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School

Não sei que filme é esse que colocaram sob o fundo dessa versão de School, a única em estúdio que parece ter no YouTube para a música do Supertamp. É de algum filme, talvez um documentário sobre essa escola em Berlim, o Rheingau Gymnasium. É um casamento perfeito de imagens e música, ainda mais com a imagem tremeluzente das TVs de tubo e raios catódicos.

“School” é a música que mais me remete ao meu próprio ambiente escolar, lá no início dos anos 80. Acho que foi o primeiro disco do Supetramp que ouvi, o álbum ao vivo “Paris”, gravado em 1979, pouco antes da dissolução. O Supertramp foi uma banda já meio derradeira da parcela progressiva do rock, mas colheu frutos ainda do estilo do qual o Pink Floyd e o Yes, principalmente, foram os principais expoentes. Fizeram belos discos, muito competentes tanto no que diz respeito ao aporte instrumental quanto vocal e temático. O público ainda cabeludo daqueles dias ouvia bastante e crianças como eu também. O Supertramp gravou alguns clássicos do estilo com arrojados solos de saxofone, harmônica e piano. “From now on”, a operística “Fools overture” e essa “School” são na minha opinião o seu melhor, apesar de terem ficado mais conhecidos com “Logical Song” e outras que não gosto tanto. “School” é uma joia musical e, com esse vídeo, entra numa combustão espontânea, parece, como um fogo-fátuo.

No fim do ano passado, numa viagem que eu fazia com a família e no mesmo período que desejava terminar de escrever o “Trapézio” (que inicialmente pensei em chamar de “Fica na tua”, como na canção de Vitor Ramil, mas mudei por pressão doméstica), mostrei a minha filha a música e ela ficou meio espantada com os andamentos e principalmente o vigor musical da gravação. “Que loucura é essa aí?”, lembro-me dela perguntando no banco de trás do carro. E de responder-lhe “Isso aí? Isso era o que eu mais ouvia quando tinha a tua idade. Todo mundo ouvia..” Aquilo ali era, na verdade, apenas uma pequena amostra desse vigor do começo dos anos 80, uma década enérgica ao extremo, na qual se emendava Supertamp no Queen e numa discografia que tinha a missão de prorrogar o tempo regulamentar de Beatles e Led Zeppelin sem imaginar que logo tudo viria abaixo sob o som dos helicópteros de “The Wall”, sepultando as ruínas do sonho hippie e fazendo emergir uma geração alucinada em todo o mundo. No Brasil, a geração que degelou diretamente do permafrost dos anos cinzentos da ditadura militar e logo mais fundamentou a cena rock nacional, ou a consumiu, ou foi por ela consumida.

Naquele verão, eu tinha uma semana mais ou menos para fazer um romance de algumas anotações, um esboço temporal e uma coleção de tipos humanos contemporâneos daquela época que vivi fazendo a transição de quem vinha do interior para a capital e a da adolescência. Um movimento talvez definitivo de toda uma época que se globalizou por interesse próprio e, ao menos simbolicamente, no Brasil recolocou a capital do país de volta no Rio de Janeiro, sob a monarquia da Rede Globo de televisão e sua indústria monumental de entretenimento, informação, dirigismo intelectual e, principalmente, moral.

Nem lá no cafundó do interior as coisas chegavam com a vagarosidade de antes. A tevê naqueles dias enrolou tempo e espaço numa narrativa uniforme, misturando numa mesma massa tradição e futuro, repressão e liberdade. O momento político que culminaria numa democracia parcelada, com eleições indiretas, tinha o substrato de um derretimento total de uma história insustentável. E a entrada da música estrangeira no Brasil, a explosão do pop e uma voracidade consumista sem precedentes, talvez semelhante a experimentada pelos boomers nos anos 50, e o cinema, e as grifes e a retomada norte-americana do fim-de-século nas mãos de criaturas que desconfiavam da seriedade das intenções liberais do próprio país. O país que explodira meio mundo voltava a vender o seu modo de vida com toda a força, como uma locomotiva desembestada, levando por tudo gerações distintas, países periféricos, culturas locais, tudo.

Essa é uma história que ainda não terminou, mas realizou muita coisa também. No rastro dessa locomotiva, pérolas de uma contracultura que também não se conclui nunca, que também é seu combustível e seus restos são carne humana, violência e um modo de vida meio que desesperado, de uma época controlada por ansiolíticos ou ainda mantida em drogas ilegais, mas só de fachada ilegais.

Os anos 80 foram anos muito drogados. Acho que bem mais que os 90, meio diluídos num novo sonho americano de prosperidade yuppie. Nos 80 havia uma certa panela de pressão. “School”, do Supertramp, mostra um pouco desse estado de espirito sedento. E “The Wall” não é senão é a culminação desse espólio capitalista ressurgente, irrefreável, trucidando a subjetividade de pessoas sem condições de sustentar nos braços e mente a potência exigida pela “máquina”.

Quando pesquisava sobre o romance e anotava minhas coisas, busquei livros que tratassem da história dessa década no Brasil e fora daqui. Há um certo vácuo, eu diria. Talvez uma ressaca da qual ainda não nos recuperamos completamente e um saldo que ainda não sabemos muito bem o que fazer dele. É a minha sensação. Em alguns momentos daquela semana que precisava encerrar essa história toda achei que não conseguiria. Uma noite, depois de dormir não mais que duas horas, retomei de onde eu tinha parado antes de recomeçar e então fui até o fim. Parecia estar sob o efeito de um poderoso estimulante, mas me bastava ouvir a harmônica de “School”, como um chamado do fundo do tempo (e dos pátios escolares) e a energia voltava. Se eu tivesse crescido nos 90 teria sido bem mais difícil. Ali a pressão já havia cedido bastante. E, em seu lugar, a depressão. Mas aí é outra história bem diferente e nem me sinto capaz para tentar escrevê-la. Talvez ainda não..

