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A casa do filósofo está a queimar

Artigo publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo, 24/07/2021.

Não foram poucos os pensadores do mundo contemporâneo com alcance global que, desde janeiro do ano passado, emitiram opiniões quanto ao impacto da pandemia no mundo político e no mundo das ideias. De Edgar Morin, a Bertrand Brasil (Record) publicou em 2020 “É hora de mudarmos de via: as lições do coronavírus”. Yuval Harari, autor do best-seller Sapiens, teve seus artigos compilados pela Companhia das Letras em “Notas sobre a pandemia”. Slavoj Žižek projetou a reinvenção do comunismo em lançamento da Boitempo: “Pandemia: Covid-19 e a reinvenção do comunismo”. Judith Butler analisou a questão do luto e do acesso desigual à saúde com o seu “Vida precária: os poderes do luto e da violência” (Autêntica). Mas Alain Badiou, Byung Chul-Han, Angela Davis, Theodore Dalrymple, David Harvey, Bruno Latour e outros nomes menos difundidos por aqui também publicaram artigos e movimentaram a vida mental do planeta enquanto o vírus se espalhava em suas mutações, além dos próprios autores brasileiros. Entre todos, todavia, ninguém como o italiano Giorgio Agamben se expôs tanto e foi tão combatido em suas polêmicas. É dele que a Âyiné publica agora “Quando a casa queima”, obra na qual o pensador italiano leva ao expoente máximo a sua compreensão biopolítica (e filosófica) do momento.

Quando um filósofo oferece ao mundo a sua compreensão de um assunto, não há garantia alguma de que será compreendido, bem recebido ou sequer tolerado. Pensar o mundo requer tanto uma visão abrangente quanto um potencial de leitura do qual cada vez mais as pessoas têm abdicado em prol dos filtros que a leitura por meio da internet canaliza às pessoas em suas convicções ou preferências, a depender de como se queira denominá-las. E pensar a contemporaneidade parece cada vez mais requerer um atestado de frequência escolar, mesmo que alguém como o centenário Edgar Morin não se furte nem a pensá-lo e nem a emitir suas impressões sobre o tempo de agora e, como visionário, também o mundo do futuro. Essa, porém, é uma ressalva improdutiva dado que o pensamento acompanha a vida e pode ser dado como sua grande fonte de energia. Ao longo dos últimos anos, Agamben vem se notabilizando pela cimentação de um edifício teórico baseado na ideia do estado de exceção, confluência da biopolítica foucaultiana e das técnicas de controle de Estado cada vez mais amparadas pela indústria tecnológica. A crise do coronavírus e suas medidas de contenção caíram como uma luva, portanto, para que ele desenvolvesse os pensamentos mais polêmicos entre todos os que vêm refletindo quanto à crise e seu enfrentamento.

Embora seja injusto afunilar o trabalho de Agamben unicamente em direção aos seus escritos mais recentes a respeito da pandemia, seu gesto em prol de uma defesa da autonomia da vontade caiu malissimamente mal na opinião púbica planetária porque justamente ao mesmo tempo em que a Itália (e logo depois o mundo inteiro) mesma se via na dificuldade extrema com a crise sanitária, mal tendo como dar conta de seus mortos. Após a publicação do seu polêmico texto inaugural a respeito da crise, A invenção de uma pandemia, o mundo ficou um tanto chocado com as opiniões do italiano ao classificar as medidas de contenção da vírus como “irracionais” e “imotivadas”. Lido com o distanciamento de ano e meio transcorrido e um saldo de quatro milhões de mortes, o artigo soa escandaloso, pois mesmo uma reclamação à liberdade factual foi generalizada como se a pandemia pudesse resumir-se num subterfúgio dos governantes para limitar e condicionar a experiência da vida social sem qualquer prazo ou transigência.

O rigor que Agamben aplicou na interpretação do decreto-lei do governo italiano que deu providências em relação ao surto do coronavírus na Itália, em fevereiro de 2020, por sua vez foi aplicado de volta ao seu próprio artigo. Apesar de que Žižek tenha cogitado inicialmente seguir um caminho semelhante de análise, Agamben não parou de refletir e publicar a respeito do assunto em sua editora, a Quodlibet, e dali espalhar-se ao mundo. Se o caráter suspensivo da pandemia atingiu aos demais pensadores ou levou-os a considerar outros aspectos e derivações do problema, nele se radicalizaram.

Não é de hoje que filósofos que causam escândalo conseguem às vezes serem mais interessantes do que aqueles que simplesmente surfam na opinião pública. Neste caso, Agamben pode ser considerado o único a tomar de uma onda gigante como o surto pandêmico e refletir, diante disso, quanto ao desnudamento total do ser humano em relação ao mundo político. Assim, mesmo que contestado, ele demonstra que o pensamento é sempre uma atividade de risco. O fato de ele jogar-se a um risco não calculado poderia inicialmente tê-lo detido em suas reflexões, porém isso também não aconteceu. Ao longo de 2020 e 2021, ele publicou quase duas dezenas de outros artigos em que prosseguiu discutindo as implicações da pandemia e suas medidas de controle, culminando neste “Quando a casa queima”, que a editora Âyiné agora traduz para o público brasileiro.

