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A angústia da transparência

Revista Parêntese, ed. 200

Posso não concordar com o que você escreve, mas defenderei até a morte o seu direito de publicá-lo.

Da mesma forma que Voltaire parece nunca ter dito ou escrito o bordão acima, aí está uma deturpação que eu certamente morrerei sem nunca ver um escritor proferir. Não é que alguém ainda se iluda de que um dia as coisas no mundo literário possam ter sido mais amenas, mas de qualquer forma seria improvável que o espírito de intolerância e dissidência que governa o mundo contemporâneo não fosse contaminar o mundo literário, universo no qual cada vez mais a competição e a distinção prevalecem sobre a cooperação.

O fato é que ainda está por ser estudada a força subjetiva que parece agir sobre os escritores no sentido de que afirmem que suas crenças quanto à literatura sejam sempre inquestionáveis e universais. Por que seriam? Isso apenas seria possível caso a literatura partisse de pressupostos científicos e fosse outra coisa que não o produto das tensões sociais, culturais e afetivas manifestando-se na subjetividade e daí aos objetos literários.

Mas se a sociedade busca refletir cada vez mais o campo multifacetado da diversidade, no da literatura o que prospera é o da autoafirmação. Não demora nada para que os escritores sintam-se compelidos a dizer o que para eles é a poesia, qual a ficção mais louvável, quais suas influências, no que eles acreditam, com que corrente política se identificam e assim por diante. No mundo da transparência total, todas essas posições vêm antes da qualidade do texto literário e determinará se o autor (ou autora) estará apto a integrar este ou aquele ambiente cultural, nutrir este ou aquele nicho de leitores, vencer este ou aquele prêmio cobiçado, etc. E assim a angústia da influência, que rendeu um livro clássico a Harold Bloom, hoje precisaria ser desdobrada na angústia da transparência – uma espécie de evolução de mero nervosismo ao transtorno de ansiedade generalizado.

Também me parece certo que essa volúpia dirigida ao próprio ego não é exatamente um fenômeno contemporâneo. É suficiente examinar o tanto de metalinguagem e metapoesia publicada ao longo do séc. XX, no qual se fez presente desde o primeiro modernismo com Manuel Bandeira e Drummond até os estertores da poesia marginal, com Paulo Leminski. Às vezes, parece mesmo haver nos poetas certa compulsão em categorizar a respeito de como deveria ser a poesia, sendo que esse “dever” quase sempre é um valor autoinstituído, uma garantia precípua, uma espécie de salvo-conduto indispensável ao pertencimento literário e do qual o próprio poeta é via de regra o exemplo mais bem acabado.

Do afetuoso Manuel Bandeira e sua prescrição de que “o poema deve ser como a nódoa no brim” ao intransigente João Cabral de Melo Neto afirmando “o poema final ninguém escreverá”, um desfile de escritores e escritoras e seus vaticínios literários consolidou essa tradição que hoje apenas transbordou, aliás, como tudo.

Na literatura contemporânea, tem sido bastante simples a tarefa de identificar que o grande movimento cultural catalisador das mentalidades está outra vez relacionado às contestações políticas e dramas de identidade e que o modelo de recepção vem se determinando mais pelo caráter ideológico do texto do que pela sua elaboração e qualidade estética. Nessa perspectiva, a ascensão de uma literatura engajada e de empoderamento civil tornou-se aparentemente um movimento inevitável. Mas assim já foi muitas vezes antes de agora e tudo indica que no devir cultural os ciclos voltem a alterar-se, assim como tendências e estilos preferidos. Não há razão para maiores ansiedades.

