Nem parece que foi há dez anos que ouvi pela primeira vez a lindíssima voz de Flo Morrissey. Na época, uma garota que compôs um dos discos que eu mais ouvi nestes dez últimos anos, Tomorrow Will Be Beautiful.
Nesse meio tempo, Florence gravou um disco lindo com Matthew E. White e casou-se com o espantoso cantor e compositor Benjamin Clementine, com quem teve um filho e uma filha.
Não poderia saber o que esperar do seu novo disco, mas é certo que vou me ocupar dele por um longo tempo pela frente.
Florence Clementine, como se chama agora, tem um timbre de voz maravilhoso, e neste disco em que vai um pouco mais ao blue do que ao folk, me remeteu ainda mais à sonoridade de Billie Holiday e Karen Dalton.
Eu não diria que é um som retrô, mas uma continuidade de uma tradição folk com a qual ela sempre esteve identificada.
Com arranjos e produção de Benjamin, o disco é uma grande jornada em torno das suas raízes musicais e do intervalo que ela fez na carreira de compositora nos primeiros anos dos filhos.
Eu não preciso de muito mais que um pouco de vinho e deste novo disco de Florence. Por mim, o ano já pode acabar. <3
A cada vez que eu vejo escritores reclamando a falência e o esgotamento da crítica literária, fico pensando no que então poderiam dizer os músicos a respeito da crítica musical. Este é um abismo do qual e para o qual ninguém olha muito porque, de um modo geral, a música vive uma sucessão de impasses desde a instauração da crise do disco e do fim do CD. É crise sem fim à vista. Crise em curso ainda.
Se é relativamente simples encontrar-se resenhas de lançamentos de autores nacionais e estrangeiros, no tocante à música o cenário é desastroso. Além de que são raros os jornais e revistas (que revistas?) que contam com críticos musicais, a prática vai por sua vez resumindo-se a uma crítica de eventos. Até pouco tempo, os blogues musicais ainda supriam um tanto a busca por informações, mas, com as redes sociais, foram soterrados pelo big data e sua orquestra de algoritmos.
A reboque da crise de formato, pode-se ver então um pouco mais a extensão da crise de mercado que afeta o métier, uma vez que a remuneração do produto gravado danou-se e a crise de crítica e de consumo vai se apagando à medida que a própria mídia cultural vai se desfazendo. É o laissez-faire da contemporaneidade, a verdadeira balbúrdia para a qual ninguém estava preparado. Mas aqui chegamos.
Perto desse cenário, mesmo a miséria editorial literária parece um banquete perto do que se dispõe de espaços de divulgação e debate musical.
Os efeitos são terríveis para músicos e compositores brasileiros e/ou estrangeiros. Lançamentos relevantes, novos nomes de uma cena musical distante dos hits estratosféricos das redes e plataformas continuam acontecendo, assim como novos trabalhos de artistas vão ficando cada vez mais circunscritos aos próprios seguidores. E como essa contabilidade digital passou em algum momento a ser qualificada como relevância, a situação é de um impasse muito complexo para a qual as fórmulas de debate musical habituais não conseguem mais abordar, pois o campo foi extrapolado (ou entregue) para a tecnologia da informação.
Um exemplo. Dois dos meus compositores e cantores preferidos da última década, o casal Benjamin Clementine e a cantora Flo Morrissey. Dele, com um alcance maior e presença em palcos europeus, ainda se consegue alguma referência em português. Mesmo assim, demorou bastante e por muito tempo o único texto disponível era um que eu mesmo havia escrito. Isso para um artista literalmente gigante.
E ela? Nada ainda. É certo que com seus dois discos a repercussão não seria imediata, porém a invisibilidade é sobretudo de crítica. Seus views nas plataformas são modestíssimos. Há apresentações de estúdio, com alta qualidade de gravação, que não chegam aos 3.000 views no YouTube. Como o de Benjamin, seu disco é dos mais estupefacientes (e duradouro, a gravação é de 2015). Um lirismo rico, arranjos etéreos e sublimes e uma voz que fica entre Billie Holliday e Karen Dalton. Alguma referência a sua existência no Brasil? Nenhuma.
Talvez estejamos bem sem nada disso, afinal, parece que nos bastamos com outra qualidade de coisas. Mas vamos sem crítica. Daqui a um pouco, porque também ninguém é de ferro, vamos sem música mesmo, porque os ouvidos também não são de ferro.