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Epílogo

Não são muitos a essa hora na rua, ainda mais que maio já exulta um frio que emerge das superfícies, por tudo… Brota das gretas e das rachaduras da tinta uma espécie de suor. Os tijolos suam do tanto que fazem em suportar as vidas em seu interior. Aqui onde estou não há ninguém, mas alguém ainda mantém um fogo aceso. Sinto o ardido da lenha verde queimando e exalando o perfume de uma lareira ou um fogão a lenha aceso já por um desses velhos madrugadores. Mas, na rua, ninguém. A cerração é uma nuvem que desistiu de voar, a mãe disse um dia, e a essa hora há como uma fusão das duas neblinas, a da noite e a do dia. O Fernando não está aqui como disse que estaria e em lugar nem um me parece haver alguém conhecido a quem possa mostrar o recorte de jornal que trago no bolso traseiro da calça jeans. Uma folha do Correio do Sul dobrada em oito ou doze partes, uma imagem borrada ali dentro, a face imberbe de um Alexandre como eu o conheci. Não pode ser a mesma pessoa, eu penso. E por isso preciso tirar a limpo essa informação com alguém. Morreu mesmo? Mas isso é verdade? Quando foi? Alguém foi a esse velório? Era ele mesmo? E se ele botou alguém no lugar dele? Um cupincha que se prestasse… E se ele fez isso para fugir ao Uruguai, Bolívia, o raio que o parta? Quem é que numa hora dessas pode andar por essa maldita cidade e me dar certeza? “Morreu, sim”, quem vai me dizer? Viu a certidão de óbito? Doente de quê? Morto por quem? Pensa bem, tu estás falando do Alexandre e ele tem tantas vidas como um gato, um gato vadio que ninguém segura ou aprisiona. O Alexandre, eu quero dizer, é ladino e felino, o filho-da-mãe, e só vocês mesmo, que são burros, acreditam nas lorotas dele. Eu sei bem que ele está solto a essa hora. Aonde? Que sei eu? Na zona, num boteco fuleiro, na cama do prefeito, o Alexandre ele pode estar onde ele bem entender e é por isso que eu vim aqui, que de outro modo não viria. Não tenho interesse nesse lugar depois da morte do pai e de que consegui finalmente levar a mãe comigo. Vim porque me deram a certeza de que era verdade, mas eu não acredito em ninguém que ainda viva aqui. Este lugar sempre foi um poço de mentiras, meias verdades, um precipício de ilusões dementes. Ali adiante, onde morei, a mesma casa. Se olho ao sul, só o vento de sempre, anavalhando o que encontra pela frente. Pela noite, ruínas de memórias revestem a cidade que parece a mesma, mas não há mais ninguém aqui se ele morreu. É um lugar propício onde morrer de tanta paz, de tanto tédio, de tanto nada para fazer. Eu vim buscar quem me confirme da morte desse traste humano e nem o Fernando, que gostava de mim, consegue estar ainda aqui, ele que resistiu mais que todos nós. Escorado nessa mesma parede, ele fumava lentamente e olhava adiante como se pudesse tocar outro destino com os olhos. E raspava as palmas das mãos como se fosse dizer algo surpreendente, mas só se queixava do frio. “Que frio é esse?”, indagava num discurso pró-forma, sem esperar resposta, sem esperar nada. Ao lado dele, não me intimidava o Alexandre, porque nesse caso ele é quem se intimidava. Nem ao menos o Fernando aqui, claro que não… Ninguém que parecesse conhecido, somente a figura de um Alexandre pálido no bolso das calças. E nem ele poderia me salvar mais de estar aqui, porque nunca me deixaria escapar, pegar a estrada de volta e fugir. Espero que venha de uma vez o dia antes que a noite me deixe também sem alma.

Beatriz Bracher e a regência da Guerra do Paraguai

Revista Parêntese, ed. 268

Cartas de antepassados, um livro perdido, relíquias, diários e outros recursos mirabolantes são artifícios mais que conhecidos por autores e leitores de ficção histórica. Recursos alegóricos via de regra utilizados pelos escritores como forma de estilizar a realidade e remover sua impenetrabilidade, facilitando o acesso dos leitores ao tempo histórico em suas tentativas de renovar sentidos e significação de momentos nebulosos do passado. No entanto, as fórmulas nem sempre funcionam, e permanece o desafio à imaginação literária dos escritores para que fujam ao clichê e suas alegorias escapem aos estereótipos. Embora situada num mundo entre o inesgotável e o repetitivo, o acesso ao tempo histórico pela ficção histórica é mais complexo que uma operação de verossimilhança. Quando satisfatório, escritores obtém o assombro de revelar enredos embaçados pela névoa histórica e encoberto pelos nossos olhos vidrados no presente contínuo.

Um livro que entre direto no assunto, como acaba de fazer Beatriz Bracher com a publicação de Guerra I, o primeiro volume da sua trilogia a respeito da Guerra do Paraguai, é no mínimo incomum, se não for de todo inédito. Com um romance todo composto por recortes organizados cronologicamente a fim de “narrar” com autonomia e literalmente os momentos e registros da guerra no seu próprio tempo e por quem efetivamente os viveu, Guerra I é o volume que descreve a ofensiva paraguaia de 1864 e prossegue até 1866, trazendo documentos, correspondência e relatos de inúmeras figuras históricas que participaram do confronto. Na sequência, os demais volumes devem chegar a momentos posteriores e definitivos do conflito.