Em artigo publicado há não muito na revista Criação & Crítica, da FFLCH da USP, a professora e pesquisadora Leyla Perrone-Moisés nos lembra de que no séc. XIX houve escritores, como Victor Hugo, Émile Zola e Charles Dickens, que se dedicaram a uma literatura de denúncia social e, portanto, não se poderia alegar surpresa diante da proliferação presente, mesmo quando ela vise atender os anseios e problemas de identidade deste ou daquele grupo social, ou busque servir ao seu empoderamento. No mesmo trabalho, ela também alerta do risco de que “um livro que atenda somente às demandas sociopolíticas de seu tempo não terá mais o que dizer aos leitores do futuro”. Evidentemente, os editores e livreiros não parecem tão preocupados com isso se a circulação é mantida, além de que, por mais comprometida ou engajada que seja, ainda assim são textos literários, ao contrário dos outros 90% dos livros em circulação no Brasil atual (a CBL informa em sua pesquisa de mercado que a participação da literatura adulta no mercado foi de 6,18% em 2022).

Bom ou ruim, grave ou não tão grave assim, fato é que ao longo do tempo a literatura tem sobrevivido ao anúncio de sua decadência e fim. Também me parece pouco provável que uma literatura em defesa das boas causas, como defendeu recentemente em entrevista para O Globo o escritor Bernardo Carvalho, venha a obliterar a literatura de qualidade. Se James Joyce, Virginia Woolf, Vladimir Nabokov, Jorge Luis Borges e tantos outros escritores incontestáveis deixaram de receber o Nobel em detrimento de Herman Hesse, sempre tipificado como um autor “fácil”, certo é que nem por isso perderam o seu público e ainda o estão conquistando muito tempo após a sua morte. É natural que o escritor se angustie ao ver que sua obra é preterida por outras que ele julga de menor qualidade, mas essa decisão infelizmente não lhe compete. Que fazer? É preciso maturidade e aceitar a realidade ou então insurgir-se com um movimento, um manifesto, coisas que o tempo acelerado de agora parece simplesmente não dar muita atenção. Toda a reclamação que se possa fazer, mesmo a mais justa, soará apenas como um lamento solitário.

No seu Tratado da tolerância, Voltaire dizia que cada pessoa só deve acreditar no que lhe dita a própria razão, desde que o equilíbrio social não seja por isso rompido. O que temos por agora é mais deturpação do iluminista, são todos acreditando demais em si mesmos. Na era da transparência e do júri permanente das redes sociais, talvez seja preciso aceitar que a impermanência da atenção dos leitores é a nova regra, ainda que ao custo da própria transparência.


Monsters: a fan’s dilemma

Estou começando a ler e vou achando meio injusta a acusação de que o livro de Claire Dederer seja uma espécie manual de cancelamento. Ele é muito superficial e rápido em abarcar a “monstruosidade” de muitos artistas geniais e o desgosto que costuma acompanhar quando se começa a conhecer detalhes parciais de suas biografias, mas é muito interessante porque estimula a reflexão. Seria até engraçado que fosse ele mesmo um livro “cancelado”..

Motivada pelo movimento espontâneo de “tacar no lixo” os livros de Woody Allen pós Soon-Yi, a autora foi colecionando numa reflexão pessoal exemplos de comportamentos complicados, moralmente reprováveis, preconceitos mais ou menos escancarados e até implicações política e criminalmente mais sérias, envolvendo racismo e o anti-semitismo que povoou de modo marcante a mentalidade do mundo na primeira metade do séc. XX.

No livro, passeiam momentos às vezes mal explicados e controversos de declarações, correspondências, entrevistas nas quais nossos gênios diletos amargaram seus momentos mais cruciais de mediocridade humana. Curioso ou não, via de regra essas situações costumam extrapolar e fugir às obras e não infectá-las. Nisso, eu lembro da famosa citação de Ferreira Gullar, de que a arte existe porque a vida não basta e, nesse caso, talvez fosse interessante validá-la em seu sentido oposto também.

O livro é fácil de ler, ensaio fluído, mas é duro de confrontar diretamente com o canône em seu momento mais infeliz. Porém o livro é desse detalhismo mesmo, feito desses closes que agridem o juízo moral hipersensível da contemporaneidade. Eu ainda não cheguei no ponto em que ela analisa as obras controversas de autores como Nabokov, mas parece que ela é bastante cuidadosa ao analisar as obras por si só. No caso das pessoas e respectivas biografias, ela não tem a mesma condescendência e dá nome aos bois e às patologias que os afligem.

