A mulher submersa

Artigo publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo, 05/09/2020.

Os livros costumam ter itinerários fora e dentro da casa de gente. Fabricam-se, viajam e um dia chegam aonde deveriam chegar. Depois, diligentes, ocupam o seu lugar nas mesas, cabeceiras e depois ainda vão dormir, às vezes mal acomodados, nas prateleiras, como um volume a mais entre volumes. No entanto há livros que nunca couberam nem em si e logo vão encontrando, em sua vocação líquida, uma forma de se esparramar tão logo desembarcam. Como um parente antigo que, de repente, decide-se por cumprir uma promessa antiga e em definitivo regressa. Há pouco veio “morar” na minha em casa um livro assim, de pessoa que nunca vi, mas vi desde o primeiro instante de “quem” se tratava.

A mulher submersa, primeiro livro de Marceli Becker (ou Mar Becker, como é mais conhecida) e publicado em São Paulo pela editora Urutau, vê-se logo que é livro de gente viva e que se reconhece tão instantaneamente como a alguém que estivesse fadado mesmo ao destino de se deixar compartilhar sem receios, numa poesia impraticada, singular, e ao mesmo tempo comum, tal fosse parte da nossa própria voz a dizer aquelas coisas, em nós mesmos já incorporadas. Pois esse livro antes de chegar para ocupar um espaço entre as coisas da casa, veio não para ser guardado em fileiras de outros livros dorminhocos, mas para dizer por tantos que já andaram e disseram nos dias e noites da nossa vida.

É mesmo um livro um tanto fantasmagórico esse. E, por isso, mágico. Dentro dele, uma poesia discreta e vigorosa deixa falar mais que uma pessoa, mais que um tempo, mais que um motivo só. E antevejo nele minha bisavó, também poeta, e seus poemas riscados com pedaços de hulha no imenso tempo que há numa vida. Numa daquelas fotografias dentro do livro, sei que ela está lá também, carcomida do tempo, como eu a conheci.

Boa parte das pessoas, gaúchos inclusive, pensa na cultura do Rio Grande do Sul como uma cultura formatada em temas perenes e paisagens iridescentes e aconchegantes. O horizonte púrpura, crepuscular, a madrugada fria. Pouco se vê dos pátios, dos lugarzinhos, das gavetas dos móveis, das peças de roupa, das asperezas e dos gestos de pessoas que, muito ao contrário da imagem falastrona, dizem pouco, às vezes até desistem de dizer e deixam-se viver como se numa ciência tácita do próprio destino – e suas coisas.

Marceli é uma poeta que faz disso tudo matéria poética e está além das fronteiras porque sua poesia alcança a intimidade essencial das pessoas seja quando evoca o erotismo de Safo e os temas ancestrais da humanidade e das referências clássicas, da paixão bíblica e o estranhamento do ser e do sentir, como se trouxesse consigo um tanto de paraíso e apocalipse em sua poesia definitiva, como bem definiu certa vez o também poeta e amigo comum José Francisco Botelho, por intermédio de quem a conheci e pelo que sou grato. O fato dele ser poeta também é algo que a seu tempo será revelado, pois consagrou-se como excelente contista, mas há rumores de que logo um livro de versos seus vem por aí também.

Elogiada no Brasil inteiro por estudiosos, diletantes e leitores, desde antes do lançamento de A mulher submersa Marceli é de uma transparência que a faz ainda mais autêntica e se pode enxergar instantaneamente uma poeta devotada à sua arte e a quem ela é, em sua identidade. É algo muito estranho acompanhar o seu perfil nas redes sociais e ver que um dia bem ela está mencionando Herberto Helder como cantores populares do sul. Gildo de Freitas, Jayme Caetano Braun, Pedro Ortaça e os músicos do Folklore 4, de Bagé, estão tão presentes na sua timeline como Antonio Gamoneda, Alejandra Pizarnik, Bashô e Jacques Roubaud. Com uma tranquilidade temperada e um humor semelhante, Marceli é uma excelente companhia (mesmo virtual) e eu recomendo muito segui-la tanto quanto lê-la. É impressionante mesmo que se trate da mesma pessoa na sua composição mais íntegra de simplicidade e complexidade. Talvez daí venha justamente o apodo “Mar”.

Gaúcha de Passo Fundo, Mar Becker revive uma sentimentalidade do sul, nada óbvia, e faz caber num detalhe doméstico qualquer a imensidão de seu olhar e seu afeto cultural.  Quase nunca se vê o tanto de desterro, de solidão e de reflexão que acompanha a poesia de quem se afasta do seu lugar de constituição e afeto original. Numa gaveta de sua casa, em São Paulo, Marceli encontra um conjunto de atavismos e memórias e imagens a quem ela dá vida como quem é capaz de encantar e transmitir esse encantamento em versos fluídos dos quais ela mesma se faz.

No Quebec ou nas estepes do Azerbaijão, os temas da poesia são os mesmos porque as pessoas são as mesmas em sua aventura. De um olhar atemporal, de quem se observa e reconhece suas faltas, amores, saudades, tristezas, alegrias, de tudo isso se preencheu a minha casa, casa da minha família, em razão deste A mulher submersa. Engraçado é que parece possível encontrá-la numa janela de Porto Alegre, das muitas que vejo desde a reclusão da pandemia. Prova de que a sua poesia viaja apesar de tudo e está também onde estamos e mal notamos. A poesia de Mar Becker tem também a poesia que nós somos e pouco lembramos. Agora, com o livro, tudo finalmente ficou mais fácil e simples, como é de seu modo de ser. O Rio Grande do Sul pode congratular-se sem medo do surgimento em livro de Mar Becker e dizer que ela é sua. Quem a leu, afinal, já notou que a verdade é que nós é que somos dela.

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