Os olhos da cobra verde

Não sei se nesse plano da existência (espero que sim), sonhei que acordava em 2023. No escuro, tocava it’s a long way muito, muito, muito alto. Ensurdecedoramente. E a gravação, de um vinil, trancada naquilo de um ‘a-lo-long’ sem fim. No celular, a data e a hora indicavam que era muito cedo, em torno das quatro da manhã. Alguém trocara meu pin code e eu não conseguia tirar daquilo ali. Pensei em jogar o telefone fora, mas lá tinha coisas que não podia perder assim sem tentar salvar. Tateando, no escuro, encontrei uma cômoda ornada com filetes em relevo e puxadores pingentes. Guardei no fundo de uma gaveta, sob blusões pesados de lã, o telefone – o mesmo no qual no dia anterior tinha lido coisas incompreensíveis e incoerentes. E Caetano continuava cantando, travado no seu ‘a-lo-long’. O lugar não parecia a minha casa, mas a de um amigo remoto na qual passei a noite depois de uma festa em 1986. O lugar era pacato. Havia sido decorado por sua mãe, uma senhora cuidadosa que enchia tudo de peças de crochê. Busquei a janela e abri a persiana sem muito esforço. Do outro lado da rua, um apartamento num prédio de três andares ressoava o disco do prisma, do Pink Floyd, e vultos circulavam sem parar. Voltei-me para dentro e pensei que aquilo não podia ser 2023, como dizia o relógio do telefone. Eu havia entrado é num túnel do tempo, lisérgico e em espiral como o do enlatado da tevê. A tevê era a mesma da casa do meu avô, de bobina e em preto e branco, mas tinha controle remoto e liguei no botãozinho da Netflix. Uma smart tv a transístor e de tubo. Uma raridade que deve valer milhões no Mercado Livre. De automático, ligou na TV Globo e o Cid Moreira e o Sérgio Chapelin deram aquele boa noite inigualável. Começou o último capítulo de uma novela de Janete Clair protagonizada por Regina Duarte em que ela encenava uma paranormal e tinha um olhar dúbio, indecifrável, de namoradinha do Brasil e, ao mesmo tempo, alguém com ares de psicopata. Fui até a tevê para ver se conseguia trocar de canal no seletor manual. Girei três vezes e meia e caiu no Netflix. O menu de navegação só tinha reprises de novelas e de filmes coreanos e séries espanholas. A pandemia interrompera todas as gravações e a tevê aparentemente só exibia reprises. Voltei à janela e, ao longe, um rumor de desmoronamento e explosões. Os vultos que estavam no apartamento do edificiozinho em frente continuavam a passar para lá e para cá ao som do Pink Floyd balançando os braços para o alto, dançando. Eu, sem saber que lugar era aquele e quem havia sido eleito um dia antes, só ouvia o Pink Floyd misturado ao Caetano Veloso cantando um eterno ‘a-lo-long’ ao som de um berimbau repetitivo. Sair para a rua apenas precipitaria o fim que sem dúvida chegava. Fui à cômoda onde guardara o telefone e olhei de novo a data. 2023. Fui ao espelho e tinha a cara de quem tinha 16 anos. Cabelos pelo ombro e barba mal feita e sem saber o que fazer da vida. Não tinha casado, não tinha diploma, não tinha filhos e nem emprego e o mundo havia pulado anos para frente, mas me trazendo de volta ao tempo de antes. Voltei à cômoda e peguei do telefone que, súbito, destravara. Então ouvi meu nome do lado de fora da rua e uma antiga namorada, a primeira de verdade, de olhos verdes e louca o suficiente para me levar consigo, me fez segui-la. Pulei da janela e a segui sem nunca mais ver seus olhos. “É a resistência”, ela dizia. Por ela, eu iria a qualquer lugar. E já não tinha mais nada para fazer onde estava a não ser as reprises e calendários esquisitos. Os olhos da cobra verde.

Poesia para quê

Não foram muitos os críticos (críticos de verdade, com carreira nisso) que comentaram comigo sobre coisas que andei escrevendo nessa última década. Afora estes poucos, recebi de alguns outros até em mais evidência um “gostei”, um “impressionante” e alguns “lindos”, embora estes, para o efeito de crítica, valham muito pouco, se é que valem algo. Mas esses poucos a quem me refiro foram muito especiais. Detiveram-se em mim muito mais que eu merecia e, aparentemente, mais que habitualmente críticos e estudiosos hoje parecem reservar à leitura, haja vista seu afinco e comparecimento nas redes sociais.

Curioso é que as duas pessoas em questão, os professores Cícero Galeno Lopes e Carlos Felipe Moisés, leram coisas diferentes. O prof. Cicero leu minha prosa, meus contos rurais, enquanto que o prof. Carlos Felipe Moisés leu minha poesia, a primeira versão dos poemas de Falso Alarde. Trágico, mas não curioso, é o fato de que meu diálogo com eles foi brutalmente interrompido pela morte de ambos, fatos que aconteceram num período relativamente curto, de poucos meses, no ano de 2017. Certamente não perdi apenas eu com sua partida, mas para mim foram muito impactantes, ainda mais porque a ambos fiquei devendo respostas que, por minha demora, não lhes chegaram nunca.

No Rio Grande do Sul, o professor Cícero estudava – como pouco se estuda hoje – a vertente literária que trata do mundo rural do interior do estado. E eu só posso restar agradecido, senão espantado, porque ele não apenas leu como entendeu o propósito daqueles contos tão sentimentais que reuni em A aposta. E notou, como eu havia notado por outros caminhos, a ausência paulatina tanto de uma aproximação temporal ao presente (e um consequente congelamento histórico), quanto do preconceito crítico e acadêmico quanto aos temas rurais e do interior, fundantes (e de repente abandonados) da literatura rio-grandense.

De outro lado, o professor Carlos Felipe Moisés tinha (como eu tenho) preferência declarada e manifesta a respeito da poesia mais subjetiva, não tão voltada ao mundo da concretude e objetividade. Além disso, tinha ele um dos estudos mais consistentes a respeito da poesia de Fernando Pessoa no Brasil, talvez comparável apenas ao da professora Leyla Perrone Moisés. Eu, como diletante admirador da obra pessoana, pude ter uma nesga da sua compreensão a respeito de Pessoa e, por felicidade empírica, muitas impressões coincidentes. No entanto, para além disso e ao contrário do que aconteceu com Cícero, a interrupção brutal de nossa correspondência pode ser continuada pela leitura de seus livros de teoria literária. O mais recente deles, este do qual quero comentar um trecho e vai a capa anexa, foi lançado em 2019 pela editora da UNESP, uma editora fabulosa mesmo, talvez hoje a melhor do Brasil em humanidades.

