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Todos os outros silêncios

Publicado também na Especiaria.

Não com todos, mas com alguns, raros, a leitura de poesia me traz certa sensação de invasão de privacidade. O poeta confessional decerto é uma pessoa que previamente consente com isso, no entanto a privacidade a que me refiro é mais intrincada do que aquela que dá a ver uma rotina, trajetos, modos, gestos; quero dizer da privacidade do pensamento, este laboratório onde a vida se transforma algumas vezes — não muitas, é verdade —  em boa poesia.

Os tempos de hoje são indiscretos. Pouco ou nada se permite de intimidade ao poeta. Muito pelo contrário, a ausência de certa autoevidenciação repercute quase sempre em um correspondente apagamento público. De outro modo, o excesso de evidência repercute igualmente num apagamento, mas então numa forma de dessubjetivação, isto é, por anulação consentida do eu em prol do eu-lírico. Ao mesmo tempo, opera-se uma forma de descompensação entre a criação e a atenção alheias, colando-se ao artista uma película com vida própria e aquilo, externalizado a ele, passa a animar uma performance, raras vezes uma poética. Com a poesia confessional, se dá exatamente o oposto disto. A exposição faz o artista desaparecer e só então pode surgir a pessoa, mas sem uma desassociação, porque esse surgimento se dá ante ao outro, e não antes dele.

Eu ainda estou tentando entender se este livro que tenho em mãos é, de fato, um exemplo de poesia confessional ou não. Seja como for, é um livro que abre uma porta para que se conheça da pessoa esse objeto inapreensível: o seu modo de pensar e de ser.

Todos os outros silêncios, de Lucia Fonseca, é um livro de experiência. Em muitos aspectos, reflexões sobre acontecimentos e sensações de uma vida que são trazidos à superfície do papel pela delicada recomposição da própria vida. São situações no mais das vezes silenciosas, quase ausentes, e para as quais a poesia serve de espécie de elemento de fixação. Não se trata do prosaico ou do casual, mas do narrativo permeado de análise e reflexão, do lírico que emerge do distanciamento de cenas e experiências. Estas poderiam permanecer em silêncio, mas a poeta cede ao poema e permite que sejam vistas sob nova perspectiva pelos leitores. Isto é mesmo uma oportunidade, espécie de um presente. É como eu penso.

Removido o invólucro da poesia, o livro e seus anteparos, de imediato se vê que se está diante de um “eu” dono de sua linguagem, imperativo em sua poética. Em Teia, com uma epígrafe nebulosamente sugestiva de Wislawa Szymborska, a poeta se apresenta mínima, como um detalhe da própria poesia:

Teia

”Sou quem sou,
Inconcebível acaso
como todos os acasos.”

Wislawa Szymborska

Sou quem sou
por obra de deusas e de genes.
Sou quem sou
pelos meus antepassados
pelos acontecimentos.

Se um único gene falhasse
nessa infinita corrente
se da teia que me prende
outras malhas se soltassem

se eu escapasse de mim
me esgueirasse do destino
pelas falhas de algum ontem
se de mim me derramasse;
seria talvez um Outro.
Talvez mancha no assoalho.

Quanto mais se avance no livro, mais o objeto em papel vai se desvanecendo, como um fruto que se descarna. Primeiro, na poesia elegíaca da amorosa seção que ela dedicou ao marido Gabriel, depois em poemas até certo ponto nostálgicos que conversam com a infância, a família e amigos de uma vida. Nestes, a poeta, cada vez mais ciente da própria pessoa, confessa o espanto da vida para uma incógnita Regina, a quem dedica o poema Quando:

Quando

Para Regina

Tenho setenta e sete anos.
Desenho, pinto
mas já não escrevo tão bem.
Há muito, perdi meus pais, meu irmão
perdi meu marido.
Tenho três filhos e três netos.

Quando fico triste
lembrando os ausentes
abro a gaveta da copa:
panos de bandeja cercados de renda
pequenas toalhas de linho bordadas.
Fico olhando muito tempo para eles
admirada
como diante de anjos.

Mais adiante há uma sorte de poemas que são como retratos, que se valem da experiência estética de outros artistas e obras, como a pintura de Paul Klee e a literatura de Fernando Pessoa, Proust, Borges e Clarice Lispector. São referências, é verdade, mas que transfiguram-se em sua poesia menos como homenagem e mais como um retratismo. Poemas cuja narratividade que são quase prosas-em-poema, mas dos quais nunca se ausenta o olhar lírico e afetivo da poeta, como se pode ver em Pose para retrato:

Pose para retrato

A moça e seus filhos parados e sérios diantes das lentes
cercados de céu.
Seus olhos miram planetas, constelações, galáxias.
Mas eles não sabem nada
não sabem nada.
Como nós, como todos nós.

Quase ao final do livro, na seção intitulada Canções, a paisagem natural desdobra-se como um diorama interno ao livro, onde, talvez, resida o núcleo de sua atenção manifestando-se num olhar afetivo sobre o mundo e suas coisas. É onde a poeta diz ainda mais de si mesma. Desta seção, não convém destacar um poema a fim de não prejudicar a integridade da obra. É preciso cercar-se de cuidado, pois o nível de exposição é tamanho que, fragmentado, pareceria afetar a apreensão dessa poesia terna e ao mesmo tempo nada autocomiserativa que Lucia produz em relação a si mesma, no que talvez seja o ponto mais alto do livro, pelo menos no seu viés mais confessional.