A rigor, não há em Guerra I um narrador destacáveI, e é por esta razão que o “narrar” do parágrafo anterior precisa ser grafado estre aspas. Todo o livro é uma grande colcha de retalhos que se organiza temporalmente a partir de recortes documentais e que de imediato coloca o leitor a bordo de uma viagem inesperada e até certo ponto exaustiva, porque na forma escolhida por Betariz, não existem paradas, alívio ou o refresco de uma narração distanciada. Recortes literais de documentos recuperados em arquivos, outros livros, jornais, diários e tantas fontes quantas a autora encontrou em sua pesquisa para reorganizar uma memória coletiva, dada pelas impressões não de um sossegado narrador externo, mas dos indivíduos efetivamente envolvidos no confronto que acelerou a derrocada do Império no Brasil e a proclamação da República. Trata-se de uma memória linear e assimétrica, vez que as vozes em discurso muitas vezes são dissonantes e exigem da autora uma espécie de regência, de direção de cena. Narrar apenas, neste caso, mostra-se insuficiente, e a fidedignidade de cada linha do conteúdo é tanta e tão convincente que a impressão pode parecer mais a de um documento, um dossiê, do que um romance conforme o gênero é mais difundido e conhecido.

De certa maneira, Guerra I confronta a noção do romance histórico e do próprio romance. Não se poderia dizer, no entanto, que se trata da primeira iniciativa realizada no Brasil que se vale das técnicas de recorte (os cut-ups de William Burroughs e Brion Gysin). Na década de 70, pelas mãos de Ignácio de Loyola Brandão, o Brasil conheceu as desventuras de certo protagonista chamado José, por meio de artifícios que impactaram sensivelmente a literatura nacional. A narratividade suportada em documentos, em ambos os livros causa certo desconforto intelectivo, afinal, podemos saber hoje o que estava em curso, mas não aquelas pessoas que se encontravam efetivamente comprometidas nas condições do seu próprio tempo. Todavia se o impacto de Zero deve-se ao enredo entrecortado e marcado pela violência do período do regime militar, em Guerra I esse impacto ocorre principalmente pela espontaneidade das vozes que destacam um momento e conflito que de certa forma afirmou para o Brasil uma posição de vantagem na América Latina, ainda que com um custo terrível em vidas e déficit público.

Já nas pequenas notas que antecedem o livro, nas quais Beatriz explica seus critérios e metodologia, pode-se antever que o livro a seguir tem uma proposta ousada. Composto por fragmentos inteiramente não-ficcionais, logo a autora ressalva que seu método procurou “revelar a verdade que apenas a ficção é capaz de revelar”. Trata-se de uma salvaguarda que não lhe compete definir, pois esta revelação apenas pode se completar (ou não) aos olhos dos leitores. De todo modo, sabe-se já que sua empreitada não é mera montagem, busca revelar um sentido e uma verdade que escapam aos contribuidores do romance. Seu romance, afinal, ou anti-romance, trabalha mais com a ignorância do que com o esclarecimento. É o destino do humano, que desconhece o que lhe compele às matanças e demência coletiva, traçando num território ora sem males (o Paraguai) o mero horror e o nonsense, mas legando um romance que a autora se propõe mais a desvelar do que construir.

É pelas palavras e ideias de criaturas socialmente tão díspares quanto o Conde d’Eu, o ex-comandante farrapo Davi Canabarro, os jovens Visconde de Taunay e André Rebouças, e tantos outros, que somos conduzidos aos combates e acampamentos dos aliados. Ali encontramos pessoas sem muita noção do que estavam enfrentando e combatendo, mas que sabiam identificar o isolamento em que se encontravam numa guerra até hoje controversa, onde loucura e morte espreitavam como feras nos aguaceiros que fazem margem ao Chaco paraguaio.

De um livro como Guerra I não se consegue tomar aspas, citar trechos em que se evidencie o horror que a guerra instala. O horror está em cada página, em todas elas. Mortes fúteis, estupidez, o alheamento político coordenando a escalada da violência, doença, fome, mais mortes, chuva sem fim. Se há algo de simbólico no romance é essa presença da natureza completamente alheia à piedade humana. O calor é sempre mais insuportável do que pode ser, a chuva sempre excede ao tolerável. A condição humana pesa em dobro ou triplo. O fardo de viver é conradiano, mas não há o narrador de Conrad refletindo a desumanização que cada um flagra em si mesmo e ao seu redor.

Ali, são as pessoas se encontrando ao destino de ninguém, pois na guerra não há destino, há desespero pela sobrevivência, o homem reduzido ao estado mais elementar. O livro de Beatriz nos entrega isto, estas vivências. Não é uma versão de algo encontrado numa anotação romântica, mas os leitores somos simplesmente jogados ao campo de guerra sem muitas chances de compreendermos de imediato o que aquelas pessoas estão fazendo ali, o porquê daquele conflito ou como iremos sobreviver sabendo que o horror está acontecendo ao nosso lado e, se não nos cuidarmos o bastante, chega a parecer que acontecerá conosco mesmos.