Eu não tinha ideia de que também compartilhava com ele um sentimento dúbio, dúbio de duvidoso, na relação entre poesia e sua “presença” virtual, nas redes sociais. Apesar de seu livro ocupar-se de outras coisas, como as questões políticas e sociais da poesia e suas peculiaridades, de alguns temas já tradicionais como a “inspiração” e a sobrevivência da poesia e suas linguagens, mas é a respeito da leitura, do momento da leitura, que ele decide fazer um voto de desconfiança em relação ao substrato de permanente diluição das redes sociais, no qual pelo ralo temporal fundem-se todas as qualidades de texto e de metáforas, conformando um todo avassalador baseado muito mais na excitação alterada do que na reflexão, muito mais em pensamentos descartáveis que em fluxos de consciência.

Se eu houvesse combinado com ele de unirmos impressões, provavelmente o resultado não seria mais coincidente, mas nunca tratamos desse assunto. Eu ainda hoje não sei dizer se sinto mais estranheza ou complacência quando vejo poesia circulando nas redes sociais. Não é que pense que não possam ou devam poetas deitar seus versos no fluxo contínuo das redes, mas sempre isso me acaba acusando a sensação de anulação do ritmo poético, de dissolução mesmo. Já não se trata mais de uma pesca sem isca, mas de outra ainda mais efêmera, sem linha, sem anzol, só mesmo uma aparência do que de fato é. E isso, todo esse potencial, acaba sempre soterrado pela digressão hostil, pelo sarcasmo e, não raro, pelo escárnio, uma espécie de anti-poesia essencial. É um convívio impossível e cada vez mais doloroso esse.

Também não é só a poesia que é agredida nesse meio ambiente, isso é evidente. A própria comunicação interpessoal acaba reduzida a um ritual simbólico elementar no qual a palavra, a palavra mesmo, é no mais das vezes dispensável. A reação emocional vale mais e é mais visível em seus likes, smiles e loves. A significação empobrece e as relações são diluídas e às vezes simplesmente perdidas no vácuo virtual. Não me espanta que tanto o professor Cícero quanto Carlos Moisés fossem pessoas não afeitas às redes. Mas gastavam e gostavam de gastar muitas e muitas palavras para se fazer entender e isso numa oferta desinteressada.

Essa “coisa”, que é uma coisa rara e ao mesmo tempo poética e prosaica vai se transformando com a internet, é isso que eu sinto, assim como a leitura paciente, demorada e que cumpria a tarefa de nos ensinar a perceber como se da primeira vez, o nunca imaginado nem sentido, como ponderava Carlos Felipe Moisés. Agora é reforço sobre reforço no próprio viés de confirmação. Like sobre like, love sobre love. Há de haver bons poetas nesse mundo assim, sem tempo, certamente há, mas vai ser muito mais difícil para eles nessa disputa interminável pelo mais novo, quando já não há mais opção entre durar e não durar se tornou para a poesia o único tempo possível.

Fora de escala

Boa parte dos erros de avaliação dos seres humanos deve-se a deliberados erros de escala, a uma peculiar capacidade de superestimar-se o potencial de realização do homem diante da natureza e dos outros homens. Parece necessário, como medida de afirmação, colocarmos o esforço social como total, mas a verdade é que sabemos que não conseguimos nos organizar nem proporcionalmente nem equitativamente.

Assim que o coronavírus é o exato oposto da ameaça meteórica, previsível, mensurável. A catástrofe humana é sempre aumentada até a glória, nem que seja a glória anônima e bestial de uma guerra. Também as soluções tecnológicas e científicas buscam e reportam o super-humano, a criatura regenerada pela intervenção magnífica. O ser humano como magnum opus dele próprio. E, no entanto, é por obra de uma comunidade de seres acelulares, mas com memória, que nossos esforços parecem medíocres ao ponto de batermos cabeça contra cabeça pois a nossa solução social é vaporosa, insuficiente.

Do mesmo modo, nossas supostas vantagens, o instinto de cooperação e outros igualmente superfaturados no imaginário ocidental, vacilam e pendem para a luta pela sobrevivência no seu estado mais natural e agressivo. E apesar de decalcarmos para nós mesmos a nobreza, o esforço desinteressado e as melhores características de um catálogo de grandes exemplares da nossa espécie, nessa mesma sombra megalomaníaca regressamos a um estado primitivo o qual muitas vezes é difícil crer que abandonamos.

Para a natureza, que cicla pela adaptação e variabilidade, o ser humano está sempre em teste. Não ocupa lugar privilegiado sequer na pirâmide alimentar, haja vista do que nos alimentamos. A volta dos meteoros, nosso fascínio pelos dinossauros, bombas tremendas e explosivos devastadores é expressão alegórica da nossa irredutível miséria. É o mesmo julgamento da espécie para o qual nos inclina a reflexão indutiva, moral e religiosa. Mas a natureza tem outra forma de nos conformar. Micromilimetricamente exuberante, ela tenta apenas reordenar a população, a ocupação espacial e colaborar com a seleção natural. O problema do ser humano é ele achar que escolhe bem no lugar da natureza quando isso mesmo é uma escolha dela. Mal escolher, nesse caso, é uma indignidade atroz.

Má conselheira

Má conselheira é a vigília, mas a noite tem pensamentos muito mais alongados que o dia, encurtados das pressas. Pensamentos que vão mais longe, buscam outros tempos, recolhem palavras dos outros e botam na nossa mente como se fossem nossas.

Nessa noite, não sei que horas, não fui olhar, despertei com os olhos buscando entender pela claridadezinha das janelas se devia ou não pular da cama. Se acordo assim e passou das cinco e meia eu não hesito, levanto para o mate da madrugada, o melhor de todos, cevado num silêncio sem um pio, e fico esperando o momento que o céu se torna uma abóbada alaranjada para o parto do sol. Mas era cedo até para o sol e permaneci deitado, tão quieto quanto possível, e lembrei-me de cenas que vi mundo afora, no oriente, Europa, Itália de meus bisavós maternos.. E do nada, desse vazio, me veio uma palavra que não era minha, mas do meu pai e das pessoas antigas, do campo. Uma palavra terrível, o pior dos agouros do homem campeiro: o tendal.