Ao final da leitura de Todos os outros silêncios, não pude deixar de me perguntar a respeito de como uma poeta de tal consistência havia me passado em brancas nuvens por tanto tempo. Para quem se pretende um leitor atento ao gênero, me parece criminoso, pois este é o primeiro livro de sua autoria que conheci e sua trajetória vem ativa pelo menos desde os anos 80.

Trato de investigar a situação e não demoro a compreendê-la. Já um poeta que se faz notar pela sua qualidade não encontra, infelizmente, o mesmo reconhecimento que se dedica, na cultura de consumo visual destes tempos, a quem se coloca permanentemente em evidência. Não se trata de julgar a situação, apenas de constatá-la. O que se pode julgar, no entanto, é a incapacidade persistente da percepção crítica em relação aos poetas contemporâneos e sua visada de vitrine, sem a menor profundidade. No entanto, se as referências quanto ao seu trabalho são restritas, a obra felizmente é vasta e irei com certeza dela me ocupar, com bom proveito, ainda por muito tempo dos seus demais livros, que indesculpavelmente ignorava.


Lucia Fonseca é autora de pelo menos dez livros de literatura. Ao mesmo tempo deste Todos os outros silêncios, lançou o livro de contos A menina que me visita, ambos pela 7Letras. No website Vestígios (https://www.vestigios.net.br) disponibiliza alguns de seus livros para donwload, além de uma generosa seleção de contos e poemas.

A lenda do corpo e da cabeça

Que o Rio Grande do Sul é lugar de pouca lenda ninguém desconhece. Tira-se o boitatá, o negrinho do pastoreio e Sepé, ou seja, Simões Lopes Neto, sobra praticamente nada. A pobreza imaginativa é acachapante e o excesso de realismo é a regra.

Visando suprir essa lacuna é que o Paulo Damin deve ter escrito “A lenda do corpo e da cabeça”. Será que foi? Eu acho que foi isso. Ele deve ter pensado: “vou bagunçar isso aqui de uma vez” e se lançou ao teclado.

Bom, não sei se foi mesmo assim ou se ele fez um uso prévio de psicoativos (ou graspa), mas que há no texto indícios de alteração de consciência, isso há. Estou por ser desmentido, mas fica o registro dessa dúvida.

Não é uma história normal, de gente normal, essa que agora virou livro e antes, por outra espécie de insanidade, os editores da Parêntese haviam publicado como um folhetim. Como é que eles se animaram? Eu fico pensando onde é que eles estavam com a cabeça.. Será que foram ameaçados de decapitação e se renderam? Fica o registro de mais essa dúvida.

A escrita mediante psicoativos (ou graspa), como é sabido, faz o autor ficar meio hiperconfiante. A adrenalina brota dos olhos e ele vai, naquele surto, se recompensando das loucuras que vão saindo da sua mente aos borbotões por outras loucuras ainda mais loucas. De minha parte, eu fico só imaginando as expressões faciais do autor ao escrever barbaridades que nem me animo a reproduzir aqui.

Todavia, se não foi do uso de drogas, decerto tudo aquilo ali provém de alguma técnica bretoniania. Um descompromisso total com a realidade no qual vai se contando a história de um corpo decapitado cuja condição, demente in extremis, não impediu que continuasse uma aventura com ares medievais. Isso o corpo. E a cabeça remanescente, imagem depositária da razão, ainda é mais lisérgica que o corpo e tem conversas animadas com os cursos d’água (isso mesmo), que também falam pelos cotovelos (?!).

Ao encontro de caçadores, bruxas, rios que conversam, sombras despegadas do corpo, cabeças navegantes e um bandoleiro com mais de uma centena de anos, o leitor logo percebe que está lendo um texto desinteressado (modo educado de dizer louco). Aqui o Paulo não traz uma fábula moralizante ou uma metáfora poética rebuscada, parece apenas ter-se deixado levar pelo prazer ancestral de contar uma história no tom mais coloquial, ainda que sem muito pé nem cabeça..

Mas exatamente por isso a gente se deixe contagiar fácil e rapidamente envereda pelas desventuras algo medievais e pelo insólito dessa lenda meio trash contada num modo de dizer absolutamente espontâneo. E isso, vamos combinar, é uma raridade entre os escritores destes dias tão, tão.. Me falta a palavra.. Ah, sim. Tão cabeçudos..

Pois o Paulo conseguiu me fazer rir como um livro não vinha podendo fazer há muito tempo. Eu, que estava por comer uma bergamota, até esqueci da fruta ali na mesa, no solzinho. Mas vou lá buscar que é a capaz da cabeça avulsa cruzar ali, roubar o fruto, e eu ainda por cima ter de testemunhar alguma coisa.

Não vi nada, não sei de nada, só que o livrinho é imperdível.