Com um título que remete à fábula budista da “casa em chamas”, Agamben desvela um mundo de pessoas conformadas e amedrontadas por um estágio derradeiro do estado de exceção que ele já vinha pensando desde o seu Homo Sacer, de 1995, no qual as pessoas teriam sacrificado voluntariamente a liberdade em prol da sobrevivência mais elementar. E mais drástico é que não haveria nesse sacrifício qualquer recompensa a não ser perdurar. Agamben é o filósofo que afirma que a história não oferece saídas e que o mundo, tal como a casa em chamas da parábola, oferece vida e morte na mesma receita.

Lido rapidamente, o texto de Agamben se parece mais a um esboço poético, uma sublimação extremada do espírito, que a um conjunto pragmático de soluções renovadoras para as condições de vida das pessoas no mundo pós-pandêmico. Essa imaginação, aliás, também já suspensa em vista da obtenção de um controle relativo do surto decorrente mais da técnica das vacinas do que exatamente de uma contenção autônoma das pessoas. O espanto da negligência com a vida só faz sentido quando a vida é mais valorizada que as coisas.

Este é bem o espanto de ver a menos valia que as pessoas parecem dar ao autocuidado e isso não se dá por uma disputa consciente no nível dos conceitos biopolíticos, como quer o italiano, mas pelo que cada um tolera como suportável do controle que o outro, ou o Estado, procura exercer, seja por meio da coerção legal, da reprovação moral ou do cancelamento social. Agamben sem dúvida corre o risco do cancelamento e de receber os qualificativos negativos que já recebeu, mas, por meio do livro em questão, poderá se concluir se ele vai ser consumido pela própria alegoria ou, então, surfar no topo da onda de uma liberdade de pensamento que há tempos os pensadores e humanos mortais vêm penhorando em troca da sobrevivência.

Instinto e estigma no regionalismo

Artigo publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo, 20/03/2021.

Um risco que os escritores nascidos nos vizinhos Uruguai e Argentina nunca correrão é o de abordarem a sua população do interior e verem suas obras guardadas na gaveta taxonômica do “regionalismo”. Para os escritores do Rio Grande do Sul, isso poderia até suscitar inveja se o contraste não constituísse um espelho privilegiado pelo qual se pode notar o distanciamento cada vez mais radical que é travado no campo literário quanto ao impasse da representação rural na literatura rio-grandense, seus temas e dilemas.

Para o Rio Grande do Sul, trata-se de uma caracterização inescapável cujos personagens vão sendo obliterados na literatura aqui produzida. O fenômeno não é recente, vem de algumas décadas, e o desaparecimento paulatino de enredos interioranos ou rurais na ficção rio-grandense se acompanha por outros fenômenos, como a preponderância do meio audiovisual no lazer urbano desde os anos 60, a hegemonia tradicionalista da representação popular e o crescente deslocamento para temáticas cosmopolitas, com o recalque da representação rural aos conteúdos históricos.

Esse desvio vem acontecendo numa perspectiva conflitiva na qual a literatura local ora se debate entre o acesso ao “instinto de nacionalidade”, conforme proposto por Machado de Assis em 1873, ora em sua refutação pela identificação com a literatura do Prata. Considere-se ainda que as relações políticas entre província e metrópole desde 1835 nunca foram das melhores. Tudo isso nunca competiu, todavia, em que os autores rio-grandenses procurassem alijar-se do sentimento nacional, apenas que desejavam manter seus traços culturais e históricos a salvo de uma alienação que, ao fim e ao cabo, foi confirmar-se um século mais tarde, no desenlace contemporâneo desse processo.

Presente desde quando Alcides Maya defendeu na Academia Brasileira de Letras a tese do “federalismo literário”, tal ruptura nunca se confirmou e, no decurso do séc. XX, produziu-se aqui uma literatura motivada na vida rural, do interior, e outra cosmopolita, sediada nos bairros de Porto Alegre, conformada por interioranos emigrados. Apesar de que se consolidasse uma crônica de costumes de tom saudosista, no plano editorial a convivência era pacífica e a redescoberta da obra de Simões Lopes Neto elevou a um patamar superior a dicção rio-grandense, descolando-se a partir daí do criollismo platino.

Nos anos que antecederam a Segunda Guerra, ao passo em que se confirmava um campo literário pelo empenho da Editora Globo e seus articuladores, o eco modernista se fez presente numa geração (a de 30) que apenas mais tarde seria revista. No longo período entre as décadas de 20 e de 60, o apogeu e o ocaso da Globo confundiu-se com o próprio destino da literatura rio-grandense e a fixação do seu “regionalismo” se deu com edições de luxo e populares de autores que inventariavam o seu “instinto regional”. A Coleção Província, sucesso comercial sem precedentes, foi o casamento perfeito de uma necessidade de afirmação identitária, autores produtivos e sistema azeitado.