Vivi uma vez um tendal sem saber que o viveria. Um tendal é uma simples corda esticada onde pendurar o couro dos animais mortos. No entanto, para que se o use, é preciso antes um longo trabalho, o trabalho silente e às vezes atropelado das tragédias.

Não consigo imaginar o que estejam passando os médicos, enfermeiros e trabalhadores italianos nem o que talvez logo passem os brasileiros. Não consigo porque é muito difícil trabalhar com a vida e, sendo humana, eu acho que é coisa para pessoas muito, mas muito especiais. Viver a morte de um ser vivo não é uma coisa banal. E o custo emocional não é também uniformemente distribuído. Por culpa disso, muitos enlouquecem nas guerras, nas grandes secas, nas misérias. E há os que passem ilesos e não são insensíveis por isso, talvez apenas mais resistentes. Mas que não se exija de ninguém esse comportamento. Há as pessoas naturalmente racionalizadoras, e há também as profundamente emocionais. É nestes últimos que tenho pensado mais e, ao menos mentalmente, solidarizo-me totalmente.

O tendal que eu vivi foi de certo modo causado por mim mesmo, por minha imperícia. Eu tinha por volta de dezoito anos e estava passando aquele ano inteiro no meio rural do interior do RS, na campanha. “Pra fora”, como se diz. Último filho de cinco, era o último a decidir o que iria fazer da vida, estudar o quê, fazer o vestibular. Depois de um ensino médio tortuoso ao extremo, havia me recolhido no interior de Bagé, às bordas do rio Camaquã, onde meu pai trabalhara a vida inteira e naquele momento vivia.

Por um ano inteiro estive lá e, por incrível que pareça, não sentia falta de nada. Para as notícias, tínhamos um rádio e uma tevê cuja imagem era imprestável, um borrão em movimento com vozes entrecortadas. E livros. E almanaques que haviam sido do meu avô. E jornais velhos, de notícias usadas e também imprestáveis. Coisas de galpão.. Servia-me muito bem de uma vida espartana, quase ascética, e aproveitava os fins de semana na cidade. Naqueles dias, tinha muitos amigos em Bagé. Foi a tevê, a porcaria da tevê, que na verdade deu causa ao que nos aconteceu.

Pois andava naqueles dias um vendedor de antenas parabólicas prometendo o milagre da tevê no meio rural. Para quem havia estado anos a fio sem nem luz elétrica, parecia um consolo a possibilidade e, dessa forma, encomendou-se o serviço. Meu pai resolveu fazer ele próprio, como bom one man band que sempre foi, o pedestal para tal antena e assim ficamos dois ou três dias envolvidos na “construção” e a espera do instalador enquanto que, imperceptivelmente, de uma chuvarada da primavera, o carrapato aproveitou-se para infestar parte dos animais que criávamos ali. Imperceptivelmente para os meus olhos destreinados que mal interpretaram o risco de adiar o banho dos animais porque, enfim, o “homem da tevê” estava sempre por chegar e chegou efetivamente, absorvendo nosso tempo e atenção.

Naquela noite, conseguíramos assistir do começo ao fim o telejornal, a novela e até um pedaço de um filme qualquer. A imagem nebulosa e desconstruída ganhara nitidez como se pincelada e meu pai estava muito feliz por conseguir aquilo depois de tantos anos. Eu penso que, principalmente, porque também desejava me seduzir a ficar ali, com ele, e não fosse dali me embora, do que também não me impediria (e não impediu). A tevê seria um argumento nesse sentido, ele parecia silenciosamente sugerir.

No outro dia, cavalos encilhados, voltamos ao que deixáramos alguns dias antes, mas não estava o mesmo. Em determinado potreiro, os animais não mantinham seu hábito e, mal cruzáramos a divisa do aramado, ele percebeu que algo estava muito errado. No cocho de sal, uma vaca mugia lamuriosamente, talvez chamando o seu bezerro. Numa pequena canhada, um declive, o terneiro se acompanhava de outros animais, mas, ao longo dos nossos olhos, outras vacas e também terneiros estavam prostrados, incapazes de erguerem-se sozinhos, pelas próprias forças.

“A tristeza…”, disse o pai. “É a tristeza.. Mas tu não viste o carrapato?”, e indagou-me porque eu havia estado ali um dia antes, pela tarde, e o carrapato se recorre é pela manhã, quando está de barriga cheia do sangue dos pobres bichos que estiveram a dormir. E então ele disse a palavra: “isso vai ser um tendal!”, e apeou do cavalo para tentar aprumar uma vaca erguendo-a pela cola, no que eu tentava inutilmente ajudar. Ela não sairia por conta própria. Um bom número delas, segundo ele, sequer chegariam vivas até o banheiro onde livrá-las dos parasitas. E assim foi.

Dali em diante, levamos ao banho aqueles que conseguiram chegar lá. Os terneiros jogávamos com as mãos para dentro do remédio e da água e com um gancho puxávamos para a fora, com dificuldade. Os mais frágeis, carregávamos  empurrando com o corpo, dando a volta da escadaria e lavando-os praticamente a mão. Essa manhã durou pelo menos até o meio da tarde, quando fomos socorrer os restantes. Sobre o reboque do trator, erguemos e amontoamos vacas e crias desparceiradas, muitas que já não reclamavam mais do incômodo. E outras ficaram por ali mesmo, aguardando a fome insana de corvos, caranchos, sorros e os outros animais da noite.

Na volta “pras casas”, quietos, atordoados, meu pai, gaúcho que se recusava a usar uma faca contra um animal vivo, me disse que eu não precisava ficar com ele e que nem ele ficaria ali, se pudesse. Herdeiro de antigos estancieiros, escravo involuntário da sua genealogia, disse-me para que não fosse como ele, um prisioneiro do chão. E não disse com tristeza, mas com uma raiva imensa daquilo tudo. Uma raiva que não era daquele momento só.

