De Caio para Oracy

Revista Sepé

A poesia bem que consegue viver de poesia, mas os poetas são tão humanos que também não podem (nem poderiam) viver sem o que é de mais natural na humanidade: a própria incompletude e a intrínseca imperfeição. É muito difícil que um poeta seja admirado por ser imperfeita pessoa e esse desespelhamento com a imagem autoral muitas vezes acaba por empanar a diferença patente que há entre ser criador e, de outra vez, mera criatura entre criaturas.

Há muito eu conhecia mais o poeta Oracy Dornelles por suas atividades circenses que por poeta. Oracy, caso não seja sabido, tutelava um inacreditável circo de pulgas e chegou mesmo a levar até ao extinto programa do Jô Soares a sua insólita atração. Entre outros feitos extravagentes, aliás, Oracy também fazia micropinturas em grãos de arroz, alfinetes, fazia caricaturas e também era muralista. Alguns dos murais da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI) são de sua autoria.

Mas ele, se por alguns chegou a ser tomado por gênio municipal (categoria um tanto melancólica de genialidade), por muitos outros foi tomado por pessoa arrogante e de talento duvidoso. Bem, não sou das pessoas que acha anormal a crítica (às vezes, sim, desproporcional ao mal que a obra poderia eventualmente causar), mas o simples fato de ser contestado, e não simplesmente ignorado, atesta que muitas vezes as críticas percebem mais a criatura que o criador. Ou que se misturam como se numa sala de espelhos.

Mas Oracy teve, no ano de 1982, uma revelação mais que amistosa de outro escritor, contrariando em muito a animosidade com a qual às vezes sua obra foi recebida. Foi a Prefeitura Municipal de Santiago que em 2019, ano de sua morte, recuperou uma carta enviada por Caio Fernando Abreu, também santiaguense e seu vizinho de infância, destinada a ele. É o vídeo que segue abaixo, narrado pelo então prefeito Márcio Brasil e que, como pode ser visto, dispensa a necessidade de mais comentários.

Minha rua
(à memória de meu pai)

Pobre rua esburacada
De Santiago, eu te saúdo!
Tu nunca disseste nada
Como si soubesses tudo.

Nunca foste compreendida
Porque és humilde demais.
Mas cada pedra elucida
Teus sentimentos reais.

Há saudades erradias
Dentre o sulco das carretas,
E vivas filosofias
Sufocadas nas sarjetas.

Não há ninguém que te queira
E seja como eu tão bom,
Do que a própria polvadeira
De teu vestido marrom;

Porque ela forma, no vento,
Desenhando estranhos termos,
Rascunhos de pensamento
Para nós nos entendermos.

(Alegorias encerra
Que, talvez, entenda eu só)
– Bendita faixa de terra
Ornamentada de pó.

– Santiago, rosal dos pampas,
Teatro de amor e peleias,
A altaneria que estampas
Fecunda sangue de veias.

Mergulhando noite adentro
Santiago desvenda e aprova
A tristeza aqui do “Centro”
E os sonhos da “Vila Nova”.

Minha rua, tu me abrasas
Singela assim, ao rigor,
Com dois colares de casas
Toda bordada de dor.

Vejo menos do que viste,
Embora tarde conclua,
Pois aprendi a ser triste
No teu silêncio de rua.

Oracy Dornelles foi autor de 13 livros: Agonia das Trevas (1954), Belkiss (1955), Ninguém e Mais eu (1959), Poemas Opus 4 (1981), Poesia a Dois (1984), Cantares Ares (1992), Antologia a (2000), Cânticos do Hoje (2006), Páginas Impossíveis (2008), 320 caricaturas menos uma (2009), Poesias Novíssimas e Antycquas (2009), Epitáfios e Últimos Poemas (2010) e o último, Poesia y Chrônica (2011), Morreu em 2019, na mesma Santiago onde nascera.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s