Beatriz Bracher e a regência da Guerra do Paraguai

Revista Parêntese, ed. 268

Cartas de antepassados, um livro perdido, relíquias, diários e outros recursos mirabolantes são artifícios mais que conhecidos por autores e leitores de ficção histórica. Recursos alegóricos via de regra utilizados pelos escritores como forma de estilizar a realidade e remover sua impenetrabilidade, facilitando o acesso dos leitores ao tempo histórico em suas tentativas de renovar sentidos e significação de momentos nebulosos do passado. No entanto, as fórmulas nem sempre funcionam, e permanece o desafio à imaginação literária dos escritores para que fujam ao clichê e suas alegorias escapem aos estereótipos. Embora situada num mundo entre o inesgotável e o repetitivo, o acesso ao tempo histórico pela ficção histórica é mais complexo que uma operação de verossimilhança. Quando satisfatório, escritores obtém o assombro de revelar enredos embaçados pela névoa histórica e encoberto pelos nossos olhos vidrados no presente contínuo.

Um livro que entre direto no assunto, como acaba de fazer Beatriz Bracher com a publicação de Guerra I, o primeiro volume da sua trilogia a respeito da Guerra do Paraguai, é no mínimo incomum, se não for de todo inédito. Com um romance todo composto por recortes organizados cronologicamente a fim de “narrar” com autonomia e literalmente os momentos e registros da guerra no seu próprio tempo e por quem efetivamente os viveu, Guerra I é o volume que descreve a ofensiva paraguaia de 1864 e prossegue até 1866, trazendo documentos, correspondência e relatos de inúmeras figuras históricas que participaram do confronto. Na sequência, os demais volumes devem chegar a momentos posteriores e definitivos do conflito.

A rigor, não há em Guerra I um narrador destacáveI, e é por esta razão que o “narrar” do parágrafo anterior precisa ser grafado estre aspas. Todo o livro é uma grande colcha de retalhos que se organiza temporalmente a partir de recortes documentais e que de imediato coloca o leitor a bordo de uma viagem inesperada e até certo ponto exaustiva, porque na forma escolhida por Betariz, não existem paradas, alívio ou o refresco de uma narração distanciada. Recortes literais de documentos recuperados em arquivos, outros livros, jornais, diários e tantas fontes quantas a autora encontrou em sua pesquisa para reorganizar uma memória coletiva, dada pelas impressões não de um sossegado narrador externo, mas dos indivíduos efetivamente envolvidos no confronto que acelerou a derrocada do Império no Brasil e a proclamação da República. Trata-se de uma memória linear e assimétrica, vez que as vozes em discurso muitas vezes são dissonantes e exigem da autora uma espécie de regência, de direção de cena. Narrar apenas, neste caso, mostra-se insuficiente, e a fidedignidade de cada linha do conteúdo é tanta e tão convincente que a impressão pode parecer mais a de um documento, um dossiê, do que um romance conforme o gênero é mais difundido e conhecido.

De certa maneira, Guerra I confronta a noção do romance histórico e do próprio romance. Não se poderia dizer, no entanto, que se trata da primeira iniciativa realizada no Brasil que se vale das técnicas de recorte (os cut-ups de William Burroughs e Brion Gysin). Na década de 70, pelas mãos de Ignácio de Loyola Brandão, o Brasil conheceu as desventuras de certo protagonista chamado José, por meio de artifícios que impactaram sensivelmente a literatura nacional. A narratividade suportada em documentos, em ambos os livros causa certo desconforto intelectivo, afinal, podemos saber hoje o que estava em curso, mas não aquelas pessoas que se encontravam efetivamente comprometidas nas condições do seu próprio tempo. Todavia se o impacto de Zero deve-se ao enredo entrecortado e marcado pela violência do período do regime militar, em Guerra I esse impacto ocorre principalmente pela espontaneidade das vozes que destacam um momento e conflito que de certa forma afirmou para o Brasil uma posição de vantagem na América Latina, ainda que com um custo terrível em vidas e déficit público.

Já nas pequenas notas que antecedem o livro, nas quais Beatriz explica seus critérios e metodologia, pode-se antever que o livro a seguir tem uma proposta ousada. Composto por fragmentos inteiramente não-ficcionais, logo a autora ressalva que seu método procurou “revelar a verdade que apenas a ficção é capaz de revelar”. Trata-se de uma salvaguarda que não lhe compete definir, pois esta revelação apenas pode se completar (ou não) aos olhos dos leitores. De todo modo, sabe-se já que sua empreitada não é mera montagem, busca revelar um sentido e uma verdade que escapam aos contribuidores do romance. Seu romance, afinal, ou anti-romance, trabalha mais com a ignorância do que com o esclarecimento. É o destino do humano, que desconhece o que lhe compele às matanças e demência coletiva, traçando num território ora sem males (o Paraguai) o mero horror e o nonsense, mas legando um romance que a autora se propõe mais a desvelar do que construir.

É pelas palavras e ideias de criaturas socialmente tão díspares quanto o Conde d’Eu, o ex-comandante farrapo Davi Canabarro, os jovens Visconde de Taunay e André Rebouças, e tantos outros, que somos conduzidos aos combates e acampamentos dos aliados. Ali encontramos pessoas sem muita noção do que estavam enfrentando e combatendo, mas que sabiam identificar o isolamento em que se encontravam numa guerra até hoje controversa, onde loucura e morte espreitavam como feras nos aguaceiros que fazem margem ao Chaco paraguaio.