De noite, a morte dos animais não nos permitiu comer. E, apesar da parabólica finalmente instalada, também não ligamos a tevê.

Outbox

Há uns dia recebi um e-mail (há quem ainda o use) de uma pessoa que nunca me viu e eu nunca vi e que, mesmo assim, dizia sentir falta de mim. Não, não se trata de uma paixão platônica, nada disso.. Trata-se de alguém que se acostumara a ler textos que até há pouco eu costumava escrever sobre um assunto que me é ainda muito caro: a inclusão social e educacional das pessoas com deficiência.

Assim como eu, ela tem um filho com síndrome de Down e disse que eu sempre a ajudara (sem saber) com as coisas que eu escrevia. Hoje, me parece um pouco incrível que alguém pudesse sentir-se apoiado pelas coisas que tenho escrito: implicâncias, epifanias e até mesmo ironias. Mas isso não está em quem escreve decidir, e sim em quem lê. Então se ela disse, não tenho razão para lhe contradizer. Falou, tá falado.

Só que a menor vaidade que eu possa sentir quanto a esse e-mail está soterrada por uma resposta que ainda não consegui redigir. Por que mesmo não escrevo mais sobre inclusão, se foi o tema que justamente me fez voltar a escrever após longos, longuíssimos anos de silêncio branco? Por quê? Por quê? Desculpem a repetição, é apenas eco. Reverberação. A pergunta martelando respostas como prego fraco em madeira de lei. Por quê?

Eu realmente não sei. Não tenho uma resposta exata. Tenho apenas suposições que, todavia, não me demovem desse distanciamento. Mas por que isso? Também não sei. Só mesmo suposições que não ajudam nem a mim mesmo, então não sinto que deva externalizá-las como se fossem conclusões. Só tenho a dizer sobre isso uns achismos. Achismos são pensamentos toscos, inacabados e muito particulares. Às vezes até incompreensíveis. Então pode ter muita bobagem misturada no que lhe diria. Com certeza teria..

O que eu acho, talvez em primeiro lugar, é que não tenho uma boa palavra nesse momento, para oferecer.. Acho que vivemos em tempo sectários e se há um antônimo para “inclusão” não é a mera oposição do termo “exclusão”, e sim o sectarismo. O mérito dessa definição não é meu, mas do filósofo chinês Confúcio. Isso está em algum trecho dos seus Analectos.

Superar o espírito sectário me parece muito mais difícil do que superar a exclusão, que é uma condição social. Não porque eu prefira, mas, na contemporaneidade, o tanto que se diz por aí a respeito de “inclusão” transformou-se em instruções formais amparadas em algumas leis e mediadas por relações comerciais. E mesmo quando as pessoas valem-se dos serviços públicos estão mediando suas relações pela contraparte do que o estado tem a oferecer em troca dos seus impostos. Então há uma relação comercial também nesse caso. A não ser numa vida autóctone, portanto, não me parece haver meios possíveis de superar essa condição. A onda homeschooling, claro, não tem nada a ver com isso, afinal não é uma modalidade gratuita. O assunto até tem alguma relação, mas acho que não nesse ponto.

Já integrei movimentos sectários na minha vida e não me fizeram bem. Também tenho certo caráter dissociativo, dissidente, que me dificulta acatar consensos quando me parecem equivocados ou mal intencionados. Acho que a transformação de uma situação real, vivida, numa disputa conceitual também implodiu com a noção de um discurso preciso, do qual abri mão porque também lá pelas tantas já não me fazia bem empunhar um discurso político, formalista, a despeito da situação real das pessoas, cada uma delas discordante em trajetória, condições materiais, cognitivas, de saúde, etc, etc, etc. Seria uma violência continuar participando dessa barganha (não política, mas moral) e embora não me arrependa das brigas que comprei e de nenhuma vírgula que redigi nessa década, comigo precisou ser assim.

Há também a questão de sombreamento de uma política pública de governo com um movimento em essência conflitivo. Nessa relação de forças, pelo menos no Brasil, sempre a política acaba submetendo a esfera pública e o conceito inclusivo aposto, explicativo, perde muito do seu elã (essa palavra eu tirei do arcabouço materno), fica meio fantoche. Na prática, não há muito protagonismo nem autonomia, mas pessoas sendo conduzidas por processos nem sempre transparentes e que movem uma máquina de recursos públicos (e também afetivos) que pouco ou nada destina-se a melhorar as condições de vida das pessoas. Muito mais à tecnocracia, mas isso também é outro assunto. Só que a politização da questão danificou terrivelmente seu caráter intrínseco, como status social por desejar. Então continuar essa busca é, para mim, como a busca por uma miragem, algo que tem a aparência da coisa mas nunca consegue ser a coisa que aparenta. E assim por diante. Isso reduziu um anseio social a um “faça como puder, você estará sozinho nessa de qualquer jeito”. O conceito revolucionário, o sonho, rendido e constrangido pela realidade. E mercantilizado também. Muito mercantilizado.

Fora isso, ainda há o balcão de negócios que políticos costumam fazer sem nem disfarçar, mesmo quando são práticas nocivas ao convívio democrático. Nada constrange esse pessoal. Não adianta gritar nas redes sociais. Há um muro aqui, um backwall, uma quarta margem intransponível ao cidadão comum. Você, amigo, que luta ou pensa lutar contra essa estrutura, acostume-se a ser uma aberração na matrix. Lá pelas tantas, foi assim que passei a me sentir, como alguém portador de dissonância. Portador aqui, aliás, no sentido exato do termo.

Eu não sei. Não ganhei um centavo só com ativismo. Pelo contrário, muito mais gastei e me gastei. Ganhei foram alguns e-mails que embrulham a garganta por dentro, mas isso não conta para nada nem ninguém a não ser eu mesmo. Não se trata de recompensa nem de reconhecimento, mas de não se sentir enganador, de me sentir um pouquinho verdadeiro, mais real do que posso ver ao espelho. Essa, sim, me parece uma boa sensação.