Versos humildes

Só não vê quem não quer e há que nunca quererá ver, mas os traços da personalidade de um poeta estão expressos na sua poesia. E pode parecer incrível, mas estão mais expressos na forma do que no conteúdo. O conteúdo é um grande disfarce, é o fingimento. A forma é que revela a expressão do poeta. Claro que não estou pensando na forma métrica, frasal, etc. Estou dizendo da forma como o poeta se dirige ao poema para que ele se anime, como um banana de dinamite é acendida quase parecendo ser uma coisa autônoma. Mas é claro que não é. A mão do poeta está ali, quase oculta. É ela que acende o pavio que conduz a chama pelo caminho da explosão. Mas há também muitos poemas que não explodem. Na verdade, deve haver em algum lugar um depósito de poemas que falharam no seu objetivo de dinamitar as defesas dos leitores. Dos que explodem, nós inevitavelmente passamos a saber alguma coisa das pessoas. São cifras que a nossa intuição decodifica. A forma nos diz da humildade ou da prepotência. Nada mais estranho que um poeta prepotente, que não esquece uma chave pelo chão, que está do outro lado do muro ou diante do espelho num ensaio eterno para consigo mesmo. Estranho e comum, infelizmente. Incomum mesmo é o poeta de versos humildes. Humildes, não pobres. Humildes no sentido do receio de abordar o leitor. Humildes, as pessoas são ou não são. E ninguém pode escolher entre ser ou não ser. Humildes como o inocente que sobe ao cadafalso porque não saberia mentir nem para salvar a própria cabeça. O tempo não me ensinou a ler poesia, mas me ensinou a ler os poetas. Mas com os poetas humildes se deve ter muito cuidado, muito mais do que com os prepotentes. Eles podem sem mais nem menos colocar, num desatino, a sua vida em nossas mãos. O que se pode fazer com criaturas assim? Eu não sei.. Admirar, simplesmente, como se faz a um estranho cometa. E nunca, nem pensar em tentar dependurá-las de volta ao céu de onde vieram. Elas não estão mais lá. Nunca mais estarão. Ou você viu ou não viu. E não se aponta com o dedo, jamais, a um poeta ou a uma estrela. É um convencimento que cada um faz a si mesmo, como os astrólogos que interpretam estrelas e montam absurdas constelações aos olhos incrédulos do céu. 

37,2 le matin

Um dia, disse a minha filha que no passado eu havia sido um tenorista. Ela perguntou: “Terrorista??” Não, menina, tenorista vem de tenor, de sax tenor. No passado, fui um saxofonista (ou o projeto de um), disse e ela entendeu, claro, porque já havia me escutado tocando nas raras vezes que tenho tirado o tenor do estojo nestes últimos tempos.

Ontem, num post que publiquei no Facebook e comentava dos meus primeiros anos em Porto Alegre, uma amiga desde antes de Porto Alegre lembrou que naquele mesmo ano, nos pátios e corredores do Julinho (o colégio), eu às vezes levava o sax para tocar. Sempre que eu fiz isso foi provocado, nunca foi uma exibição gratuita, embora fosse este um direito a me assistir. Não, não era o caso. Eu não queria “causar” no colégio, mas no Julinho, em 1988, tinha muita gente que tocava um instrumento. Muitos iniciantes que depois estudaram a valer, profissionalizaram-se, etc. Não foi o meu caso. Isso não aconteceu comigo, mas de modo algum eu fui vencido pelo sax. Eu cheguei mesmo a dominar o instrumento, a sentir que podia fazer com ele o que eu bem queria. Aliás, é uma sensação indescritível..

Mas o post me fez lembrar de coisas que aconteceram naquele ano longínquo. Bateu uma nostalgia aqui? Não, talvez um pouquinho só, mas as histórias desse tempo são muito importantes na minha vida, apesar de eu quase nunca tratar dessas memórias. Pelo menos nunca até este momento.

Em 1988, o Julinho (apelido carinhoso do Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre) era uma espécie de laboratório populacional. Gente de todo o tipo e partes da cidade vinham estudar ali, numa escola ainda muito boa e que tinha excelentes professores e uma diversidade invejável de tipos adolescentes. Além das pessoas, o Julinho era uma escola tão politizada ainda que chegava a haver facções sectárias disputando os espaços representativos do colégio: o grêmio estudantil e o centro acadêmico fundado por Leonel Brizola na década de 40 (eu mesmo vi a ata de fundação assinada por ele). Mas, enfim, o Julinho tem muitas histórias e por ali passaram pessoas que começaram coisas decisivas no estado do RS, como o movimento tradicionalista e o movimento ecológico. Mas não foi bem isso que eu encontrei e nem esse é o meu foco aqui.

Quando cheguei ali, eu estava interessado era naquela fauna e fiz amigos entre todos os guetos e subguetos do colégio: do time de basquete aos politizados, dos punks e pré-góticos aos últimos espécimes do bicho-grilismo, do povo do Partenon aos moradores do Bom Fim. Era muito bom… Tinha dias que ia para o colégio de manhã e voltava só pela noite. Nesse meio tempo foi que conheci o pessoal da música. Pessoal ainda hippie no modo de viver, isso em 1988. Gente que fazia artesanato para vender na Praça da Alfândega e muitos deles tocavam violão, guitarra, etc. Foi este o primeiro público do meu velho tenor. Eles queriam porque queriam me ver tocar e, mesmo sendo um iniciante, ok para mim. Desde ali comecei a levar o tenor para o colégio, sem atentar na atração em que isso se transformou..

Quem me alertou quanto a isso foi um bom amigo daqueles dias, chamado Zé, como o da marchinha do Nelson Coelho de Castro. O Zé era uma figura muito especial. Tinha sido presidente do grêmio, depois se afastou, mas ele andava sempre por ali porque o colégio era um ponto de encontro. Igual a mim, o Zé gostava de poesia e escrevia umas coisas, desenhava muito bem, tocava um violão menor que o mediano, mas era uma figura entusiasmada e que queria participar de tudo. Figuras que hoje não encontro mais na vida. Se encontro, nas redes, também quase nunca posso ter certeza.