De um livro como Guerra I não se consegue tomar aspas, citar trechos em que se evidencie o horror que a guerra instala. O horror está em cada página, em todas elas. Mortes fúteis, estupidez, o alheamento político coordenando a escalada da violência, doença, fome, mais mortes, chuva sem fim. Se há algo de simbólico no romance é essa presença da natureza completamente alheia à piedade humana. O calor é sempre mais insuportável do que pode ser, a chuva sempre excede ao tolerável. A condição humana pesa em dobro ou triplo. O fardo de viver é conradiano, mas não há o narrador de Conrad refletindo a desumanização que cada um flagra em si mesmo e ao seu redor.

Ali, são as pessoas se encontrando ao destino de ninguém, pois na guerra não há destino, há desespero pela sobrevivência, o homem reduzido ao estado mais elementar. O livro de Beatriz nos entrega isto, estas vivências. Não é uma versão de algo encontrado numa anotação romântica, mas os leitores somos simplesmente jogados ao campo de guerra sem muitas chances de compreendermos de imediato o que aquelas pessoas estão fazendo ali, o porquê daquele conflito ou como iremos sobreviver sabendo que o horror está acontecendo ao nosso lado e, se não nos cuidarmos o bastante, chega a parecer que acontecerá conosco mesmos.

One Mile Upstream

Nem parece que foi há dez anos que ouvi pela primeira vez a lindíssima voz de Flo Morrissey. Na época, uma garota que compôs um dos discos que eu mais ouvi nestes dez últimos anos, Tomorrow Will Be Beautiful.

Nesse meio tempo, Florence gravou um disco lindo com Matthew E. White e casou-se com o espantoso cantor e compositor Benjamin Clementine, com quem teve um filho e uma filha.

Não poderia saber o que esperar do seu novo disco, mas é certo que vou me ocupar dele por um longo tempo pela frente.

Florence Clementine, como se chama agora, tem um timbre de voz maravilhoso, e neste disco em que vai um pouco mais ao blue do que ao folk, me remeteu ainda mais à sonoridade de Billie Holiday e Karen Dalton.

Eu não diria que é um som retrô, mas uma continuidade de uma tradição folk com a qual ela sempre esteve identificada.

Com arranjos e produção de Benjamin, o disco é uma grande jornada em torno das suas raízes musicais e do intervalo que ela fez na carreira de compositora nos primeiros anos dos filhos.

Eu não preciso de muito mais que um pouco de vinho e deste novo disco de Florence. Por mim, o ano já pode acabar. <3

Em negativo

Não sei em quantos, nunca contei, mas em boa parte dos poemas que escrevi costumo falar “em negativo”. Não o negativo da negatividade “psíquica”, me refiro à negatividade “narrativa”.

Escrever “em negativo” não tem nada de mais. É dar a ver o presente pela ausência, o aparente pelo oculto, enfim, o positivo pelo negativo.

A mim me agrada eu acho que pela sugestividade, quer dizer, pelo que se consegue entregar de incompleto ao leitor e que ele terá de por si mesmo preencher com a sua imaginação “positiva”. É como se fosse escrito apenas um baixo relevo, para depois ser preenchido por quem estiver lendo, com a sua matéria-prima, repertório, etc.

No mundo da poesia, a perspectiva nem sempre é bem reputada. Especialmente por aqueles devotos à concretude poética e à racionalidade — os detratores da subjetividade. Alguns diriam que se trata de uma impossibilidade, porque o que assim se procuraria narrar é o não acontecido, o não-fato, a inexistência. Seria um esforço, portanto, inútil.

Eu nem discordo quanto à “utilidade”, embora o conceito seja exógeno à arte, mas o que eu acho é que é apenas pouco imaginativo nos limitarmos pelo mundo visível, das imagens verbalizadas, e marcá-los na linha do tempo para que existam.

A vida mental, do espírito, é muito mais larga que essa pequena ruela da realidade visível. É claro que alguma pessoa pode desejar muito isso e fixar-se nestes limites e neles encontrar tudo do que precisa de simbólico, mas daí a uma generalização instrutiva vai uma grande distância, já que do lado do leitor felizmente não temos qualquer possibilidade de controle.

Nada me aborrece mais, como leitor de poesia, quando sinto que o/a poeta quer me tanger página afora, conduzir ou delimitar meu campo mental e imaginação. Esta perspectiva de apreciação “plástica” do poema não funciona bem comigo. Não por acaso, funciona bem com as artes plásticas. A perspectiva que me motiva é muito mais musical – mas não no sentido matemático da música, senão por sua capacidade de induzir o aparelho sensorial e perceptivo.

É claro que isso não significa que não posso ou não consigo apreciar um poema “positivo”, “solar”, “assertivo” ou “concreto”. Não apenas posso como costumo apreciá-los. No entanto, eu aqui estou dizendo do que prefiro, e prefiro os “negativos”, “sugestivos” e “lunares”.

Isto também não significa que prefiro o mundo desconhecido e místico ao palpável e tridimensional. Até porque quanto ao “desconhecido” não se pode fazer muito mais do que um grande silêncio, porque para ele não temos nem palavras. Ao menos me parece que não deveríamos ter.