Tive a sorte de ter me envolvido com esse assunto com a radicalidade que o tempo exigia, de fazer valer pelo conteúdo mais até que pelo mérito. Mas todo o esforço coletivo hoje foi pulverizado em projetos pessoais, em “compartilhamento” em redes sociais. Chega uma hora que a gente entende que gastou sola do sapato demais, só isso. Tem ainda a questão do preconceito social e a impressão que o mundo caminha mal não só por culpa da extrema-direita ascendente, mas que essa ascensão seja a irradiação de energia perigosa que passamos a compartilhar também, individualmente, mesmo que sem percebê-lo e mesmo que pareça sempre muito positiva. Viver no Brasil me parece ser, de certo modo, cada vez mais viver num estado de negação positivada, solarizada. É um não (ou nãos) valendo por sim, mas sem um sim correspondente. Ficou tudo muito estranho e difícil, mais fácil e simples dizer. Sinto também que é preciso agir, mas sob outros significados, outros contextos. Fazer nascer algo novo. Se for para dar parte nisso, nesse milagre, e não em reviver e continuar o que nos trouxe aqui, contem comigo.

Mas o certo, o adequado, seria dizer algo bem menos complicado. É uma pessoa muito simples a minha interlocutora, não uma pensadora sofisticada. Ou uma acadêmica. É uma mãe, nem sei sua profissão, só que seu filho tem mais ou menos a idade do meu e que ela continua esperando de mim uma palavra que não sei se posso ainda dar. Nem um testemunho perfeito, um exemplo, tenho a lhe mostrar. Só uma tentativa que às vezes dá certo, às vezes não. O assunto, claro, será sempre caro para mim. E importante, sem dúvida. É bem por ser tão caro assim que não tenho mais escrito a respeito. Seria o certo a dizer nessa resposta. E enviá-la. Mas ainda está faltando a coragem de apertar o botão “Enviar” e assumir que cheguei mesmo a esse ponto final.

02.07.2019

Arvorezinha

A partir de Robert Walser

Todos dizem ter uma árvore que é sua na cidade. Ter duas é avareza.

A minha, vive numa rua na qual nunca entro. No meu caminho de todo o dia, ela sempre está na contramão ao meu destino. Mesmo assim, eu gasto esses segundos por dia pensando em quem teve a ideia de plantá-la ao invés de mim. Magrinha, quase imperceptível entre postes de luz e casinhas amarrotadas, de bairro, nem sombra tem a oferecer.

Já no campo as árvores não são de ninguém. Os animais não as reclamam mais do que precisam. Os pássaros ocupam-nas um pouco só e partem. Nem o vento se deposita em demasia, no pacto de manter intactas folhas e flores.

Por mais inóspita a cidade, todas têm dessas árvores com dono cujas vidas tem sido apenas ser esquecidas. Paradas, não cansam de esperar o regresso dos pés da criança que um dia a escalou, o bêbado que entendeu em suas raízes um improvável regaço. Ou nem que fosse o cortejo das cruéis formigas cortadeiras. Mas não vem ninguém. Todos passam.

Contra o céu enfumaçado, açodada, suspira a minha arvorezinha. E insinua um cansaço apenas pelos braços curvos. A um tempo solene e humilde, a verdade é que não é de ninguém. Nunca foi. Se ela pudesse, diria “nem sua”..

Mamífera

Domingo à noitinha, quase beiradinha do finalzinho do dia mais melancólico da semana, acho que respondendo a um quiz ou teste no celular, minha filha me embretou numa pergunta das mais complicadas: “Qual foi o momento mais feliz da tua vida?”, perguntou assim, à queima roupa.

É o quê? Deus, mas que pergunta pra pegar a gente desavisado..

De imediato me ocorreu o óbvio, que seria usar de demagogia e encerrar o assunto dizendo que foi o do nascimento dela. Contive-me antes de lançar a mentira, porque o dia em que nasceu seu irmão foi igualmente feliz, sem diferença de escala, sem melhor nem pior. Pensei então que poderia ter sido o dia em que encontrei a sua mãe, quem me propiciou ambos os momentos. E, por extensão, fui pensando que os momentos felizes da vida são aqueles em que a gente se encontra com a experiência amorosa. E que são coisas quase sinônimas, não são? Talvez sejam. Idealmente seriam, é o que se acalenta por aí.

Mas então olhei fixamente pro nada, naquela vertigem em que o passado se desdobra na memória, e então percebi com mais nitidez a imagem e a resposta que pra mim faziam mais sentido: dei num entresono muito antigo, muito remoto, no qual acho que me encontrava febril (ainda que possa ser estranho estar febril e feliz ao mesmo tempo), sem idade certa, mas certamente criança, convalescente, quase dormindo na cama dos meus pais enquanto eles conversam bem baixinho qualquer coisa e eu apenas distinguia o rumor das palavras, mas nada do seu sentido.

Na verdade, não sei dizer se aquele instante de semi vigília foi ou não o momento mais feliz da minha vida, mas ali eu me contentava tanto com a sensação sem necessidade nenhuma de explicação ou compreensão e essa sensação mamífera, comum à natureza, mas estranha, muito estranha à racionalidade e razoabilidade adultas, acho que foi o que me definiu, in vivo, pela primeira vez o estado.

Depois pensei que o mais certo talvez fosse lançar mão de uma vulgarização da relatividade, teoria que acomoda tudo e todos, cada um de acordo com suas referências. Cada um, afinal, experimenta a felicidade como pode. Desde o jardineiro ao cocainômano, desde o compositor de sinfonias ao psicopata. Cada qual vai saciar sua busca por prazer como consegue, ainda que isso extravase muitas vezes o pacto social. Pessoas mais racionais, matemáticas, talvez sejam mais exigentes quanto à felicidade que aquelas mais simples e que pensam com mais simplicidade e aleatoriedade. Isso demonstra muita coisa, menos que exista um modo certo e uma explicação para, por exemplo, existir colunas de auto-ajuda no El Pais Brasil, jornal com o qual implico.

Pra mim, a coisa toda se parece mais a um estado físico, orgânico e biológico. Mais ou menos o oposto da angústia, que se define quase sempre por um aperto no peito. O estado de felicidade eu defino, pelo contrário, como uma sensação de expansão toráxica. No fundo, é como o contraste às más sensações, bem como Freud queria, mas aí já racionalizando a sensação.. E também existe a felicidade intelectual, do esclarecimento, dos insights nos quais tudo se esclarece e pode ser entendido. E também a felicidade da criação, que muitos artistas definem como a um estalo da intuição, ou inspiração.