No entanto, logo a confluência da expansão da televisão, a crise da guerra fria e o interesse crescente da crítica e dos estudiosos em desconstruir o discurso nacionalista vitorioso encontrou no ethos da geração de 60 o ambiente perfeito para frutificar em crise. De posse do instrumental estruturalista e materialista, conforme relembra Alfredo Bosi em Entre a literatura e a história, intelectuais empreenderam a recuperação da crítica presente na geração de 30: Cyro Martins, Pedro Wayne, Ivan Pedro de Martins e Aureliano de Figueiredo Pinto. Suas obras, tributárias da geração de Maya e Simões, revelaram o modernismo rio-grandense com uma forte tintura realista e denúncia social, bem ao gosto dos anos 60.

Nesse momento parecia claro que os autores locais haviam criticado a sociedade de uma forma muito menos idealizada e ufanista como hoje costumam se interpretar o seu trabalho. E mais: mesmo Maya e Simões, os dois principais sustentáculos da estética sulista, haviam mantido o olhar crítico para as condições sociais e políticas pelas quais o poder se organizava no Rio Grande do Sul, numa literatura que o professor Antonio Hohlfeldt veio identificar como mais centrada na figura do peão que na do estancieiro.

Ainda assim, por uma pecha inarredável, os escritores rio-grandenses muitas vezes são localizados no que seria um regionalismo agônico. Porque duvidou-se do afastamento total da literatura rio-grandense em relação ao enfoque proposto no regionalismo romântico, a própria designação adquiriu, pelo menos no caso gaúcho, certa conotação pejorativa. E seus autores também. É algo complexo, pois, se analisada na materialidade, nem Érico nem seus antecedentes colaboraram no recalque ou sublimação dos traços sociais da população. Pelo contrário, basta que se os releia para verificar o quanto trataram seu tempo de forma crítica e realista.

Um pouco por animosidade externa ou pelo crescente desejo por um “instinto de globalização”, aos poucos o que era particularidade, um “regionalismo” inocente, foi se transformando em estigma e o tipo humano da região perdendo a aura heroica para dar vez a uma série de tipos cômicos que a popularização de certa vertente tradicionalista contribuiu muito em consagrar, contagiando o métier literário.

Com a crise cultural fixada na universidade, a presença de um movimento cultural hegemônico e uma caracterização desfigurada, transformada em estereótipo, o pior do homem do campo passou a ser dinamizado como essência representativa e todos os preconceitos afiliados, como o machismo, sexismo, misoginia, etc., elevados à condição de um “novo” pitoresco. Já num cenário de intensa exploração midiática, como um produto cultural exótico sobretudo ao Brasil, a literatura rio-grandense viu-se na situação de obliterar a imagem às vezes reduzida ao grotesco do gaúcho rural. Exemplo dessa caracterização se pode ver no Analista de Bagé, personagem de Luís Fernando Veríssimo e sucesso comercial dos anos 80.

Da década de 60 em diante, em que pese o esforço de casas como a Movimento, a Mercado Aberto, a Tchê e a L&PM, os motivos rurais ou decaíram para o segundo plano ou foram preteridos por enredos desenraizados. Alie-se isso à perda sistemática de relevância da região fronteiriça na economia local e a migração simbólica para a zona industrial e serrana, o panorama literário local fez apenas seguir as inclinações de mercado, excetuando-se os momentos que representam inflexões históricas.

Contraposta à historiografia, a literatura confere com a visada de um momento histórico e realidade, mas sempre sujeita a releituras. Teóricos importantes como Erich Auerbach, Roger Chartier e Paul Ricouer atestam que o valor literário é mais simbólico que factual, um bem cultural que preenche lacunas compreensivas. De período à escola, de estética a projeto, de projeto à pecha, muito se tem confundido entre o que seja um viés regionalista político, como o reiterativo separatismo e, outro, cultural, dado pelas realizações artísticas. Talvez porque os autores rio-grandenses tenham inserido as questões políticas em seus enredos, as duas pareçam situações inextrincáveis. É uma confusão recorrente e que mereceria atenção redobrada dos estudiosos e leitores.

De uma forma natural, pois literatura e história inquirem-se o tempo todo, o “regionalismo” rio-grandense tornou-se cada vez mais um fantasma, como aponta a professora Regina Zilberman, e emblemático de uma crise complexa. Se abandonar a memória e as pessoas que continuam no interior é de uma violência atroz, não é menos violento caracterizá-las pela lente exclusiva da decadência: é evidente que são pessoas que vivem experiências comuns a todas as demais. Se o “regionalismo” pode ser considerado a tábua de salvação dos maus escritores, também costuma ser muito mais exigido no que se refere à originalidade. Autores contemporâneos deveriam pensar muito nisso ou, ainda melhor, não levar os preconceitos assim tão a sério.