Não, não é quanto a esse “assombro” que me refiro, mas à sutileza de notar no mundo a sua incompletude, as coisas que o tempo fez acabar, o residual das coisas materiais e a permanência da ação humana sobre o mundo, que é impalpável, certo, mas que pode ser percebida se não estivermos limitados pela condução inclemente do aqui e agora arbitrário e informativo.

O que me faz pensar nisso é que a nossa atenção e pensamento são constantemente desviados para camadas não aparentes da realidade. Há um mundo invisível ocupando o visível. Isto é uma obviedade fisicamente comprovada, basta pensarmos na atmosfera e no que a compõe. Embora não a vejamos, está ela sempre interferindo diretamente em nossa condição existencial. Também os microorganimos e as ondas de radiofrequência que transportam mensagens para lá de complexas. E o que mais pudermos imaginar mesmo sem o ver.

O que acontece é que muitas vezes apenas conseguimos demonstrar algumas coisas por exclusão. Se isto vale na lógica, que demonstra a forma pela qual pensamos, por que não funcionaria em outras formas de pensamento? Mas com isto eu não quero dizer que podemos forjar qualquer imagem e significação a uma realidade passada ou narrada. Na verdade, podemos, mas, ao fazermos, positivamos esta historicidade e então precisamos confrontá-la com a experiência dos outros.

Com essa minha “defesa” da negatividade, eu somente quero mesmo é demonstrar que não é apenas por um juízo moral ou amoroso que se pode ou deve ler um poema. Uma leitura assim, na verdade inutiliza o poema. Um poema que “diz muito”, “assevera” ou “instrui” torna-se, no meu juízo, ainda que belo e correto, intragável. E como diz Hannah Arendt em “A vida do espírito”, o pensamento sempre lida muito mais com ausências do que com o que lhe é reconhecível e óbvio.

Não “é o que temos”, como diz o bordão conformado das redes sociais. Por outro lado, é “o que não temos”. É o que precisamos imaginar, até mesmo para poder ambicionar mudar o que somos e assim nos sentirmos, talvez, um pouco menos vegetativos e dependentes da identidade.

Sair de si mesmo exige uma mudança profunda de perspectiva. E se a poesia me deixa no mesmo lugar onde estou sempre, não sei do que me serviria. Um auto-encanto, um narcisismo de motivos, coisas que não me importam. Eu preciso mesmo é de que me leve, como a música, para o mais longe possível do mundo das aparências, das reais e das inventadas. Mesmo que às vezes ela se dissolva no instante mesmo de sua apreensão.


Poema presente no livro “Inventário”, de 2021.

Para o oeste

Até há uns dias eu não aceitava muito bem que um filme latino-americano fosse enquadrado na categoria “faroeste”. Tanto o termo quanto a estética me pareciam sempre atrelados essencialmente ao cinema hollywoodiano. Os filmes brasileiros, por outro lado, eu sempre pensei neles como “sertanejos”, no caso daqueles ambientados no sertão, e como “gauchescos”, no caso dos ambientados no sul. Isso desde “Paixão de Gaúcho”, filme de 1957 baseado na obra de José de Alencar, até o recente “Bacurau”.

Mas, ao menos geograficamente, o termo se presta perfeitamente bem. Tanto acima da península de Yucatán quanto abaixo, a ocupação e colonização territorial se deu a partir da costa leste, oriental. Daí que o faroeste (para-o-oeste) é mesmo a caracterização correta do movimento humano proveniente da Europa em toda a América.

Não é um gênero de filmes que me motive muito, mas nestes dias acabei vendo dois de seus mais recentes exemplares: um norte-americano e o outro chileno. O norte-americano, chamado “Horizon – an american saga” foi produzido, escrito, dirigido e estrelado pelo ator Kevin Costner, o mesmo de “Dança com lobos” e do seriado “Yellowstone”. “Los colonos”, a película chilena de Felipe Gálvez Haberle, recebeu em 2023 o Prêmio da Crítica Internacional em Cannes.

Assisti a ambos sem ter lido nada a seu respeito e só o que vi de comum neles foi a exuberância fotográfica das respectivas locações no deserto do Arizona, no caso dos EUA, e na Terra do Fogo no caso do filme chileno. A presença colonial e suas características, embora constando em ambos, são completamente dissonantes. Parecem não tratar do mesmo assunto, embora seja exatamente o mesmo. Nos roteiros, a presença britânica, os povos indígenas e o impacto violento desse encontro várias vezes tinge a tela de vermelho e, outra coincidência até certo ponto previsível, os dois filmes tem posters alternativos nessa cor.

Mas as coincidências param por aí. “Los colonos” narra a conquista final do território mais ao sul do Chile, muito após o final da Guerra de Arauco, conflito extrusivo que durou 300 anos. No filme, é narrada a expansão chilena nos territórios ao sul da cordilheira no começo do séc. XX, muito após a “paz” da independência, de 1818. No sul da Argentina e no Chile, os mapuches ainda hoje disputam cada centímetro de suas reservas. Porém, no filme, que é o que importa aqui, a chegada lá se dá de forma muito violenta e toda a tensão concentrando-se num personagem mestiço que a princípio integra a campanha de conquista para um hacendado que vive muito longe dali.