Seja como for, eu ainda acho que o estado infantil, de despreocupação total, é o mais duradouro dos estados de felicidade. Dura mais ou menos o quanto não seja necessário pensar a seu respeito. E, por indefinível, a gente mal o perceba, mas guarde a sensação como uma experiência, memória e comparativo.

Claramente esse texto é um mix aleatório de parágrafos plagiados da Monja Coen, do Pe. Fabio de Melo, Rubem Alves, et al., com os devidos créditos.

Cecília

Publicadas em 2017 pela Global Editora, as quase 2.000 páginas dos dois volumes da Poesia Completa, de Cecília Meireles, dispensam qualquer apresentação. Cecília também dispensa apresentação porque, afinal, ao que se sabe ninguém nunca se apresentou tão decisivamente poeta quanto ela. Do pouco que sei de sua biografia, me parece tão clara a sua relação com a poesia que até soam ridículas as reivindicações que hoje se fazem ao estilo. Só fico ainda pensando em que tipo de encontro teria sido o seu com Pessoa, que a evitou. Talvez ele soubesse de seus olhos e temesse qualquer coisa. Ou conhecesse estes versos abaixo e temesse ainda mais…

Canção

Não te fies do tempo nem da eternidade,
que as nuvens me puxam pelos vestidos
que os ventos me arrastam contra o meu desejo!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te vejo!
Não demores tão longe, em lugar tão secreto,
nácar de silêncio que o mar comprime,
o lábio, limite do instante absoluto!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã eu morro e não te escuto!
Aparece-me agora, que ainda reconheço
a anêmona aberta na tua face
e em redor dos muros o vento inimigo…
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã eu morro e não te digo…

Outros outubros virão

Em torno ao ano de 1978, a parceria musical entre Elis Regina e Milton Nascimento já andava em vias de debutar, quer dizer, acontecia há pelo menos quinze anos. Suas carreiras, embora acontecessem em planos transversais, marcaram-se mutuamente como um dos mais emblemáticos encontros da música brasileira dos anos 60 e 70. De suas composições sempre muito dramáticas e provavelmente das mais politizadas do repertório dela, Elis colheu momentos de intensidade inigualável. Isso desde as primeiras gravações de Morro Velho e Canção do Sal até a derradeira O Que Foi Feito Devera, registrada por primeiro no Clube da Esquina Nº 2 de Milton.

Foi no livro Os Sonhos Não Envelhecem que encontrei uma história muito interessante a respeito da dupla letra composta para a melodia de Milton. Márcio Borges, o autor do livro e de uma das versões da letra, conta que pouco antes de voltar ao estúdio para gravar o Clube da Esquina Nº 2, Milton andava viajando muito ao exterior e angariava onde passava o reconhecimento de prestigiados músicos de jazz, rock e principalmente da crítica internacional. Um dia, de volta ao Brasil, ele então pediu aos seus dois principais letristas – o próprio Márcio Borges e Fernando Brant – para que fizessem, sem sabê-lo, cada um uma letra em separado para a melodia. Márcio compôs a que ficou conhecida como O que foi feito de Vera, alusão a letra de Vera Cruz, composição de 1968 gravada em Courage e na qual Márcio fala sobre os muitos exílios políticos que andavam acontecendo em “Terra de Vera Cruz”, o primeiro nome dado pelos conquistadores portugueses ao Brasil. Uma década após a Vera Cruz original, finalmente se anunciavam os ares da abertura e o retorno de muitos dos exilados de então, com “a tribo toda reunida” surgindo como esperança central da abertura e campanha pela anistia.

De sua parte, Fernando Brant escreveu a letra de para O que foi feito devera. “Devera” do futuro mais que perfeito do verbo “dever” (segundo uma amiga mineira, “devera” é em mineirês corruptela do advérbio “deveras”). E, da mesma forma que Márcio, buscou na redemocratização emergente do país inspiração para imaginar e prever que “outros outubros virão, outras manhãs, plenas de sol e de luz”. Fernando parecia impregnar-se de um esforço maior em responder à indagação que Milton teria também lançado aos dois, junto à melodia proposta: “o que foi feito de nós?” Esta última pergunta/último verso presente nas duas letras.

Nesse ponto é interessante notar que enquanto Márcio recorria ao passado idílico e o drama dos povos indígenas (nas parcerias dele com o irmão Lô Borges e Nelson Ângelo, a temática indígena aparecia com muita força, basta ver as faixas Pão e Água, Ruas da CidadeTestamento e Canoa, canoa do mesmo Clube da Esquina Nº 2), Fernando procurava realizar um espécie de acerto de contas com o passado recente e, ao mesmo tempo, uma autocrítica, porém lançada em direção ao porvir. “E o que foi feito / É preciso conhecer / Para melhor prosseguir”, ele compôs para que a voz de Elis Regina logo tratasse de imortalizar letra e melodia, como acontecia com praticamente tudo o que cantava.

Em 1978, enquanto Milton buscava realizar o sonho de fazer um disco tão colaborativo quanto havia sido o primeiro Clube da Esquina, Elis fazia a tournée de Transversal do Tempo, disco em que mais uma vez reunia a fina flor dos compositores brasileiros seus contemporâneos. O que foi feito devera, no entanto, só apareceria em disco em Saudade do Brasil, de 1980, e no póstumo O trem azul, de 1982. Mais ou menos cinco anos antes de sua morte, Elis continuava a fazer o que se habituara ao longo dos últimos anos: procurar entre novos compositores da música brasileira o que vislumbrar em matéria autoral. Ela, que havia arrebanhado ao seu repertório e discografia uma amostragem muito significativa de uma ou duas gerações de compositores de todo o Brasil, tinha o costume de receber em casa dezenas de gravações de compositores que a viam certamente mais que como um radar musical ou uma merchant avançada, mas alguém bastante livre de preconceitos para com o que pudesse despontar de novo na música popular. Isso se comprova na sua muito bem conhecida última entrevista, na qual, entre outras coisas, dizia estar atenta à emergente cena paulistana. Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, principalmente. Ao mesmo tempo, continuava a rever seus “fornecedores” mais antigos. Milton, no caso, muitas vezes declarou sua total devoção e até mesmo que compunha pensando mais na interpretação dela do que na sua própria.