Eu tentei ensinar o Zé a tocar o tenor. Dizia para ele que um cara negro tinha muito mais a ver com o instrumento do que eu, mas não deu muito certo. O tenor é assim. Requer um adestramento mútuo. O som começa na boca e, antes da boca, na alma. Não dá para “arranhar” o tenor e, até que o som saia “adestrado”, vai um longo tempo de incomodação aos demais. O Zé me devolvia o instrumento e dizia que eu tocasse que as gurias estavam vindo. Na prática, eu era um grande chamariz para o Zé, o pilantra. Só que atraí também os enciumados cabeludos das guitarras.. Fazer o quê? Lamento, quando o senhor tenor chega, não tem para ninguém mais.

Um destes “rivais”, hoje um excelente músico e professor, gostava muito de me provocar. Toca isso, toca aquilo, ele dizia. Eu não caía na dele, tocava o que eu queria: especialmente o Love Theme de Blade Runner e a trilha de 37,2 Le Matin, ou simplesmente Betty Blue..

O Zé delirava porque realmente o pessoal chegava para conferir. Ninguém que toque um tenor por aí passa despercebido e eu, nesse época, “me encarnei” no negócio. Tocava em qualquer lugar: na sacada de casa, virado para dentro do armário, no arco da Redenção, no Jardim Botânico.. Onde me tolerassem estava eu tocando a blue note indefectível de Betty Blue e praticando mais coisas que eu mesmo inventava do que o professor me passava. É incomparável, mas não é errado dizer que eu me tornei uma espécie de Sonny Rollins porto-alegrense, praticando incansavelmente da mesma forma que o grande Sonny fazia na ponte de Manhattan, claro, com as devidas proporções..

Enquanto o Zé andava às voltas com as gurias, eu, nessa época, só tinha olhos para uma. Então não é justo que me acusem que eu usava o tenor como um instrumento de sedução. Eu queria tocar mesmo e, com meu esforço solitário e heroico, consegui reunir coragem para desafiar o Jimmy Page do Julinho, que me olhava sempre de cima com um sorrisinho irônico. Numa jam bucólica realizada numa noite daquelas, alguém ficou desmoralizado e não fui eu.. hehe Saí de lá com a minha namorada e com os amigos enquanto o pobre diabo ficou tentando remendar as cordas do seu violão e voltar sozinho para casa igual a um humilhado bluesman. Meses mais tarde, tocamos juntos num bar medonho que haviam inaugurado em Ipanema e fizemos as pazes, mantido o devido respeito.

Não é nostalgia, certo? É, sim.. Eu aproveitei a minha adolescência o quanto pude, mas ela não durou muito mais. Mais alguns anos de idas e vindas e o mundo deu meia volta, tão logo o muro de Berlim veio abaixo. Os anos 90, yuppies e certinhos, extinguiram aqueles tipos de Porto Alegre. De repente, instaurou-se a monotonia consumista que ainda vigora. Embora nesses dias calorentos eu ouvi alguém praticando alguma coisa interessante aqui perto. Se eu cruzo com ele ou ela não me custa pegar do estojo e lustrar um pouquinho o tenor para que ele não faça muito feio.

Tempus fugit

Uma vez, não sei que vez, não sei há quanto tempo, li um crítico comentando a respeito de determinado poeta, que aquele seria alguém apenas obcecado em escrever sobre o tempo. Sobre a passagem do tempo e o que o isso causa ou deixa de causar em relação às pessoas e ao mundo.

Para este crítico, o tempo seria apenas uma entidade dimensional, uma categoria física, um elemento óbvio e inexorável, nada além disso. Ainda, a constatação de sua passagem seria motivo poético frágil e superficial, e amostra de pouco conteúdo dada a sua repetição episódica na produção escrita do outro.

Para aquele poeta, de outra forma, o tempo era a própria vida acontecendo, depositando-se na realidade, materializando-se nas coisas todas, em todas as paisagens, nas impressões sensíveis do ser humano sobre tudo, inclusive sobre si mesmo e em sua capacidade de perceber ao mundo e as interações que nele ocorrem.

Para o crítico, o tempo era apenas um intervalo cronológico sobre o qual ele analisava fenômenos literários como se fossem quantidades e não qualidades. Aqui tantas rimas, ali aquele outro tanto de metáforas, aqui as mesmas, ali outras, e assim por diante. Sua necessidade de marcação histórica desejaria afixar na produção do outro mais da sua vaga biografia que da própria poesia.

Curioso (mas nem tanto): ambos procurando sobreviver em seus livros. Um a notar que o tempo é determinante da vida, senão sua própria razão de ser. E o outro a dizer que aquilo nenhuma diferença fazia. As razões dos acontecimentos seriam outras e mais complexas que simplesmente o tempo.

Mas o poeta, em sua lírica fragmentada, apenas flagrava descontinuidades despencadas no mundo, avulsas e incomunicáveis.

Porém, o crítico advogava que não se tratava e nem interessaria tanto assim à poesia nem tempo nem o sentimento que ele provoca, mas especialmente motivos externos, concretos, e a eficácia da palavra.

Em um, o tempo era mais efetivo em transformar o homem do que a palavra e se ele não o exibisse em contraste à vida, era o mesmo que não haver vida.

Em outro, apenas uma evidência entre tantas e como tal deveria ser tratada. Nada de mais.