Da mesma forma que na vida prática, na leitura faz-se necessário superar a intuição do já visto, do conhecido, para só então obter-se simpatia pelas coisas e por sua narração. Superada a negação inicial, a recompensa reside não na confirmação do esperado, mas no flagrante do próprio espanto. Certo que isso exige o trabalho da atenção, mas o atordoamento que se segue ao descortinar um mundo desconhecido é o trunfo principal da boa literatura. A dificuldade maior reside em que as mediações já consolidadas impõem uma série de preconceitos que encobrem o humano e o reconhecimento que a literatura pode propiciar. Ocorre que os estereótipos competem num estreitamento mental e superá-los requer uma leitura desimpedida ou ao menos esclarecida quanto a essa realidade. Enquanto o caminho orientado ideologicamente conduz à recompensa da confirmação, a boa arte costuma ser a que desorienta o previsível e propicia tanto a reorganização da memória social quanto do auto conhecimento.

Contra o ódio

Artigo publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo, 19/12/2020.

A editora veneziana Âyiné desembarcou no Brasil há não muito tempo. São cerca de três anos incompletos. Desde Belo Horizonte, ela vem distribuindo no Brasil um invejável catálogo de pequenas e cuidadosas brochuras que portam trabalhos de intelectuais estrangeiros que as demais editoras brasileiras costumam publicar apenas eventualmente e em tiragens restritas. Entre os autores já publicados, pode-se encontrar desde intelectuais conservadores, como Isiah Berlin e Roger Scruton, até pensadores de esquerda, como Giorgio Agamben e o melhor livro do coreano Byung-Chul Han publicado por aqui, Psicopolítica, além de outros autores e autoras menos difundidos. Em 2020, entre os muitos títulos editados, a Âyiné trouxe para o Brasil o livro Contra o ódio, da filósofa e escritora alemã Carolin Emcke. Um livro que dialoga com o sentimento que fervilha no mundo presente e é capaz de, de acordo com autora, mover o mundo em muitas direções.

Publicado na Alemanha em 2016 e em 2019 na Inglaterra, no exterior o livro foi recebido como um libelo em prol da tolerância e da democracia pluralista ao tempo da emergência do radicalismo populista. É um livro que no Brasil vai encontrar uma concorrência fraca, dado que os títulos políticos locais se mostram muito mais embaraçados com a crise do modelo econômico, a ontologia da crise político-institucional e a diagnose de seus efeitos, isto é, os libelos aqui continuam tão indefinidos quanto as previsões eleitorais para 2022. De outra sorte, os valores embutidos na moeda do ódio aqui ainda parecem não ter se definido completamente; infelizmente, não a ponto de que o jogo político pareça poder dar-se sem a sua onipresença. Apesar de que o desgaste psíquico da nação tenha sido tremendo desde antes da última eleição presidencial, a impressão mais corriqueira dentre a opinião pública é que ainda temos muito dissenso por gastar até chegar a um novo degrau de convivência e acordo, se é que não é possível mesmo descer ainda mais um pouco na incivilidade. Trata-se de um risco que se tornou permanente.

É bem nesse sentido que o livro de Carolin pode colaborar em arrefecer um estado de espírito que favoreceu todo um vernáculo odioso que se passou a experimentar na mesma medida em que os meios de comunicação foram se tornando mais permeáveis, quando não abolidos por segmentos importantes da população desde aí informados por fluxos não claramente canalizados nas redes. No entanto, o mais relevante de imediato talvez fosse não apenas erguer do chão um animal político em condições de pacificar o caos, mas um que inspirasse a sociedade a refazer-se nos seus tecidos mais sutis e esgarçados e recuperasse a relevância de temas caros a um projeto de interesse público e comum, como melhor educação, acesso à renda, segurança, direitos e proteção social. Trata-se de um vocabulário também deixado de lado pela versão nacional do neoliberalismo que resultou numa crise que vem arrastando o país por longos anos já.

O livro de Carolin não traz, todavia, pacotes ou soluções econométricas para o reestabelecimento da convivência social. Tal espécie de ajustes, aliás, parece mesmo integrar cada vez mais claramente o problema do que a solução para tanto. De outro modo, Contra o ódio vai explorar mais as mazelas e manifestações políticas decorrentes da crise moral do modelo social global do que problemáticas abrangentes como as da macroenomia ou do método político. Desde que se assuma que as pessoas não experimentem ou percebam vivenciar efeitos diretos de assuntos globais como esses, é muito possível identificar que ela está mais interessada em acertar o ponto da vacina do que em eliminar radicalmente a moléstia da crise.

Não se pense, entretanto, que, dada a complexidade do tema e por notá-lo em suas manifestações mais efervescentes, trate-se de tarefa banal que a autora discorre desinteressadamente. Não é. Antes de dedicar-se a escrever ensaios filosóficos, Carolin atuou como jornalista em regiões de conflito por um bom tempo. Para a Der Spiegel, ela cobriu o árduo tema da imigração na Alemanha e as manifestações de xenofobia em solo europeu. Além disso, formou-se em Frankfurt sob a orientação do filósofo Axel Honneth, aluno dileto de Jurgen Habermas e principal desenvolvedor da Teoria do Reconhecimento. A influência desse pensamento se faz notar no livro de Carolin muito rapidamente, uma vez que seu propósito centra-se claramente em defender a noção de que a democracia contemporânea passa necessariamente pelo enfrentamento à intolerância e seus desdobramentos micropolíticos. É desde essa experiência e formação que ela toma a decisão de esmiuçar o sentimento de ódio e a violência procurando demonstrar como enfraquecê-los politicamente – este que é o objetivo central do seu ensaio.