Na minha humilíssima opinião, O que foi feito devera na versão de Fernando Brant e cantada por ela tornou-se o grande bastião musical da redemocratização e da campanha pela anistia e de uma ou duas gerações de brasileiros que, retomando a democracia, tinham, além do direito de sonhar um país mais livre e menos desigual, convicção de que deviam e poderiam fazê-lo. No entanto, quarenta anos após sua composição (1978 – 2018), a pergunta que me cala ainda é – “o que foi feito de nós?” – e que se repete como se num jogo infinito: o que foi feito de nós do que foi feito de nós do que foi feito de nós e assim ad infinitum

Há três anos, em 2015, faleceu Fernando Brant, talvez a única pessoa em condições de responder sinceramente a essa pergunta. Seria, sem dúvida, uma pergunta um tanto quanto indelicada. Não se trataria de colocar em julgamento o desejo utópico de uma geração embalada pelo sonho de um mundo melhor, mas de saber dela própria o juízo sincero a respeito não de como as coisas deveriam ser e estar a essa altura da história nacional, mas se efetivamente seriam pessoas satisfeitas com o seu próprio empenho e desempenho, ou se não.

Através da própria letra de Fernando, creio muito que ele teria a coragem necessária de dizê-lo “por acreditar / que é cobrando o que fomos / que nós iremos crescer”. Então, sem mais demora, são essas as mesmas perguntas que eu gostaria de fazer, se pudesse, aos meus contemporâneos e adjacentes: em algum momento cobramos mesmo o que fomos? Acreditamos ainda hoje mesmo no que dizíamos e dizemos? Crescemos, afinal, com o passar do tempo, ou permanecemos à deriva do sonho (e ao bel prazer dos mares revoltos do real)?

Em algum trecho de seus livros, é dito que Freud teria antecipado algo de visionário sobre a visão dos poetas a respeito do mundo. Não sei em qual livro ele o teria escrito, mas a frase solta diria algo como “os poetas sabem antes”. O que teria sido, de acordo com Leyla Perrone-Moisés*, confirmado por Jacques Lacan em seus estudos sobre o psiquismo literário em Fernando Pessoa. Imagino que não se trate de um dom premonitório que atenda aos poetas e escritores, mas de uma concepção de espaço/tempo e do drama humano numa dimensão não usualmente tomada em consideração. Para mim, que situo Fernando Brant entre os mais importantes poetas/cancionistas da música brasileira, confere em apenas verificar na sua letra que, de acordo com ele, a projeção do futuro naquele momento incluía também uma autocrítica geracional e o sopesamento da própria história.

Nesses últimos quarenta anos (1978 – 2018) mais de uma geração nasceu e cresceu por aqui. Meus próprios filhos são posteriores aos millenials, aos nativos digitais, à geração “Z”. Elis Regina não chegou sequer a ver a concretização da abertura e as eleições presidenciais de 1989; morreu em 1982, ano em que se iniciava a grande mobilização popular em torno das Diretas-Já e que culminariam na ascensão da Nova República, no pós-constituinte de 1988. Também já não há as letras politizadas de um Fernando Brant a embalar os sonhos geracionais de agora (se é que os há), subitamente despejados na vertigem da realidade da derrocada do projeto da esquerda e no surgimento de uma resposta à direita, como a que deverá se confirmar, de acordo com as pesquisas eleitorais recém divulgadas, nas eleições de depois de amanhã, no próximo domingo (28/10), o último do mês de outubro deste ano.

Para mim, que fui praticamente embalado sob a trilha do Clube da Esquina Nº 2, é impossível evitar de que voltem a martelar mentalmente os versos de O que foi feito devera, principalmente no que dizem “outros outubros virão” e da condição incessante da história. Ainda que chegue eu mesmo derrotado de véspera a uma eleição cujos protagonistas me parecem estranhíssimos sobretudo às necessidades futuras do país, não encontro mais onde (talvez esse sentimento se repita de uma ou outra forma em toda a minha geração) depositar esperanças, justamente a “matéria-prima” das letras mais duradouras compostas pela dupla Milton e Fernando e interpretadas por Elis.

“Mais vale o que será”, diziam os gigantes da música brasileira em plena década de 70. Mas o que “seria” não necessariamente “foi” e o assombro deste “vir a ser” ainda hoje adiado, sobretudo quando diz respeito a uma nação pacífica e solidária, parece cada vez mais extinto nos versos daqueles poetas e também nas esperanças populares. Certamente “outros outubros virão”, mas agora somente mesmo para as novas gerações. O sentimento de fracasso que me acomete é o de não poder lhes entregar – a meus filhos (e nosso filhos e netos) – o que lhes seria devido, já que nossas melhores intenções deveriam visar muito mais o seu futuro do que o nosso próprio.

Há várias versões – todas desconhecidas – sobre a origem de uma frase por certo muito antiga que afirma que “não herdamos a terra dos nossos ancestrais, mas a tomamos emprestada dos nossos filhos”. Parece que ela pode ter origem na Índia, na China ou em algum povo ameríndio pré-colombiano. Só não tenho dúvidas de que ela NÃO é brasileira, a não ser que entrevista no que tentou nos dizer o “verso menino que escrevi há tantos anos atrás” de um Fernando Brant e ninguém parece ter prestado a devida atenção, porque desatendemos deliberadamente o futuro sem nenhuma solenidade – a minha geração – como se fosse seu principal direito a desconstrução indiscriminada de tudo: esperança, democracia, passado, presente e até mesmo o futuro dos nossos. Como Fernando, “falo assim sem tristeza”, mas com uma muito profunda vergonha dos meus filhos e netos por isso.

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* Perrone-Moisés, Leyla. Pessoa e Freud: “translação” e “sublimação”. Ide (São Paulo) [online]. 2011, vol.34, n.52, pp. 237-246. ISSN 0101-3106. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062011000100025