O que eu acho de proveitoso até aqui no seu livro é a sua consideração de que é natural que, ao encontrar o leitor, o texto se transforme. E que o leitor, ele mesmo não é uma folha em branco que vai assimilando a obra sem reflexão e, sim, a autoria extrapola o texto e é implicada pela biografia. Quer dizer, de acordo com ela não há como setorizar a leitura e fazer automaticamente essa “separação” entre obra e autor. Pode ser apreciada por si só, mas simplesmente o estofo e conhecimento do leitor quanto ao autor interfere inexoravelmente nessa relação quanto mais informação se tenha a seu respeito.

Outra coisa que ela considera, e eu concordo, é que os leitores têm as suas questões existenciais e psíquicas e não faz sentido exigir que as desconsiderem na leitura. Quer dizer, o leitor é também um sujeito moral e cada um tem seu ponto fraco, do qual não é facilmente demovido. Exigir que pessoas que por situações de abandono na infância, racismo ou violências não se manifestem porque se trata de gênios é no comportamento comunicativo contemporâneo algo inconcebível. Nesse ponto, eu mesmo tenho repulsas viscerais (por exemplo Neruda e Arthur Miller). Provavelmente você tenha, por outras razões particulares, as suas também.

Sem tradução no Brasil por enquanto, por aqui também temos autores que vêm sendo discutidos sob esse viés do cancelamento, vide Monteiro Lobato. Eu não comungo em hipótese alguma com a atividade canceladora nem acho que a vida e a posição política mais abjeta inutilize o artístico (pois teríamos de questionar não apenas Céline, mas muito mais candidatos ao status de monstro público), mas acho importante entender que a cultura do cancelamento, afinal, diz respeito à cultura e comportamento comunicativo de que dispomos hoje. As câmeras de vigilância estão nas ruas filmando nossos passos, mas miram também as consciências. Os telefones (e quem trafega por eles) já escutam os nossos pensamentos.

Joyce Carol Oates e a reivindicação do mal

Depois que li “Levo você até lá”, romance de formação semiautobiográfico de Joyce Carol Oates, fui tomado por uma febre oatesiana. O que me passava pela frente com o seu nome eu fui lendo, inclusive alguns livros que ela tinha assinado apenas a introdução, como o Jane Eyre de Charlotte Bronte e os poemas de “American melancholy” que não sei porque não temos uma edição traduzida no Brasil.

Sempre que eu mesmo me vejo na situação de apensar “escritor” ao meu nome eu lembro-me dela e dou uma vacilada. Oates tem uma produção impressionante. Há anos em que ela publicou três livros, entre novelas e contos de sua autoria ou de seus dois pseudônimos. Livros que são calhamaços, de 500 páginas para fora. Não sei quantos livros seus foram traduzidos e publicados no Brasil, mas me parece que quase duas dezenas de uma obra com mais de 120 títulos.

De longe, “A fêmea da espécie” é o livro com a capa mais repulsiva que tenho por aqui. Se a ideia era transmitir uma figura feminina pérfida, no entanto, tenho que admitir que ela é perfeita. A diagramação também é estranha, espremida em margens de, no máximo, 1 cm. Em cada conto, uma pequena ilustração em preto e branco meio borrada. Parecem imagens de carimbo mal carimbado, com tinta sobrando ou faltando.

Eu não tenho os demais livros da “Coleção Negra”, pela qual saiu o livro em 2008 (nos EUA saiu em 2005). São livros noir e hoje, em face da questão étnica, duvido que a Record usasse o termo traduzido. E o livro mesmo traz uma abordagem pouco convencional do feminino que é mais publicado contemporaneamente. Não é um libelo, é um livro de contos e neles as mulheres surgem quase sempre num papel ativamente maligno, amoral ou tendendo ao criminoso.