Deste modo, o jornalismo e o relato vívido de situações contemporâneas contrapostos tanto à filosofia quanto à literatura a respeito da invisibilidade social, como o clássico O homem invisível de Ralph Ellison, fazem do livro de Carolin um ensaio truncado em temáticas, mas não em linguagem. É compreensível, pois abordar realidades violentas como as experimentadas pelo racismo, xenofobia, transfobia e outras manifestações discriminatórias radicais requer sobretudo um olhar direto e franco. Nessa perspectiva, Carolin em nem um momento permite-se teorizar a respeito dos fatos a que se refere. Pelo menos, em bem poucos momentos chega a converter a situação existencial das pessoas em especulação teórica, de gabinete. Por certo o jornalismo deu-lhe a mobilidade tão necessária a quem pretende encontrar-se com a dinâmica da exclusão, e não meramente observá-la entre os livros, à distância.

É justamente daí que a oportunidade de sua leitura compreende em facilitar a aproximação de pessoas que não experimentam ou praticam o discurso de ódio, mas tomam parte dele ao engajarem-se em outras formas não tão graves de violência, mas não livres de efeitos, como o silenciamento e a cumplicidade com gestos odiosos e suas expressões de violência. Nunca é demais lembrar que o Brasil, bem como outros lugares do mundo, vive muito a expectativa da doutrinação política, ou seja, recomendações do que se pode ou deve expressar principalmente no ambiente aberto das redes é policiado ou estimulado mais ou menos abertamente.

Quem nunca viu ou teve o azar de experimentar contra si a expressão em massa de agressões excludentes e recriminações costuma, inclusive, reportar essa espécie de abordagem como cerceamento à liberdade de expressão e outras justificativas antecedentes, como se houvesse uma razão histórica ou política solicitando essa espécie de confirmação. Contra o ódio, o livro de Carolin Emcke, não tem a pretensão de frear por completo a escalada de animosidade política e antipolitica presente. Seu livro está longe de ser, por exemplo, um manual de aplicação da lei de incitação aos crimes de preconceito ou uma defesa ideológica da criminalização da homofobia ou psicofobia. No Brasil, seria um livro quase sem efeito, pois o estatuto legal de proteção às discriminações é pouco organizado, difundido e aplicado. Seu mérito maior não está em, portanto, permitir essa aproximação ou equiparação, mas, por outro lado, em procurar inibir a exposição de pessoas vulneráveis tanto à violência interpessoal quanto institucional. Como se sabe, muitas vezes ambas as violências fartam-se na mesma mesa e com o mesmo alimento. Que o sentimento de ódio não constitua o prato principal é o que parece clamar o livro de Carolin porque, como tempero, por outro lado, parece ser infelizmente inerente à condição humana. Sua proposta não é sequer saber dosá-lo, mas nos permitir perceber quando está comprometendo a refeição e entender como evitá-lo.

A mulher submersa

Artigo publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo, 05/09/2020.

Os livros costumam ter itinerários fora e dentro da casa de gente. Fabricam-se, viajam e um dia chegam aonde deveriam chegar. Depois, diligentes, ocupam o seu lugar nas mesas, cabeceiras e depois ainda vão dormir, às vezes mal acomodados, nas prateleiras, como um volume a mais entre volumes. No entanto há livros que nunca couberam nem em si e logo vão encontrando, em sua vocação líquida, uma forma de se esparramar tão logo desembarcam. Como um parente antigo que, de repente, decide-se por cumprir uma promessa antiga e em definitivo regressa. Há pouco veio “morar” na minha em casa um livro assim, de pessoa que nunca vi, mas vi desde o primeiro instante de “quem” se tratava.

A mulher submersa, primeiro livro de Marceli Becker (ou Mar Becker, como é mais conhecida) e publicado em São Paulo pela editora Urutau, vê-se logo que é livro de gente viva e que se reconhece tão instantaneamente como a alguém que estivesse fadado mesmo ao destino de se deixar compartilhar sem receios, numa poesia impraticada, singular, e ao mesmo tempo comum, tal fosse parte da nossa própria voz a dizer aquelas coisas, em nós mesmos já incorporadas. Pois esse livro antes de chegar para ocupar um espaço entre as coisas da casa, veio não para ser guardado em fileiras de outros livros dorminhocos, mas para dizer por tantos que já andaram e disseram nos dias e noites da nossa vida.

É mesmo um livro um tanto fantasmagórico esse. E, por isso, mágico. Dentro dele, uma poesia discreta e vigorosa deixa falar mais que uma pessoa, mais que um tempo, mais que um motivo só. E antevejo nele minha bisavó, também poeta, e seus poemas riscados com pedaços de hulha no imenso tempo que há numa vida. Numa daquelas fotografias dentro do livro, sei que ela está lá também, carcomida do tempo, como eu a conheci.