Cada um a seu modo, ambos viveram da mesma matéria, mas um por refutá-la enquanto no outro não havia qualquer tentativa de convencimento. Apenas lhe ocorria registrar algo dentro dos calendários vazios. O acontecido e, talvez, o não acontecido.

Ambos sentiam-se certos no que diziam e pensavam (pelo menos para si mesmos), mesmo que fossem razões inconciliáveis.

Para a felicidade de ambos (e também de seus leitores), ao que se sabe nunca se deu um debate aberto. Talvez lutassem a morrer com a forma patética das disputas. A luta com as palavras é a luta mais vã, disse Drummond. A luta “pelas” palavras também.

Seja o que houve na interpretação de cada qual, o tempo passou.

Os argumentos do critico enrijeceram-se, como monumentos implacáveis.

Já os poemas entraram em ciclo, como acontece aos poetas, que às vezes são lembrados e, no mais do tempo, permanecem esquecidos.

Às vezes, um ou outro de seus versos ainda prega um sorriso, ou causa espanto, ou flagra uma comoção casual em um novo ou velho leitor. Mas isso não se apura, nem o efeito disso.

O monumento do crítico, por outro lado, já não vive exceto na sombra que procurou fazer sobre aquele, como a luz da manhã se alonga pelo chão e se dissolve indistinguível ao anoitecer.

Lá dentro dos seus achados e parágrafos rigorosos, por mais sóbrios e acertados que sejam, os argumentos continuam sempre os mesmos, sisudos, compenetrados, razoáveis.

O tempo, seja ele o que for, tem efeito diverso, como se vê, até mesmo na palavra escrita, mas isso nunca é dado a ninguém prever como irá ou não acontecer.

A contraposição do que para um requer validade e, para o outro, é mero flerte com a transitoriedade.

Servil e generoso com uns é o tempo. Com outros, rigoroso e cruel.

Vida ele, de fato, não é, mas, se não fosse ele, haveria exatamente o que para ser dito? Nem poesia e nem considerações quanto a ela.

Lembro de Hölderlin e seu Der Zeitgeist: Igual a um menino, olhei para o chão / procurando refúgio nas cavernas e, fraco / que sou, busco um lugar no qual você, / destruidor de todas as coisas, não possa estar.

E Shakespeare: Who will believe my verse in time to come, / If it were fill’d with your most high deserts?

E Drummond: Tempo em que não se diz mais: meu amor. / Porque o amor resultou inútil. / E os olhos não choram. / E as mãos tecem apenas o rude trabalho. / E o coração está seco.

E Quintana: Quando se vê, já são seis horas! / Quando se vê, já é sexta-feira! … / Quando se vê perdemos o amor da nossa vida. / Quando se vê passaram 50 anos!

E Pessoa: Aproveitar o tempo! / Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?

E Virgilio: Mas ele foge, entretanto, irreversivelmente o tempo foge.

E assim através dos tempos.

E passei tanto tempo lendo poesia, que nem lembro mais do que o crítico dizia..

O sagrado coração

O coração de Jesus é o de um pedinte. É mais uma advertência que uma oferta. Jesus não foi o único homem que existiu que foi capaz de oferecer a própria vida. Cada soldado anônimo antes o fizera e continuaram fazendo depois. Anônimos, transfigurados pela abstração de uma tribo, pelo medo de viver sem nem uma razão. Jesus foi o primeiro indivíduo de que se tem notícia na historia que entendeu ser alguém por indução cósmica, porque ele não conheceu antes quem houvesse simplesmente se recusado a continuar a história dos outros nem os mitos de ninguém, nem tradição nenhuma. Ele fundou a primeira religião individualista. Tudo o que importa está contido num coração do qual ele pode abrir mão, como da vida, se necessário. Um coração enrolado em espinhos. E quem queira tocá-lo será fatalmente ferido com o próprio sangue. Jesus tinha a convicção de que poderia habitar o coração de cada qual que o amasse. É o transplante mais bem sucedido da história, felizmente. Mas, em face da pessoa, não poderia ter sido diferente. Eu não sou católico nem bom cristão, mas espero sinceramente que continue sendo assim. Que não lhe inventem um coração artificial nem o substituam por algo assim.

Darwin Day

Tenho certeza que a leitura de “Down House” pode ser um tanto frustrante para pessoas que buscam nele algo inédito ou muito relevante para a história da ciência ou as ciências biológicas. Tudo que há ali sobre isso é bem sabido e difundido nas excelentes biografias de Darwin que há nas livrarias. Eu diria que os momentos em que essas coisas aparecem no livro me serviram de “escoras” para contar o que me despertou, de fato, interesse narrativo: a breve vida do seu filho Charles Waring que ele reportou logo da morte do bebê num memorial que, penso eu, é um documento de tanta relevância histórica quanto os seus textos e artigos sobre ciências naturais.

O bebê Charles Waring, ou Charlie, como era chamado em casa, provavelmente nasceu com a síndrome de Down e morreu no mesmo dia em que a teoria da seleção natural foi revelada ao mundo, no salão principal da Biblioteca Linneana, em Londres. Esses tempos perguntei às “inteligências artificiais”, e DeepSeek e ChatGpt foram categóricos: o décimo filho de Darwin e Emma nasceu com a síndrome de Down. Não é que eu confie cegamente nessas coisas, mas acho que elas “leram” bastante para ter tanta certeza assim nisso.

Meu livro é uma ficção histórica contada a partir do mordomo da casa, Joseph Parslow, um narrador comedido e emocionado, efetivamente envolvido com a vida da família e que, além de mordomo, foi o principal auxiliar de Darwin na introdução dos visitantes de Down House nos estudos do naturalista.