Não sei exatamente que programa tinha Oates nesse livro, se desejava combater ideias ou, enfim, situações comportamentais que vivia nos EUA na época em que os contos foram escritos, mas é um livro muito ousado e inquietante. Feminista? Me parece que sim, principalmente por assumir a integralidade do caráter humano das personagens femininas, com as violências recebidas e também as praticadas. Ou o que impediria as mulheres de se tornarem tão pérfidas quanto os piores exemplares masculinos? Para Oates, como se vê em seu livro, nada absolutamente.

Nesse livro, nada disso de um desfile de boas condutas e práticas exemplares. O que se encontra são mulheres, às vezes meninas, envolvidas em ardis, desejos mórbidos, impulsos e condutas psíquicas que Oates, uma autora que costuma enfrentar o psiquismo de seus personagens de forma desarmada, não faz questão de dissimular. Mesmo no limiar da contravenção e do crime, nos contos do livro as personagens são exploradas de forma que não se apele à simpatia do leitor, mas se respeite suas personalidades, por mais repulsivas que possam nos parecer.

Em alguma medida, o livro é mesmo uma coleção de alegorias do mal pelo mal, do mal sem necessidade nem atrelamento causal. É como se a expressão “mal necessário” em seus contos encontrasse uma extensão diacrítica e o mal, desnecessário, ainda assim pulsasse e justamente na “fêmea da espécie”. É uma radicalização extrema do desejo de igualdade muito menos maniqueísta e esquemático que os livros-denúncia que tem fartados as prateleiras das livrarias nessa época em que estranhamente a qualidade da leitura determina a qualidade da escrita.

Livro de outro tempo, esse, no qual os lugares sociais estão embaçados de forma muito realista. A argentina Ariana Harwicz (da “trilogia do amor”) deve ter devorado o livro muitas vezes. A capa é mesmo horrorosa, dela eu ainda prefiro “A filha do coveiro” e “Levo você até lá”, mas é um belo livro. Que não se julgue-o pela capa.

Charla colona

De um armazém de esquina ao qual era enviado, criança, a buscar qualquer coisa de emergência para o almoço, guardo nítida a memória de um gringo emigrado para a fronteira que tomava de uma folha de papel pardo de uma pilha e fazia um embrulho expresso apenas torcendo os cantos da folha quadrada. Sem durex nem fita crepe. A habilidade do comerciante em acomodar daquela forma ovos, batatas, cebolas, qualquer coisa, ainda hoje me parece espantosa. Como conseguia? Nunca entendi, ele apenas fazia. Just do it, como diz o lema da Nike.

A capa rústica, semelhante àquele embrulho, do recente livro do Gustavo Matte e do Paulo Damin, Édipo na colônia (Humana, 2023), não deixa ver a quem se impressiona do livro mais pelas artes gráficas a fartura de reflexões que a brochura traz em seu interior. Mas não se pense que a capa do seu livro é um recurso estético com efeito impressivo. Não! Eles me garantem que se trata de mera economia, os carcamanos. Economizaram no design e o papelão, garantem, é menos ecocida que os papéis clorados, emulsificados e plastificados que há por aí.

Mas sejamos menos ofensivos, certo. Não cai bem numa resenha depreciar os autores com preconceitos tão baixos. Não são carcamanos os autores deste livro que me parece pertencer a um gênero pouco difundido, o ensaio epistolar, são eles dois amigos escritores de longa data e grande honestidade que, pela distância, trocam muitas mensagens por escrito e daí, quase naturalmente, propiciou-se o formato em questão.

Organizado em questionamentos e réplicas redigidos por email ou áudios transcritos, o livro se presta a muito bons debates acerca da antropologia cultural “colona”. As mensagens tratam também de muitos assuntos correlatos, especialmente literatura (a deles mesmos e a dos demais), mas o que transparece para além de tudo é um conflito de identidades de quem, proveniente de um ambiente cultural rígido decide-se a pensar sobre isso tudo de uma forma ao mesmo tempo dura e afetiva. Como sabemos, isso só é possível mesmo a quem compartilha, mais do que impressões e leituras, afetos comuns.