Boa parte das pessoas, gaúchos inclusive, pensa na cultura do Rio Grande do Sul como uma cultura formatada em temas perenes e paisagens iridescentes e aconchegantes. O horizonte púrpura, crepuscular, a madrugada fria. Pouco se vê dos pátios, dos lugarzinhos, das gavetas dos móveis, das peças de roupa, das asperezas e dos gestos de pessoas que, muito ao contrário da imagem falastrona, dizem pouco, às vezes até desistem de dizer e deixam-se viver como se numa ciência tácita do próprio destino – e suas coisas.

Marceli é uma poeta que faz disso tudo matéria poética e está além das fronteiras porque sua poesia alcança a intimidade essencial das pessoas seja quando evoca o erotismo de Safo e os temas ancestrais da humanidade e das referências clássicas, da paixão bíblica e o estranhamento do ser e do sentir, como se trouxesse consigo um tanto de paraíso e apocalipse em sua poesia definitiva, como bem definiu certa vez o também poeta e amigo comum José Francisco Botelho, por intermédio de quem a conheci e pelo que sou grato. O fato dele ser poeta também é algo que a seu tempo será revelado, pois consagrou-se como excelente contista, mas há rumores de que logo um livro de versos seus vem por aí também.

Elogiada no Brasil inteiro por estudiosos, diletantes e leitores, desde antes do lançamento de A mulher submersa Marceli é de uma transparência que a faz ainda mais autêntica e se pode enxergar instantaneamente uma poeta devotada à sua arte e a quem ela é, em sua identidade. É algo muito estranho acompanhar o seu perfil nas redes sociais e ver que um dia bem ela está mencionando Herberto Helder como cantores populares do sul. Gildo de Freitas, Jayme Caetano Braun, Pedro Ortaça e os músicos do Folklore 4, de Bagé, estão tão presentes na sua timeline como Antonio Gamoneda, Alejandra Pizarnik, Bashô e Jacques Roubaud. Com uma tranquilidade temperada e um humor semelhante, Marceli é uma excelente companhia (mesmo virtual) e eu recomendo muito segui-la tanto quanto lê-la. É impressionante mesmo que se trate da mesma pessoa na sua composição mais íntegra de simplicidade e complexidade. Talvez daí venha justamente o apodo “Mar”.

Gaúcha de Passo Fundo, Mar Becker revive uma sentimentalidade do sul, nada óbvia, e faz caber num detalhe doméstico qualquer a imensidão de seu olhar e seu afeto cultural.  Quase nunca se vê o tanto de desterro, de solidão e de reflexão que acompanha a poesia de quem se afasta do seu lugar de constituição e afeto original. Numa gaveta de sua casa, em São Paulo, Marceli encontra um conjunto de atavismos e memórias e imagens a quem ela dá vida como quem é capaz de encantar e transmitir esse encantamento em versos fluídos dos quais ela mesma se faz.

No Quebec ou nas estepes do Azerbaijão, os temas da poesia são os mesmos porque as pessoas são as mesmas em sua aventura. De um olhar atemporal, de quem se observa e reconhece suas faltas, amores, saudades, tristezas, alegrias, de tudo isso se preencheu a minha casa, casa da minha família, em razão deste A mulher submersa. Engraçado é que parece possível encontrá-la numa janela de Porto Alegre, das muitas que vejo desde a reclusão da pandemia. Prova de que a sua poesia viaja apesar de tudo e está também onde estamos e mal notamos. A poesia de Mar Becker tem também a poesia que nós somos e pouco lembramos. Agora, com o livro, tudo finalmente ficou mais fácil e simples, como é de seu modo de ser. O Rio Grande do Sul pode congratular-se sem medo do surgimento em livro de Mar Becker e dizer que ela é sua. Quem a leu, afinal, já notou que a verdade é que nós é que somos dela.

O “Ponto-final” de Marcos Nobre

Artigo publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo, 27/06/2020.

Parte integrante da recém-lançada Coleção 2020 – Ensaios sobre a pandemia, da editora Todavia, o mais recente ensaio de Marcos Nobre, Ponto-final: a guerra de Bolsonaro contra a democracia, é um livreto extraído a quente do momento político brasileiro atual. O autor, que além de professor do Departamento de Filosofia da Unicamp assumiu no ano passado a presidência do cinquentenário Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), é um pensador que, pelo menos desde junho de 2013, vem fazendo a análise política institucional brasileira quase sempre ao tempo dos fatos. Essa característica, se por um lado o torna um tanto quanto vulnerável a precipitações, por outro o coloca na vanguarda do pensamento brasileiro conforme ele se expressa na vida política e intelectual da sociedade. O risco invariavelmente tem valido a pena. São de sua autoria boa parte das análises mais consistentes da política nacional desde aquele junho até o atual, intervalo no qual o cenário de forças e influências transfigurou-se na história recente até chegar à eleição de Bolsonaro em 2018 e a primeira crise política relevante do seu governo, agora em 2020, em meio à pandemia do coronavírus.