Já no filme de Costner, um projeto destinado a ser um épico de quatro longas-metragens, a ambição autoral está mais centrada em enobrecer a conquista do Oeste nas personagens que chegaram por último ao lugar onde se passa o filme, um vilarejo chamado Horizon. Em relação aos indígenas, Costner promete que no último episódio eles terão mais espaço. Por enquanto, desferiu em entrevista que não “é a pessoa para vingá-los ou para consertar as injustiças” e que tenta escrever personagens realistas. Na sua visão de realidade histórica, em uma hora de filme os indígenas cometem quatro ataques contra os colonos e não são vítimas de nem uma retaliação ao menos. O diretor, que disse em entrevista recente “fazer filmes para homens”, parece desejar vincular-se aos grandes clássicos de John Ford e Sergio Leone, mas parece que esqueceu-se de combinar com o público. Com uma arrecadação aquém da esperada, a segunda parte do filme partiu diretamente para as telas do streaming.

É difícil evitar um comparatismo mais extremo em relação aos filmes, porque seus objetivos argumentativos são muito distintos. Afora as tomadas externas prolongadas, nem esteticamente são comparáveis, pois claramente o filme chileno se alinha com o que se convencionou chamar por “faroeste revisionista”, isto é, é um filme que se desloca do padrão convencional ao qual o norte-americano, por sua vez, está mais que afixado. O desejo de Costner é mesmo realizar um filme no qual os indígenas representam uma ameaça ao avanço colonial, e seus mitos de “desbravamento”, etc. Em muitos sentidos, “Horizon” é mais conservador até mesmo que “Dança com lobos”. E estranho (ou nem tanto assim) que venha um ano após o sucesso de “Assassinos da lua das flores”, de Martin Scorsese, com uma narrativa para lá de severa quanto aos povos originários.

Seja como for, Costner é um sujeito que está pouco ligando para correção política, isso ele mesmo faz questão de confirmar sempre que possível. Também está pouco ligando para correção histórica, o que tratando-se da representação dos povos indígenas infelizmente não é novidade. A falta de imaginação histórica e a má vontade contra uma população vítima de limpeza étnica está ao alcance de qualquer um, não há mesmo que se queixar. Agora, que ele se queixe que o público esteja pouco ligando para o seu filme é de lascar. Enquanto isso, “Los colonos” vai fazendo, por duro que seja, uma bela carreira com o seu realismo. Em ambos os casos, é merecido — mas a cada um o seu cada qual.

Poesia e mito indo-europeus

Eu não entendo uma linha de hitita, do antigo nórdico, do avesta, do protocelta, do védico e nem do grego. Mesmo assim, desde que o abri pela primeira vez, não consegui largar mais esta lindeza de livro que a editora Mnema lançou há poucos anos por aqui, do filólogo inglês Martin L. West. É o livro que tenho lido neste período extenuante que temos vivido aqui no RS.

Eu certamente tenho me valido dele como forma de levar minha mente para muito longe daqui, ao menos pelo tempo possível, da leitura. Mas isso se deve muito mais à fluência com a qual o livro foi escrito do que por uma razão “escapista”.

Mas M. L. West, o autor, ele tem me feito acreditar que, se não conheço os antigos idiomas a que ele se refere, consigo compreender perfeitamente como estes povos antigos articulavam linguagem e arte poética.

Para além da constatação de que os recursos retóricos e linguísticos de que dispomos hoje têm uma história mais antiga do que presumimos, o livro em si é uma viagem muito completa (e complexa, mas não inacessível) através do tempo, comunicando culturas que se transformaram e dissociaram séculos afora, mas mantendo equivalências que os filólogos revelam com a mesma facilidade com que eu, por exemplo, posso abrir uma janela ou folhear um livro. É uma naturalidade espantosa e acachapante.

Também não demora muito para que se dê a percepção de que seu autor não é apenas versado num ramo linguístico x ou y, um especialista, mas que detém aquela condição meio que do magnífico, que é a capacidade de transitar entre ciências sem vacilar, algo bastante incomum quando comparado às fragmentárias ciências humanas do séc. XX, nas quais as teorias tornaram-se disciplinas mais ou menos auto suficientes e, talvez por isso, pareçam aos leigos, como eu, sem muito apoio no tempo e nem no espaço.

O leigo é como um aluno, um desiluminado. E não são todos os autores (na verdade, uma minoria) que mantêm a dignidade de estabelecer contato com a sua condição precária. A quinta-essência desse distanciamento parece se dar justamente na filosofia da linguagem e suas hipóteses teóricas contemporâneas, as quais a linguagem poética, sustentada na metaforização e suas figuras, esclarece às vezes com mais sutileza do que em teses que chegam ao extremo hermético da algebrização. Os leigos, exaustos e impotentes, não tomam parte nessa especialização, até porque o caminho oposto, o da historicização, é muito mais encantador, como costumam ser os nomes em relação aos números, pelo menos no meu gosto..

Apesar de ser um livro de filologia antiga e centrado no estudo comparativo das línguas indo-europeias, é um trabalho de encantamento no qual o autor se dirige à mitologia mais ancestral com uma facilidade desconcertante. Então, pode-se pensar que se trata também de um livro de mitologia e religião comparadas. Mas não foi dessa forma que eu o li, ou melhor, estou lendo ainda. Eu estou lendo como literatura, como se as referências que ele realiza sobre o mundo da antiguidade clássica fossem personagens.

