Não se discute

Tem duas situações específicas que me deixam p da vida com Jorge Luis Borges. Nenhuma delas diz respeito a ele mesmo, mas ao que dele fizeram e continuam a fazer.

A primeira delas é uma tradução deturpada de um poema seu, o “Poema de los dones”, no qual ele narra o drama da perda da visão num dos períodos da vida em que trabalhou na Biblioteca Nacional da Argentina.

Nesses tempos de “objetificação bibliófila”, quando a exposição do objeto livro vale pelo menos o triplo do seu conteúdo – seguidamente me aparece uma tradução capciosa de Borges, na qual ele teria dito que “o paraíso é uma forma de livraria”. Uma homenagem ao estabelecimento comercial que Borges, com efeito, nunca produziu, porque o original de seus versos, no “Poema de los dones“, diz apenas o seguinte: “Lento en mi sombra, la penumbra hueca / exploro con el báculo indeciso, / yo, que me figuraba el Paraíso / bajo la especie de una biblioteca.”

De que forma “biblioteca” passou a ser “livraria” nessa versão muito difundida pela internet eu não consigo explicar. Se Borges tivesse utilizado “librería” ainda vá lá, mas “biblioteca” traduz-se para “biblioteca” do espanhol ao português. Dirão que é preciosismo meu e que são quase sinônimos e que o sentido não se altera.

Como assim não se altera?

De uma instituição pública e não comercial a uma outra inteiramente mercantil há uma diferença abissal. Além do mais, neste poema Borges comenta da crescente cegueira que o acometia no período em que atuara como bibliotecário e depois como diretor da Biblioteca Nacional da Argentina. Desta forma, se ao menos o poema se referisse a uma improvável experiência dele como livreiro ou vendedor de livros, acho que seria mais aceitável a deturpação. Como essa passagem biográfica efetivamente não confere com a realidade, não se justifica o uso. E o mais curioso (mas pouco engraçado) é que através do Google, Vossa Quintessência da era digital, prospera muito mais a versão deturpada da citação do que a correta. A bem dizer, curioso mesmo seria caso se desse o contrário..

Acho essa deturpação muito grave e triste para os bibliotecários de um modo geral, que assim veem surrupiado (não me ocorre outro termo) o seu direito a reivindicar o coleguismo e patronato do caríssimo Jorge. É como se os futebolistas não pudessem mais falar em Pelé, por exemplo, mas apenas num vendedor de chuteiras. Ou Maradona, a fim de que não se entre na querela geopolítica que anima as nações vizinhas.

Mas é da vida e ela, como se sabe bem, nem sempre é justa.

De todo o modo, toda a cultura livresca gosta muito de se referir a Borges e sua devoção ao hábito da leitura. É como se fosse um patrono universal do livro, reconhecimento supremo para um escritor. E justíssimo no caso dele, diga-se de passagem. No Brasil, entretanto, o objeto livro é informalmente patronado por Monteiro Lobato. O escritor, cuja obra (e biografia) hoje está envolvida em polêmicas raciais, além de editor (foi co-fundador da Brasiliense com Caio Prado Júnior e outros), transformou em pontos livreiros cada casa de comércio interior do Brasil adentro, entre farmácias e padarias, chegando a 2.000 pontos de venda – número hoje muito provavelmente inexistente… Mas temos o Google aí, que sempre serve para alguma coisa.

Assim como Lobato, Borges também é eventualmente criticado – e duramente – por razões estranhas à literatura. No seu caso, por declarado conservadorismo e simpatia para com o governo militar argentino. Posicionamentos condenáveis quanto a política e momentos políticos evidentemente não são privilégios de conservadores, mas, pelo menos aqui nesse texto despretensioso, não fazem diferença e não têm interesse algum. Os objetos de minha encrenca com Borges aqui são outros e o segundo deles diz respeito à certa apropriação indébita que explico melhor a seguir.