Parslow foi tão importante na vida de Darwin e tão reconhecido pela família, que, no funeral que o levou à abadia de Westminster, integrou a primeira fila dos acompanhantes, ao lado de membros da Royal Society, da nobreza britânica e representantes da própria realeza. Darwin não escolheu onde seria sepultado, o documentos referem que preferia o adro da capela de St. Mary, mas assim a Coroa decidiu. Emma principalmente fez questão do acompanhamento do mordomo, deixando nas galerias gente como Herbert Spencer, de quem Darwin gostava de manter certa distância.

Spencer foi o autor da deturpação que deu origem ao darwinismo social e suas derivações mais absurdas e inaceitáveis. A “sobrevivência do mais apto” em lugar da “adaptação”. A “seleção natural” aplicada ao mundo social sem qualquer nuance e consideração. Mas essa é uma discussão que extrapola e muito ao âmbito do meu livro, embora me interesse muito em seus desdobramentos. Até o fim da vida, Darwin manteve o espírito investigativo e em torno do ano de 1873 (15 anos após a morte do bebê) trocou correspondências com o Dr. John Langdon Down, médico que descreveu pela primeira vez a síndrome que depois levou seu nome. Nas cartas, o Dr. Down explicava a Darwin características do “mongolismo” sem entender sua etiologia de fundo genético, mas garantia-lhe que aquele não era um fato da “reversão”, pois ocorria em todas as etnias.

Esta não é a história do livro, mas é uma história muito interessante, pois Darwin havia notado e registrado os atrasos do filho no memorial. Mas o mais importante lá não me parece ser isso, e sim o encanto e os temores para com o bebê. Imaginar estes sentimentos íntimos e esboçá-los sem dar certeza de nada foi a intenção do meu livro.

* * *

Algumas vezes, jornalistas e pessoas da ciência me pediram para dizer coisas absurdas em razão de ter escrito o livro.

“Nos dê um resumo rápido sobre a seleção natural…”

“Por que Darwin não se refere a Mendel no seu trabalho?”

Lamentavelmente, minha pesquisa não chegou a tanto. Cheguei mesmo, não escondo isso, a negligenciar fatos que para os biólogos são indispensáveis na compreensão da sua teoria.

Não. Meu livro é de âmbito doméstico. Privado. Um que os biógrafos não viram nem nunca verão. Só um intruso como eu me camuflaria sob a pele do mordomo para narrar coisas assim. A minha sorte é que o mordomo Joseph Parslow era um sujeito de uma nobreza invejável. Nobreza de espírito, aliás, a única que importa.

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Hoje no mudo inteiro é celebrado o Darwin Day em memória ao nascimento de Charles. Com algum atraso, acho que vamos mesmo fazer a live para falar do livro. Estou só esperando que minha interlocutora tenha condições.

A editora Dialogar colocou nesta semana o livro em preço promocional.

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O nativismo desafiado

O ano era 1985 e o folclorista e historiador Barbosa Lessa refletia e registrava no seu fundamental “Nativismo: um fenômeno social gaúcho” que o nascimento do cancioneiro riograndense fora extremo e dificultoso, havia nascido “por paus e por pedras”. Afirmava, inclusive, que este teria sido o maior problema na consolidação do primeiro movimento tradicionalista: a constatação de um acervo musical muito pobre no Rio Grande do Sul. Desde aí, viram-se o folclorista e seus companheiros na situação de recolher o pouco disponível e de ele mesmo contribuir com o cancioneiro local, compondo letra e música da toada Negrinho do Pastoreio e outras melodias que mais tarde foram compiladas e difundidas no Brasil especialmente pela cantora e apresentadora Inezita Barroso, em seus discos e coleções de música “de raiz”.

Passadas várias décadas desde o livro e mais ainda desde o momento seminal do movimento tradicionalista, não é arriscado dizer que o acervo musical de “extração folclórica” no Rio Grande do Sul tornou-se neste período nada menos que descomunal. Barbosa Lessa, em 1985, falava a respeito do momento excepcional que o nativismo vivia, com o sucesso popular dos festivais musicais, especialmente a Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana. Além disso, a propagação do movimento cetegista havia se tornado um fenômeno nacional e até internacional, com a instalação de mais 800 centros tradicionalistas nos mais diversos pontos do país e do mundo. Ao fim do mesmo livro, o folclorista ainda assim afirmava não possuir distanciamento suficiente para avaliar a influência do movimento nem os caminhos que se seguiriam no que viria a ser, para ele, uma “nova fase” do gauchismo.

Um diagnóstico do que ocorreu nesse lapso, de fato, ou pelo menos uma avaliação crítica, não parece ter sido discutida e difundida. Embora o assunto tenha sido e seja ainda bastante pesquisado, e sob os mais variados vieses, o ciclo comercial de exibição, gravação e transmissão parece ter se imposto como um fenômeno cultural autosuficiente, isto é, em condições de sustentar a cadeia econômica erguida em torno da massiva produção autoral do nativismo. O complexo é ainda imenso: são dezenas de festivais musicais espalhados pelo interior e centenas de edições acumuladas ao longo dos anos. Em cada edição, dezenas de composições inscritas, ou seja, uma profusão exponencial de criatividade e influências.