É dessa forma que eu sempre li os livros de história antiga e mitologia, desde J. Frazer até M. Eliade e Jung. É uma leitura parcial, sem dúvida, mas que me desobriga da tarefa de me deter no incompreensível do detalhismo e de aproveitar a escrita como uma tarefa “homérica”, de quem se serve da eloquência alheia para desnutrir os limites da própria ignorância.

Nude ants

É maio de 1979. Você dá por si e bem que poderia estar em Nova York, no Village Vanguard, escutando a gravação de Nude Ants (mas que título é esse, “formigas nuas”?). Tudo ali é muito curioso. Mas, nesta noite, tudo deve ser mesmo muito curioso, portanto acomode-se. Tente não estranhar nada. E, afinal, você sabe que não entende nada mesmo. E se tentar entender, adeus, já está perdendo, já está perdido. Não é meio estranho ouvir esse sujeito do sax improvisando, ele que nunca pareceu à vontade com isso, ele simplesmente aceitou todos os pontos de fuga solicitados pelo piano e que o contrabaixo não deixou sem costura e o baterista não permitiu desabar. E as coisas vão indo desde o começo de um modo impensado. Obstinados como formigas, eles comunicam-se apenas pelas ondas sonoras e olhares relampejantes. KJ está, como sempre, de olhos fechados na maior parte do tempo. JG, pelo contrário, está vertical como uma palmeira. PD sorri para todos (não sei a razão, mas contrabaixistas sempre sorriem para todos; parece que ele está dizendo-lhes algo como “podem viajar” aí que eu busco vocês) e JC, bem, você não deve tentar entender isso, JC pensa que está tocando piano nos cymbals – e o pior: você pensa que está entendendo perfeitamente. Nude Ants é de uma música doce demais para o jazz estridente do fusion. É estridente demais para o smooth vindouro. Era música demais para um neófito como eu, que o conheceu da forma certa, subfluindo tanto na delicadeza de Innocence, ouvindo a esmo os trinta minutos de Oasis, quanto na balbúrdia extasiante de New Dance. E as formigas, e nuas ainda por cima? Meu amigo, minha amiga, se depois disso você ainda consegue pensar em formigas, é claro que elas só poderiam estar mesmo nuas..

Compaixão, de Anne Sexton

Ontem pela tarde, passando na livraria em busca de um livro de um amigo, me decidi a levar também o lançamento ‘Compaixão’, da poeta norte-americana Anne Sexton, que a editora mineira Relicário publicou no fim do ano passado por aqui, numa tradução da também poeta Bruna Beber.

Eu já havia lido algumas resenhas na Folha de São Paulo e no Jornal Opção, inclusive algumas objeções às traduções, mas me detive em primeiro no prefácio preparado pela filha de Sexton, Linda Gray. Depois, fiquei pensando se seria realmente possível comentar o livro sem mencionar o suicídio de Sexton.

Minha leitura é muito preliminar, mas não me parece que o seu suicídio explique a sua poesia e nem vice-versa. Há uns anos, publicou-se no Brasil uma biografia de Sexton e eu lembro que dei uma olhada numa livraria, mas decidi não comprar nem me aprofundar nos seus detalhes biográficos. Tudo o que se possa dizer da biografia de um poeta parece sintetizado e amalgamado em algumas key-words reiterativas: alcoolista, deprimida, repetidamente internada, suicidada.

Eu até acredito que a recente discussão publicada pelo editor de literatura da Folha de São Paulo, Walter Porto, erra o alvo ao mencionar os poetas e o suicídio. Na verdade, o debate iatrogênico deveria ser colocado em relação a saúde mental, isto é, da possibilidade do indivíduo ser um escritor sem padecer de um caráter psicopatológico.

Pessoalmente, eu não vejo porque não poderia uma pessoa livre de transtornos legar à humanidade uma obra relevante. Da mesma forma, não vejo porque uma pessoa em sofrimento mental também não poderia. Na verdade, essa relação é uma relação forçada que é feita apenas em face de um desfecho trágico. Não agrega nada à obra de ninguém nem deveria ser considerada a chave por excelência de sua interpretação. Acontece que as pessoas procuram encontrar densidade psíquica na escrita alheia e uma pessoa muito tranquila da sua vida, por que mesmo ela interromperia o fluxo do seu legítimo hedonismo para problematizar e metaforizar suas impressões, sentimentos, etc?

Eu não sei bem. Lembro que na época em que foi publicada a obra completa de Orides Fontela pela Hedra, acompanhada de um volume destinado a uma investigação biográfica chamada ‘O enigma Orides’, fiquei incomodado com o tanto de dificuldade e desgraça que o jornalismo cultural lembrou de atrelar à publicação. O desgraçamento biográfico como condição de reconhecimento literário, em qualquer caso e nacionalidade, isso sim me parece psicopatológico. Mas na crítica a tautologia é quase inescapável e parece ser ao fim e ao cabo um artifício argumentativo apresentável e desejável, na medida em que o tempo passa, poetas são publicados, e sua exibição teratológica continua igual.