Bem, se estivesse conhecendo-o agora, julgaria que Jorge Luis Borges fosse porto-alegrense. Logo ele, que tão pouco se preocupou com os assuntos dos vizinhos de cá do Rio da Prata. É sério isso. Às vezes me parece que nem os buenairenses têm tanta devoção a Jorge Luis Borges quanto os porto-alegrenses. Eu classifico a “coisa” como obsessão. Não encontro termo melhor.

Nada contra, em absoluto, à relevância literária de Borges, mas às vezes tanta citação e reverência me parecem revelar certo desejo inconfesso dos gaúchos imaginarem-se platinos e em imaginarem Porto Alegre como um prolongamento fantasioso de Buenos Aires. Também classifico a isso como obsessão. E repito, nada disso é contra Borges nem muito menos contra Buenos Aires, mas às vezes acho muito deslocado (para não dizer afetado) encontrar na população riograndense de um modo geral identificação tão plena e rápida com Borges. E Porto Alegre, bem, procurando ser justo com a prata da casa, creio que não necessita tanto assim desse frenético platinismo.

Por mais que considere incomparáveis a obra de um e de outro, acho que Porto Alegre ainda deve muito a sua própria caracterização e identidade a Mario Quintana, que dedicou à cidade versos de autêntico carinho e inspiração peculiares. Mas Quintana, assim como nunca foi bom o bastante para a Academia Brasileira de Letras, parece ainda hoje não ser uma referência suficientemente boa para os próprios porto-alegrenses. E olha que o homem escreveu “O Mapa”..

Não basta. Na síndrome de vira-latismo porto-alegrense, quaisquer valores locais são menosprezados diante do menor efeito blasé vindo do exterior, nem que seja logo ali do Mampituba. Isso acontece com Quintana, com Érico e até com o seu filho Luis Fernando, cronista ímpar e inigualável da literatura brasileira. Todos “superados”. Às vezes desconfio, aliás, que um escritor gaúcho é superado desde antes de começar a escrever. E o mais estranho de tudo, por seus próprios pares e críticos… Mas a Argentina, ah a Argentina… Tem Cortazar, Saer, Sábato, Arlt, Piglia e mais um monte de escritores colossais. E, ainda por cima, Borges.

Dito isso, deveríamos os gaúchos deitarmo-nos ao chão e esperar a passagem triunfal dos hermanos sobre as nossas cabeças medíocres. O povo daqui, se ouvisse o ruído dos crânios partindo-se, decerto não faria nada e citaria como exemplo de autor o velho Borges, num masoquismo muito particular e nosso. Principalmente isso: nosso.

Humildade, aliás, é exatamente a segunda razão que me faz ficar p com Jorge Luis Borges. Por mais glorioso e valoroso que seja, quanto a livros e bibliotecas e talvez postura de vida, me identifico muito mais com o “simplório” Quintana. Acho magnífica essa foto dele, sentado anônimo em uma de mesas da Biblioteca Pública do Estado, lendo tão absortamente quanto perfeito pode ser o gesto da leitura: íntimo, silencioso e discreto.

Quanto a Borges, há inúmeras e majestosas imagens suas na Biblioteca Nacional da Argentina, como esta que uni arbitrariamente a de Quintana. Mas é esse o ponto a que queria chegar: me enraivece Borges não por ele mesmo, nunca isso me passou pela cabeça, mas me irrita a reverência excessiva com que os gaúchos muitas vezes lhe tratam, quando é apenas mais um entre os escritores e que provavelmente não daria a menor importância à importância que por aqui lhe dão. E além do mais, não se trata de admirá-lo como gaúcho fosse, mas como argentino que é, no que isso é bom e mau.

Os gaúchos, portanto, não Borges, me fazem muitas vezes cansar de (e por) Borges e às vezes preferir a ele qualquer quadrinha infantil do Mário Quintana, numa comparação ridícula porque ridícula é toda essa veneração. Mas Borges é inocente de ambas as culpas que ele não têm e mal lhe atribuo, eu sei. Mesmo assim, na ausência de qualquer melhor argumento e na presença de uma comparação esdrúxula como essa, Quintana era muito mais simpático e quanto a isso não se discute.

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