Ponto-final parte, portanto, do presente em direção ao passado e também a algumas especulações a respeito de tendências futuras de um governo marcado por auto polêmicas. Num livro breve, de leitura rápida, seu autor procura traçar a rota de racionalidade na qual vem se movendo o presidente, o seu governo e a coalizão de forças que, com a saída do ministro Sérgio Moro, agora parece fraquejar nas suas principais promessas, quais sejam o enfrentamento à corrupção e o afastamento de grupos e figuras políticas que o próprio presidente costumava classificar como pertencentes à “velha política”. Além disso, Nobre examina as características funcionais do governo em sua dinâmica interna, propondo que o governo Bolsonaro seja analisado desde a sua própria concepção e funcionamento. Nisso também ele se distingue de boa parte da crítica que se faz ao governo atual na imprensa e no mundo acadêmico, dado que se trata de uma perspectiva que implica todos os atores políticos num mesmo cenário e não externaliza uma visão sectária.

De deputado do baixo-clero a candidato outsider e daí a presidente da República, para Marcos Nobre a trajetória do presidente Bolsonaro está intimamente relacionada à crise do presidencialismo de coalizão que governou o Brasil a partir do centro político desde a instauração da Nova República, representado principalmente no MDB de José Sarney. Precisamente em 2013, véspera da eleição presidencial que reconduziu Dilma Rousseff ao poder, de acordo com ele o sistema político colapsava e acenou insegurança em responder às demandas desuniformes da população passando a agir de forma autofágica justamente quando o enfraquecido PT governava o país e podia ser sacrificado pelo sistema político em prol da salvação de grupos que não viam problema nisso, desde que salvassem a própria pele no processo de impeachment de Dilma Rousseff.

Situado à margem do processo de instauração do impeachment e afastado do centrismo destroçado pela Lava-Jato, Bolsonaro teria, de acordo com Nobre, aproveitado a dissolução do sistema para reunir em torno da sua candidatura setores também marginais e descontentes com o projeto de coalizão do governo petista. Dessa forma, com o apoio de classes subalternizadas na máquina pública, como militares de baixa patente, pequenos empresários, agricultores e, sobretudo, o baixo clero do Congresso, ele teria finalmente saído vencedor nesse levante contra o sistema político. Nobre diz ainda que estes setores representariam a parcela inarredável de apoio com que o presidente Bolsonaro vem se mantendo principalmente após a crise ministerial e o abalo da chegada do coronavírus ao país e a respectiva crise sanitária.

Tendo vencido o candidato “improvável”, na eleição mais caótica que o país poderia ter, de acordo com Marcos Nobre o presidente Bolsonaro jamais teve interesse em apaziguar o país – o que seria quase o mesmo que acariciar o arranjo contra o qual foi eleito. Mesmo em meio à pandemia, quando seria razoável manter-se uma equipe estável e um projeto de contenção sanitária, a desestabilização institucional continuou sendo o regime ao lado de uma crescente militarização do executivo expressando o desejo de implementação de uma hierarquização cada vez mais vertical na estrutura do Estado. No terremoto constante do seu governo, apenas as figuras incontestavelmente identificadas com essa postura poderiam guarnecer o presidente. Nesse sentido, a demissão dos ministros Sérgio Moro e de Luiz Henrique Mandetta representariam muito mais o descarte de ameaças à integridade do governo do que a popularidade do presidente, como foi aqui e ali aventado.

Assentado no que denomina ser um “governo de guerra”, Marcos Nobre defende a ideia de que a governabilidade de Bolsonaro está calcada na manutenção de um estado de beligerância constante, o que ele chama de “método do caos”. A ideia consistiria na geração incessante de conteúdo ideológico e na permanente desqualificação da esfera pública, na qual a imprensa apareceria como adversário central ao seu projeto de governo. Além disso, a crise da pandemia ao tempo em que teria desgastado sua gestão militarizada da coisa púbica acabou por fortalecer a figura de um personagem político em luta eterna contra o sistema e o aparelho jurídico representado principalmente no STF. Em sua recente guinada em direção ao centrão do Congresso Nacional, elemento central de detratação de sua campanha eleitoral, o presidente administra agora uma parceria insólita com figuras como Roberto Jefferson e Valdemar Costa Neto, desagradando o setor militar e tornando mais nebulosa a retomada da normalidade, que dirá o “novo-normal” necessário à superação da crise sanitária e econômica.

Concorde-se mais ou menos com suas avaliações, de qualquer forma é muito relevante que as análises políticas, tais como as propostas por essa coleção da Todavia, venham a púbico neste momento e sirvam ao propósito de fermentar o debate público, muitas vezes nebuloso e deprimido. O que Marcos Nobre procura fazer, e que não se encontra tão facilmente entre analistas e comentaristas em geral, é pensar o Brasil para além da agenda na qual os políticos tentam forjá-lo (visando normalmente eleições). A tarefa requer um tanto de sangue frio. No entanto, poucas pessoas como ele têm essa frieza e não se deixam levar pela comoção ou por conveniências narrativas, selecionando apenas elementos de análise que o favoreçam. Se a sensatez caracterizasse o tempo presente, mesmo o governo e seus apoiadores poderiam refletir mais e melhor a respeito da forma de conduzir o Brasil o mais longe possível do precipício que 2020 parece estar se transformando.