No entanto, provavelmente a “nova fase” do gauchismo antevista por Barbosa Lessa tenha mesmo é derivado para a massificação comercial. E se perdido um tanto da produção de projeção folclórica arduamente laborada e que foi, de acordo com um dos fundadores do movimento tradicionalista, “garibada” de um repertório muito elementar, motivos rústicos e uma linguagem eivada por espanholismos e expressões e termos típicos e passadistas. É natural, pois Lessa também adverte em seu livro que tanto ele quanto Paixão Côrtes foram buscar na experiência dos grêmios gaúchos de João Simões Lopes Neto e Cezimbra Jacques inspiração para a conformação do seu edifício folclórico. Além disso, a projeção do folclorismo platino, seus motivos, estilos, danças e músicas colaboraram numa aproximação inevitável, tendo-se em vista que apoiadas na vida provinciana e no gauchismo como um fenômeno sem fronteiras.

Enquanto o folclorismo riograndense engatinhava, por assim dizer, o argentino já se encontrava consolidado numa estrutura institucional e comercial que encontrou nas ambições nacionalistas o fermento ideal para o seu crescimento. Especialmente pelo trabalho do folclorista Juan Alfonso Carrizo, o conhecimento da cultura local argentina havia frutificado em espetáculos, gravações e publicações que resgatavam para a Buenos Aires metropolitana a cultura espontânea das províncias. O seu trabalho de décadas havia favorecido a primeira onda folclórica no Rio da Prata, em torno da década de 50, com a evidência maior de Atahualpa Yupanqui, o principal coletor, intérprete e autor de projeção folclórica nesse momento — embora os primeiros registros de exibições folclóricas em Buenos Aires datem das primeiras décadas do séc. XX.

Nesse mesmo período, em solo rio-grandense, o modernista Augusto Meyer finalizava a primeira edição do seu “Guia do Folclore Gaúcho”. A sugestão do livro partira do seu amigo Mário de Andrade, escritor e pesquisador musical do folclore nacional, e consistia na consolidação do possível. Em seu prefácio, Meyer dizia que um livro como o dele deveria trazer mais folhas em branco do que texto. E afirmou sem pejo que, por falta de fontes, muitas vezes colaborou intensamente na criação final dos objetos fixados. Pelo seu exemplo e pela mesma dificuldade encontrada pelos primeiros tradicionalistas, o que se pode deduzir é que estes vazios foram compensados por uma resolução muito forte na fixação do imaginário e identidade cultural do Rio Grande do Sul ao tempo que o mundo se recompunha da Segunda Guerra Mundial e a UNESCO fôra criada no sentido de fomentar políticas em prol da diversidade cultural e da valorização dos povos. No Rio Grande do Sul, também a figura do historiador e folclorista Dante de Laytano teve um papel fundamental no estímulo ao grupo formado no colégio Júlio de Castilhos e liderado por Paixão Côrtes e Barbosa Lessa.

Mas se o primeiro momento da investida tradicionalista foi árduo e o terreno encontrado árido, a frutificação do nativismo, e em especial no que diz respeito à música como produto cultural, logo se tornou imensa. Se a princípio tanto Lessa quanto Paixão Côrtes controlavam as influências uruguaias e argentinas, pujantes, em torno da virada do milênio o movimento abstraiu de qualquer controle interno, influenciando-se por outras ondas culturais. Lessa, que morreu em 2002, certamente não opinou na decisão do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), de 2006, em vetar a participação da emergente “Tchê Music” nos espaços cetegistas. Em suas prerrogativas normativas, o MTG procurava conter o contato intercutural nacional e a manutenção de uma tradição intocada, sendo que em sua própria origem o movimento havia se inspirado em influências extra-nacionais.

Como é de se imaginar, os influxos culturais não podem ser parados por decreto e, mais recetemente, o que vem se flagrando em muitos festivais nativistas é a presença de uma sonoridade e elementos da música “sertaneja” em sua versão contemporânea. Além da sonoridade e entoação, destaca-se até por contraste uma sensibilidade diferenciada daquela consagrada ao gaúcho e o estereótipo da masculinidade altiva e etc. Para além da curiosidade, o que resta é um estranhamento que implica indiretamente na alteração da linguagem, dos costumes e, por estranho que pareça, da própria “tradição”.

Por certo quem viaje ao interior, planalto, fronteira ou a serra do Rio Grande do Sul há de encontrar variações culturais e dialetais importantes. A região do pampa rio-grandense, por ser a mais característica e identificada com o ethos gauchista, supostamente estaria mais “a salvo” dessa influência, no entanto a proliferação do cultivo da soja em detrimento da produção pecuária parece que vem alterando a cultura em redor. Esta é a opinião do escritor José Francisco Botelho, hoje radicado em Bagé, na fronteira com o Uruguai. De acordo com ele, trata-se de uma observação empírica, com base na experiência da realidade. A observação é coerente com o que se reflete, pelo visto, na produção musical nativista. Fato é que as negociações culturais em torno do vocabulário e práticas de vida sem dúvida se alteram em função das necessidades presentes de trabalho e demais elementos da vida cotidiana. Talvez isto signifique que o mesmo impasse na variabilidade da expressão cultural se encontre expresso nas práticas econômicas. A influência econômica sobre a cultura, como se sabe, nunca pode ser completamente desprezada.

Nesse contexto, se refletisse sobre o assunto, uma pessoa incauta indagaria inocentemente: mas pode o folclore pode mudar? Está ameaçado o legado de Barbosa Lessa, Paixão Côrtes, Dante de Laytano e talvez até mesmo o de Augusto Meyer? Pode estar, é claro. Se um repertório folclórico é dado por pessoas que o sistematizem da voz popular, o que for sistematizado hoje logo a seguir o integrará ou substituirá. Esta é a natureza mutável e espontânea do folclore, a concepção popular da vida e do mundo (não apenas uma coleção pitoresca), conforme o anotado por Antonio Gramsci no seus anos de cárcere. Se determinado repertório deixa de atender às necessidades expressivas de uma comunidade, naturalmente ele será substituído. Afinal de contas, ele mesmo nascera de uma mutação histórica ou se encontrava em estado líquido, volátil.