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Os poemas de Sexton, para não parecer que incorro no que condeno, são volúveis ao extremo. Nela, diferente de Plath que se externaliza mais, a poesia não é exatamente uma confissão de pessoa a pessoa. Não há um espaço muito íntimo nessa leitura, poucas meias palavras e subentendidos. Bem mais um discurso muito organizado, e que raras vezes remete a um presumível desequilíbrio expressivo em função da atribulada vida mental da autora. Cansativo, um pouco, como qualquer poesia muito auto centrada, mas sem dúvida um fluxo avassalador que pretende levar (e me levou) o leitor de enxurrada. Até decidi descansar um pouco e voltar a ler noutro momento, para não homogeneizar mentalmente a sua poesia e aproveitá-la melhor.

Poesia vestida de jazz

Artigo publicado no Caderno DOC do jornal Zero Hora, 09/12/2023.

No finalzinho de novembro, esteve em Porto Alegre o poeta Marco de Menezes para lançar o seu sétimo livro de poesia, Os Ternos de Charlie Parker e Outros Poemas. O livro saiu pela 7Letras, do Rio de Janeiro, e contou com o apoio cultural da Fundação Marcopolo, de Caxias do Sul. De acordo com ele, na conversa que ocorreu antes da sessão de autógrafos, trata-se de um livro que se antecipou a um anterior, inédito, e ganhou vida após um trabalho de releitura e edição que ele confessou fazer contando com a leitura e opinião de amigos.

Vivendo em Caxias do Sul desde a década de 1980, onde trabalha como médico, Marco teve seu primeiro livro de poemas, As Horas Dragas, publicado em 1999. Dez anos mais tarde, com Fim das Coisas Velhas, o primeiro dos livros editados pela lendária Modelo de Nuvem, venceu o Açorianos de poesia. O livro também foi o eleito o o “livro do ano” naquela edição do prêmio. Foi a primeira vez que um livro de poesia levou a dupla distinção.

Para aqueles que ainda não leram sua poesia, é prudente considerar que seus antecedentes vão mais para trás de seus livros iniciais. Começam ainda em Uruguaiana, sua cidade natal, e a influência subliminar de sua paisagem, a um tempo só impoluta e irrecuperável, costuma aparecer bastante em sua poesia, quase sempre em contraste a Caxias do Sul e sua inclinação industrial e capitalista. Também que os poemas longos, digressivos, muitas vezes se parecem a contos que se concluem no inesperado, em momentos líricos e abstratos, contrastando os desfechos narrativos mais definitivos. Pelo contrário, a sua poesia serve-se de planos abertos, prolongando-se para além do poema e que continuam a falar após a leitura. É mais comunicativa do que enunciativa e, por isso, muito envolvente.

Mas há também nesses antecedentes, não menos importante, uma nítida influência da literatura beat e do jazz, tantas são as vezes em que Marco se refere ao estilo musical e seus compositores, especialmente o saxofonista Charlie Parker, cuja ascese musical e espiritual rende ao livro seu ponto alto e também seu título. O mais cosmopolita e livre dos estilos musicais ouve-se muito nos poemas de Marco. Está presente nos ritmos assimétricos, no verso livre desamarrado (mas não frouxo) e ainda mais na liberdade de forma que nunca antecipa nada de sua dicção poética, garantindo a guinada, a surpresa e, às vezes, uma inesperada e familiar volta ao tema.

Se comparada à produção poética mais contemporânea, muito atenta aos efeitos e insights rápidos, no livro de Marco há como um reencontro com uma poesia menos impressionante e mais impressiva. À leitura, se quer entender o que diz e o que ela nos importa. Isso sempre com uma simplicidade de forma que desarma os leitores, sem dúvida terna, revelando aí uma das polissemias do título do livro e que, como numa prosa com pausas, vai lançando luzes sobre a memória, as pessoas e seus afetos, a paisagem e suas dubiedades externas e internas. É um livro que dificilmente um leitor atento se recusa a participar, porque imbuído da serenidade de quem não precisa provar coisa alguma com sua poesia.

A verdade é que não há muita distância entre a linguagem natural da pessoa e a poética do artista, e isso lhe confere, nos dois campos, uma aura de familiaridade impressionante, eliminando um tanto a distância entre persona e pessoa, ou suprimindo-a.

Como nas longas digressões sonoras de Charlie Parker, o instrumentista que extrapolou as sonoridades de sua época com inovações estilísticas que revolucionaram a música do século 20, a poesia do novo livro de Marco de Menezes transgride o minimalismo vigente e busca vestir “os ternos” de Charlie Parker para se apresentar novamente na poesia publicada por estes dias. A diferença será notada sobretudo por quem se encontra aberto à liberdade e a certo acento melancólico de uma poesia que pensa a vida com uma espécie de blue note. Tocante porque se percebe o quanto pouco arquitetada ela é, e imbuída de vida verdadeira. Quando se reencontra com a poesia de Marco de Menezes é difícil pensar em como conseguimos passar por esses anos de tumulto, pandêmicos, e não ter mais disso. Sorte dos leitores de poesia que o próximo, ainda que anterior a este, já está pronto também e não deve demorar a dar as caras por aí, trazendo de volta aos leitores a temática intimista e seu tom coloquial inconfundível.