“Marrom e Amarelo” e o racismo no Brasil dos anos 10

Artigo publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo, 11/01/2020.

O mais recente livro de Paulo Scott, Marrom e amarelo, publicado em 2019 pela Companhia das Letras/Alfaguara, é um livro que não deixa muitas dúvidas, mas deixa algumas (e é bom que as deixe). Desde o primeiro parágrafo, quase um libelo, logo se fica sabendo de sua intenção política: a denúncia da persistência do racismo estrutural no Brasil dos anos 10. É indubitável. Ainda assim, é dessa mesma certeza que provém o seu maior potencial de questionamento e que aos poucos prolifera em dúvidas dirigidas, por sua vez, aos leitores. É que é impossível deixar de pensar em como, ao final de um período político histórico em tese favorável às questões relacionadas aos direitos humanos, não se conseguiu debelar a semente dura, aparentemente inabalável, do racismo em sua forma brasileira.

Ambientado na Porto Alegre contemporânea, o romance é protagonizado por dois irmãos que se reúnem justamente em função de libertar a filha de um deles (sobrinha e afilhada de outro). Ela acaba de ser presa por envolver-se em manifestações políticas emergentes realizadas em torno à desocupação de um prédio no Centro Histórico de Porto Alegre e o responsável pela prisão é justamente um antigo conhecido e desafeto dos irmãos.

Contrapondo experiências de duas gerações de ativistas, o romance de Scott coloca em comparação momentos distintos da história brasileira e também do ativismo negro, apesar de que temporalmente bastante próximos. O primeiro, anterior, e que remonta à redemocratização e aos anos 80 e 90 do séc. XX; o outro, recente, forjado no Brasil pós-2013, no qual uma jovem ativista equipada tecnologicamente vê-se ainda às voltas com o drama inarredável do preconceito e da discriminação.

O romance, no entanto, diz muito mais do que o produto dessa justaposição e desse desconforto político. Lido assim parece resumir uma pedagogia que, de fato, não corresponde ao painel que indiretamente ele conta da vida de uma das capitais com menor distribuição étnico-racial do Brasil. De acordo com o IBGE, Porto Alegre é capital do estado brasileiro com o menor percentual de pessoas pardas em sua população, isto é, de pessoas com múltiplas ascendências étnicas (10,6%). O número de autodeclarados negros também está entre os menores da federação (5,5%). No Brasil inteiro, não poderia mesmo haver cenário mais favorável para um convívio social tão conflitivo.

No livro de Scott, essas diferenças falam da geografia dos bairros de uma cidade ocupada de forma radicalmente diferenciada, mas ainda mais de uma cultura cindida, pouco solidária e, por isso mesmo, violenta. De um lado, toda uma estrutura inacessível e refratária dos bairros ricos e de classe média, dos clubes, das instituições tradicionais da cidade. De outro, as ruas, as escolas precárias e vidas familiares permanentemente acossados por várias espécies de agressão, desde a violência casual, o tráfico, o permanente convite à delinquência e a violência institucional. É curioso, aliás, o modo pelo qual Scott nomeia insistentemente, ao longo do livro, nomes de siglas por extenso. É forma, talvez, que encontrou de imprimir no papel a certeza de que o racismo estrutural chama-se dessa forma justamente por agir muitas vezes desde e a partir das estruturas e instituições sociais e políticas.

Mesmo com um pano de fundo como este, resumi-lo como um livro de denúncia, no entanto, significaria apagar a intensa vitalidade conduzida pelo narrador/protagonista. Seja quando participa da burocracia estatal e manifesta sua crise para com as discussões políticas destinadas ao acesso por cotas ao ensino superior, seja quando retorna à cidade natal e percebe intocada a cultura discriminatória e o cotidiano de pequenas violências, Federico precisa reaver-se com o próprio passado e com as diferenças afetivas com o próprio irmão Lourenço. Não bastasse isso, os dois irmãos são também diferentes na cor da pele (enquanto Lourenço a tem mais escura, Federico é mais claro e tem cabelo liso) e, principalmente, na forma como encararam o drama do racismo individualmente.

Por meio de muitas idas e vindas ao passado, o romance chega a uma culminância muito mais afetiva do que política. É no seu reencontro com a família, os antigos amigos do Partenon e com a projeção das dificuldades enfrentadas agora pela sobrinha que ele precisa tomar a decisão de reirmanar-se aos seus e voltar ou não a viver em Porto Alegre. Até chegar a isso, Scott terá reconstruído uma história e um lugar para Federico que extrapola em muito a jornada pessoal e diz respeito ao destino comum daqueles com quem se importa. O impasse ético de Federico não poderia ser mais crucial. Dividido entre a possibilidade de fixar-se longe de todos, num ativismo cada vez mais anódino e burocratizado, ou a de estar disponível à sua família e comunidade, Federico é recolocado à força nos trilhos da história por problemas tão antigos quanto reincidentes. Suas dúvidas, apesar disso, são o que lhe fazem mais humano e, por tabela, resolvem o romance não numa equação previsível, mas por uma trama que se mostra convincente porque derivada da complexidade inerente às relações humanas e políticas quando tomadas honestamente.