À primeira vista, a disposição dos autores é a de enfrentar uma “parede”. No livro, muitas vezes definem o povo serrano nessa compleição psíquica muito característica, de acordo com eles, pouco maleável. Em Caxias do Sul, onde vive o Paulo, e em Chapecó, onde está o Gustavo, dizem eles que a pessoa se define na vida basicamente pelo comportamento familiar e pelo nível de sua dedicação ao trabalho. Para o mais – belas artes, cultura, etc – haveria um interesse apenas incidental.  Desse estranhamento com a origem e a situação de quem pensa a respeito dela surge, afinal, uma redescoberta do que significa ser “colono” e como isso se relaciona com suas representações artísticas, a realidade do Rio Grande do Sul e do mundo.

Nesse ponto, cumpre um esclarecimento de cunho regional, útil sobretudo a quem tem uma visão pouco nítida da microgeopolítica rio-grandense.

Engana-se quem imagina que, no Rio Grande do Sul, a serra consista, por exemplo, no oposto da campanha e da fronteira. Não só não são opostos como também não se complementam. Não faz sentido, mas é isso mesmo. A rigor, uma não tem nada com a outra e é por isso que pesa um exagero a generalização do nosso gentílico e suas características culturais mais genéricas, sejam as depreciativas ou ufanistas. A serra tem seus próprios dramas identitários que se inscrevem no grande drama do gauchismo amplo senso. Não vamos confundir as coisas.

Não é um exagero a afirmação de que há muitas fronteiras no microcosmo do Rio Grande do Sul. Há enclaves e essa definição eu roubo do Paulo e do Gustavo, que a utilizam muito apropriadamente para descrever a presença dos imigrantes italianos e alemães no Rio Grande do Sul e a cultura serrana. Ora, para quem já andou nos quatro cantos do estado, é bem simples a identificação de grupos étnicos e situações culturais bastante heterogêneas e tão distintas quanto os pontos cardeais, quiçá os colaterais. Não havendo felizmente qualquer reincidência belicista entre nós mesmos, isso é de uma riqueza muito grande e, a despeito dos conflitos, costuma gerar movimentos culturais dinâmicos, casamentos, etc.

Polêmicas à parte e voltando ao que interessa, o importante mesmo é dizer que o formato epistolar de Édipo na colônia é extremamente atrativo à leitura. Nessa época de voyeurismo oficializado, no qual todo mundo vê o que as pessoas se escrevem, resta um sabor especial de invasão de privacidade. Sim, porque o que as pessoas mostram em público nas redes sociais quase sempre o que é de interesse privado e às vezes guardam para si o que seria de interesse público. Daí a necessidade de um livro como esse, no qual os autores gozam de liberdade e intimidade suficientes para dispensarem pudores inúteis e abusarem da sempre necessária sinceridade. É de aproveitar o ensejo.

Como egresso do interior, muitas vezes me senti irmanado nos mixed feelings declarados pela dupla em relação à serra. Apesar de vir da fronteira, o sentimento é praticamente o mesmo. Não pode amar sua terra quem em algum momento não a odiou com todas as forças. Quando o Paulo fala que deseja se “desembaraçar de certas coisas colonas que se agarraram em mim”, a vontade que me dá é de largar o chimarrão, abrir uma grappa de rosca, e beber com eles os dois esse desencanto, brindando sua impossibilidade até aceitar que, afinal, o melhor possa até ser suportar esses traços que se manifestam involuntariamente no falar, no comer, no agir, enfim, no ser.

Até  poderíamos abrir espaço para os outros assuntos cruciais que eles discutem com seriedade pétrea (como a relevância do minifúndio na sustentabilidade, Sófocles, o romantismo alemão, frio insuportável, calor insuportável, colonialismo europeu, colonismo gringo, qualidade do vinho e da pinga, etc.), mas o esporte preferido do interiorano é falar sem culpa da terra de origem até o ponto do arrependimento.

