Um novo olhar qualquer

Várias vezes por ano, por mês, semana ou até mesmo dia sou convocado por bueníssimas razões (pelo menos quero acreditar nisso) a experimentar um “novo olhar”, um “outro olhar” sobre o mundo e suas situações. As aplicações são as mais diversificadas possíveis: vão desde situações abstratas como um “novo olhar” para a “existência” ou a “diversidade”, até um “outro olhar” para o mundo concreto, social, seus fenômenos e contingências. Acontece que a convocação, como são todas as convocações, costuma ser bastante imperativa, isto é, deve-se acatar de imediato as perspectivas da postulação, sem o qual o “novo” olhar não ganha sentido, não opera, simplesmente ele não funciona.

Trata-se de um paradigma quase, mas também de uma metáfora, quase uma sugestão. Há que se escolher bem os termos com que se colocar este “novo” e este “outro”, portanto, para que não se empreenda, ao invés de convencimento e diálogo, imposição violenta e arbitrariedade.

Parece exagero dizer que há uma postulação violenta na proposição de uma novidade e que, pelo menos em tese, todas as novidades são benéficas, o que é essencialmente falacioso. Porém, desde que seja necessária uma inutilização prévia de meu instrumental para ir à aventura do “novo”, do “outro”, ou do que assim seja apresentado, cai por terra de imediato a conotação construtiva da novidade, pois ela ocorre a partir de uma demolição e não de uma consertação. Por outro lado, se mera metáfora fosse, seria uma metáfora um tanto enganosa, ou pelo menos uma promessa que substituiria em poucas palavras uma construção histórica, uma série de condições e acontecimentos duradouros, e não uma proposição equivalente.

Se neste caso usássemos uma metáfora, seria como dizer que a mudança partir de  um “outro olhar” ou de um “novo olhar”, seria mais como mudar o ângulo de visão do que substituir uma lente por outra.

Não há quem ignore que a metáfora é figura de linguagem das mais corriqueiras, isso tanto na literatura quanto na linguagem coloquial. Em campos e domínios nos quais é preciso delimitar o real e clarear suas circunstâncias, todavia, seu uso às vezes pode mais atrapalhar do que ajudar. Poucos parecem perceber isso, afinal a metáfora, antes de qualquer coisa, é um suavizante da compreensão, isso dito já um tanto quanto metaforicamente.

É sobretudo nos textos jornalísticos nos quais mais tem prosperado o uso de figuras de linguagem em lugar de uma análise precisa das situações. Mas isso bem pode ser mais literatura do que jornalismo propriamente dito. O que acontece é que, ao valer-se de metáforas como formas de explicar o mundo concreto, aquele que a redige passa a agir plenipotenciariamente sobre os elementos de seu discurso. O mundo já não acontece como é de fato, linearmente, mas da forma pela qual o postulante escolhe narrá-lo e assim torna-se episódico, datado. O artífice dessa escrita é, portanto, dotado de poderes sem limite acerca dos fatos e os minora ou amplifica de acordo com a sua exclusiva vontade. É um poder invejável. Em tempos nos quais a eloquência pode garantir mais leitores do que clareza ou até mesmo conteúdo, há que se verificar em quantas camadas de tintas literárias se têm encoberto o mundo real em suas cruezas.

Interpretar-se uma realidade política, por exemplo, com o uso da metáfora, pode ser um artifício poderoso na linguagem falada e consiste num traço retórico admirável, se empregado no ambiente adequado. Por outro lado, seu uso desenfreado costuma servir bem mais a um esforço evasivo e simplificador. O impacto se torna cansativo, a metáfora então exaure a si própria e, mais ainda, a quem é dirigida. O texto impregna-se de imprecisão, o discurso torna-se algo delirante, cada vez mais permeado por ambiguidades e,  consequentemente, vai dissociando-se do real e do objeto a que pretendia referir-se.

Há também que o uso deliberado da metáfora em situações realistas acaba competindo na própria desvalorização da figura de linguagem e, por tabela, da própria poesia. Quer dizer, poetizar a realidade faz muito sentido na literatura, quando a ênfase está localizada em potencializar a cognição do leitor; não faz tanto sentido se acaba por servir a desviá-lo da realidade para um seu duplo, artificial, planejado e ilusório (isso mais ou menos nos termos de Clément Rosset, em O real e seu duplo).

Aí é que está: não há que conferir-se o status poético a uma situação real. Do real pode-se depreender a poesia, porém a ele jamais atribuí-la arbitrariamente. Na poesia, especialmente, a metáfora cumpre funções que normalmente enriquecem o texto escrito, como o de expansão de significantes e uma maior mediação simbólica entre texto e leitor. Mesmo que nem sempre seja usada com acerto ou economia, literariamente a metáfora costuma abrir um leque de possibilidades interpretativas. Na interpretação da realidade, entretanto, a metáfora às vezes se converte em mera evasiva e substituição de sentidos. Dá-se então o oposto, e a metáfora passa a ser empobrecedora do discurso por um caráter de imprecisão que desvia a cognição dos fatos para uma poetização do real, mas quando já não se trata mais de poesia.

Com isso quero dizer que a metáfora de um “novo” ou “outro” olhar estabelece um contato tênue demais para representar ou fomentar a mudança social ou cultural efetiva. A quem interessa vivenciar as condições da “novidade”, é necessário perceber claramente uma alteração substanciosa nas condições concretas nas quais o “novo” e o “outro” possam prevalecer. De outro modo, não há “novo” ou “outro” algum, caso a experiência se mantenha estável, constante.

Um exemplo simples a que se pode referir é o da “Nova República”, como ficou conhecido o período político posterior à abertura democrática brasileira. O que, de fato, aconteceu de “novo” ali nas condições materiais e econômicas brasileiras, para além da retomada do direito ao voto? Mais reforma agrária? Mais e melhor educação? Quais as condições de manifestação e verificação deste “novo”, afinal? Pois com tudo o que se denomina “outro” ou “novo” costuma acontecer o mesmo, com exceção, talvez, na ciência, onde a terminologia “paradigma” faz realmente algum sentido.

De mais a mais, é conveniente muitas vezes passar-se a ideia, dar a entender de que se está diante de um “novo”, mas o que há de real e metafórico nisso tudo? Ou seja, é possível convencer a alguém de que é fundamental para a constituição do “novo” a adequação de um “novo” olhar, mas não qualquer “novo olhar”: apenas aquele que se deseja fazer vigorar. Além disso, não vivemos num tempo etapista, no qual as condições são sumariamente eliminadas em prol de outras. Pelo contrário, a dinâmica social é da diversidade e a diversidade é nesse aspecto mais caótica do que harmônica. Mudanças uniformes já aconteceram na sociedade, nas mudanças de regime político, nas mudanças legais e formais, mas nunca atingiram as pessoas da mesma maneira e isso porque elas não ocupam a mesma posição social.

Eu não duvido nem um pouco que os “convites” e “convocações” sobre os quais estou tentando comentar continuarão chegando. Mensalmente, semanalmente, diariamente… Eu apenas quero dizer que, usando da mesma metáfora já utilizada, é muito difícil que eu mudasse meu ângulo de visão, mas apenas testasse a lente dessa nova promessa. Mudar o lugar das coisas costuma ser bem mais trabalhoso (e bem menos poético), que a instituição de uma palavra ou um “novo” qualquer.

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