desnível ondulatório. Mas também é por isso que seus usuários costumam ser muito imaginativos e inventam histórias que de tão mentirosas chegam a parecer verdade. A gente nunca sabe.
A mais recente dessas quase lendas eu ouvi da boca de um vizinho de guarda-sol. Sujeito simpático, natural de Quaraí e bom de prosa que só vendo. Eu, que aprendo mais escutando que dizendo, fiquei procurando minha maxila na areia após escutar o que ele me contou, de certos argentinos que viram baleia e somem do mapa.
Estranho lhe parece? Mas é verdade, segundo ele diz. E essa é a sua explicação para tantos argentinos esquecidos por aqui no verão. Na verdade não são esquecidos, mas buscam reaver sua terra original (isso mesmo) e retornar ao oriente ancestral. Como pareceria loucura uma explicação assim, seus parentes dizem que sumiram ou foram esquecidos em postos de gasolina. Tem bastado para mentes pouco curiosas.
Bem, de acordo com o meu interlocutor é tudo mentira que os primeiros habitantes do continente atravessaram o estreito de Bering e foram se espalhando América adentro. Diz ele que os primeiros humanos a habitar a América vieram é pelo sul, nas correntes gélidas do Pacífico, lá da costa japonesa, em embarcações ainu (umas jangadas) ou, o que segundo ele seria a mais pura verdade, na forma de baleias franca que ao chegarem ao Atlântico teriam retomado a forma humana.
A conversa já ía para muito além do inimaginável quando ele me apontou um sujeito que perto de nós observava um jogo semelhante a um boliche jogado por outros sujeitos hispanohablantes.
“Aquele ali! Olha só…”, e apontou com um movimento de olhos para um homem alto, dos seus trinta e poucos anos, esguio, moreno e com olhos amendoados como um fueguino. “Olha aquela tatuagem..”, sugeriu. Eu olhei na direção que apontava e vi uma tatuagem estranha mesmo, em baixo relevo branco. “Aquele está aqui para voltar…”, disse-me enigmático e eu até pensei em lhe perguntar “Como assim? Voltar pra onde?”, mas não tive chance. O homem de testa abaulada e cabelos lisos pelo ombro pareceu ter ouvido que confabulávamos a seu respeito e abandonou o que fazia aproximando-se lentamente de onde estávamos.
Ao invés de dirigir-se ao meu novo amigo, que inclusive parecia saber tudo a seu respeito, ele preferiu dirigir-se a mim, uma pessoa não apenas ignorante nos assuntos dos homens-baleia, mas alguém à beira de uma justificada crise de pânico.
“Usted, amigo.. ¿Podrías salvar mi ropa?”, e deixou uma mochila preta bem ao lado de onde meu filho abandonara um castelo de areia para banhar-se um pouco. Além da tatuagem estranha, o homem tinha uma boca estranha como uma moldura viva. Sem que eu dissesse sim ou não, ele deixou a mochila quase aos meus pés e virou-se em direção à praia, seguindo por ali lentamente.
Enquanto eu o vi andando, ele sempre foi em frente, até que de repente não pude mais vê-lo. Além do quebra-mar, até notei certo movimento e julguei que fosse ele dando braçadas de volta ao litoral sem graça dos gaúchos, mas um esguicho em forma de “v” prenunciou a imagem que nunca vira por ali no verão. A baleia-franca deu uma rabanada sob a película do mar e apontou apenas a cauda também em forma de “v”, sumindo dessa vez para sempre.
Bem que eu tentei comentar o que havia visto com aquele quaraiense que hoje se aproximou para contar essa história sem pé nem cabeça, mas ele também sumira entre os guarda-sóis que aos poucos deixavam a praia sem ao menos despedir-se ou explicar o que mais eu não tivesse entendido, porque ele e não eu é quem era sabido dessas histórias. Onde ele estava, havia agora apenas um cachorro. Agora os gaúchos estão levando cachorros à praia, além dos celulares. Assim, é certo que qualquer um pode virar baleia e ninguém vai perceber.
[25.01.2020]