Como se sabe, a busca por reter a história costuma ser um esforço inútil, e mesmo que não identificado com um furor conservador a René Guenón, o tradicionalismo cultural do Rio Grande do Sul permanece na mesma encruzilhada que Barbosa Lessa viu em 1985. Curiosamente, agora mais desafiado pelo próprio Brasil do que pela cultura dos países vizinhos (voltar olhos e ouvidos ao produzido nos demais países latinos, aliás, poderia oxigenar em muito a produção local). Suas opções estão entre cristalizar-se numa resistência tresloucada à mudança ou em descaracterizar-se do arcabouço constituído a duras penas pelos seus fundadores, numa amostra de maleabilidade por ser comprovada. Poderia também, talvez isso seja possível, colar-se a uma noção mais dinâmica de cultura e colher do próprio povo as suas razões de ser, mantendo-se fiel ao escrúpulo de seus idealizadores. Não mal comparando, a opção está como que entre a prudência de apear do cavalo e a busca por refazer seu contrato com a população ou ser derrubado pela passagem do trator da história. Não é questão de apostar nisso ou naquilo, mas, que o desafio está posto, isto ele está. É um contato que já existe, resta ver qual será o impacto ao final do encontro.

Déjà vu

Ao contrário do déjà vu, às vezes me acontece uma estranha sensação do inédito. Estou vendo isso aqui, mas de repente isso aqui não me parece ser o que me parecia até ontem ou mesmo há um instante.

Havia antes essa realidade que eu ignorava ou só agora posso percebê-la?

Decerto é um truque perceptivo que o cérebro nos causa para que suportemos a repetição dos dias, itinerários, paisagens e tudo o mais que se repete ou que precisamos refazer.

Sonoramente, é como se os ouvidos fossem subitamente destamponados. Visualmente, é como se o tisnado opaco que borra a tudo do nada acordasse limpo. Literariamente, é como se o o texto nos mostrasse o seu subconsciente, e do que ele tenta nos dissuadir com seus mil artifícios estéticos e retóricos, mas que está ali, a psicologia do autor, ao alcance dos olhos de qualquer um, como uma espécie de nudez invertida.

Estranho também que a sensação, assim como ela vem, logo ela se vai. E o novo amarelo passa a ser o velho amarelo. A voz magnífica de um cantora parece que entra de volta numa caixa. Os livros resumem-se aos títulos de um catálogo.

Só o sol, sempre o mesmo sol, repete-se infatigável.

Para ele, às vezes também parecemos renovados. Mas ele não se manifesta quanto a ninguém em especial. Se ele pudesse dizer, certo que diria “hoje você está mais colorido que o habitual também” ou “que voz linda a sua” ou “o seu poema diz muito para mim”.

Mas ele nunca diz nada, este velho. Na sua justiça específica, talvez queira nos poupar de alguma coisa. Que sejamos repetitivos, enfadonhos. Que nossa arte seja insignificante. Que nossa vida não seja tanto assim quanto nos parece e queremos que pareça, e nem mais que a de ninguém. Suspenso, nos gasta dia após dia, imparável. Ao mesmo tempo lento e rápido, para que não possamos percebê-lo muito — e nem nos percebermos.

Mantiqueira range

Essa mania que tinha o Tom Jobim de batizar em inglês os nomes de suas músicas me induziu por anos a uma sucessão de erros que não faz muito descobri incorrer.

O primeiro dos erros era atribuir a ele (e não ao seu filho Paulo) a composição “Mantiqueira Range”, gravada em 1973, no seu “Matita Perê”.

Eu lia “Mantiqueira range” obviamente como tradução de “Serra da Mantiqueira”. Segundo erro. É “range” de ranger mesmo. Está na letra que eu também desconhecia, de autoria de Ronaldo Bastos e com o artigo “A” antes de “Mantiqueira range”, para não deixar dúvidas.

Outro. Sempre achei que era uma composição inteiramente instrumental como as que Tom gravou nos seus discos orquestrais. Não era. Erro três.

Há uns dias eu lia que a serra da Mantiqueira é uma cadeia montanhosa que é apenas parte superior de uma entidade geológica subterrânea, a Província Mantiqueira, um dos escudos da Plataforma Sulamericana (o outro é o Cráton do São Francisco), que une (no subsolo) o Rio da Prata à Bahia, passando pelo Rio Grande do Sul, aprofundando-se no Paraná e ressurgindo São Paulo acima, onde a serra se mostra mais evidente.

Quando na letra Ronaldo Bastos diz que “vi a Mantiqueira falar” é ao rangido tectônico a que ele se refere e que todos os seres acusam (galo cantou/gado berrou/). Mas também da geografia, dos pequenos movimentos de dentes que a serra emana e que os animais escutam melhor que o homem ruidoso.

Musicalmente, “A Mantiqueira range” é praticamente toda uma linha de contrabaixo que modula sem muitas variações, tons abaixo, até ranger com um tremor gravíssimo. Uma pequena peça da joalheira que sabiamente Tom tomou do filho Paulo. Pedra bruta do subsolo, de muito abaixo da serra da Mantiqueira.