Eu diria que a leitura do seu livro é mais que tempo bem empregado, é quase diversão não encerrasse o tanto de autenticidade que ele traz em suas páginas. Vencida a impressão de ser um intruso num debate íntimo e a vontade de dar uns apartes, fica a certeza de um livro raro desde a capa. Vendido a um preço justo, como também é raro no mercado de livros, é uma pena que você – leitor/a – veja-se privado da charla que, ao fim, é ensaio mesmo, embora pela simplicidade de forma nem pareça, o que é muito melhor.

Hannah Arendt, poeta

Artigo publicado no Caderno DOC do jornal Zero Hora, 27/05/2023.

Foi na entrevista concedida ao diplomata e jornalista Günter Gaus para o canal ZDF, em 1964, que Hannah Arendt fez a mais conhecida revelação a respeito da sua íntima relação com a poesia. Sem referir a sua própria criação em versos, ela declara que a poesia teve importante papel em sua vida. Comenta acerca da poesia grega e dos românticos alemães em sua formação. Já aos seis anos de vida, apreciava declamar em voz alta para o aplauso da família poemas de Heinrich Heine e, pelo que os brasileiros poderão conhecer melhor agora, a arte poética parece ter acompanhado sua vida não apenas como preferência de leitura, mas também numa muito esparsa coleção de poemas de sua autoria que a editora mineira Relicário traz a público numa edição bilíngue com a tradução do professor e também poeta Daniel Arelli.

O anúncio do trabalho de tradução da obra poética de Hannah não é recente, mas não deixa de ser curioso que a coleção completa dos seus poemas tenha chegado ao Brasil antes do que aos EUA, onde viveu seus últimos anos desde que refugiou-se em 1941. Por lá, ainda está em pré-venda o livro organizado por Samantha Rose Hill para a WW Norton & Co, cujo lançamento estava previsto para este mês. Já a publicação brasileira baseia-se na edição alemã e guarda seu título original: Também Eu Danço/Ich Selbst, Such ich Tanze. O volume traz ainda o posfácio da professora Irmela vin der Lühe e um caprichoso índice preparado por Anne Bertheau da aparição dos poemas que ela escreveu de modo disperso, detalhando onde apareceram, manuscritos originais e informações que atestam que, embora não os tenha publicado em vida, trabalhou nos poemas e os considerava parte de sua obra escrita.

Alameda Editorial / Reprodução

Embora seu tradutor brasileiro advirta na apresentação do livro que ainda não se tenha assumido uma apreciação de sua poesia por si mesma, mas sempre se busque relacioná-la a seu trabalho teórico e filosófico, basta alertar que a sua obra é de uma vida. Com poemas escritos entre 1923 e 1961, a coleção se inicia com um poema que ela escreveu aos 16 anos, logo que começou os estudos em Marburgo. Em seus últimos 10 anos de vida, parece que não teria mais voltado aos versos, mas deixou a coleção de poemas revisada e datilografada como se pretendesse publicá-la.

Estranharão os leitores, talvez, o encontro com uma poesia muito amorosa e com muitas referências aos amigos, como os poemas que dedicou a Walter Benjamin, Herman Broch, Kurt Blumenfeld e os muitos não nominados, mas claramente inspirados em sua relação amorosa com Martin Heidegger. Para a pensadora que declarou em A Permanência do Mundo e a Obra de Arte que a poesia seria a menos mundana e a mais humana das artes, a vontade de historicizar a própria vida atesta que no seu caso a autoexpressão nem sempre está em choque com o pensamento analítico, mas o anima ao ponto de que, em suas últimas lições filosóficas reunidas em A Vida do Espírito, Hannah Arendt tenha se preocupado em definir as formas pelas quais a imaginação poética e a metáfora fundamentam o desenvolvimento da linguagem e o pensamento filosófico.

No que seria uma distância em aparência intransponível entre o campo filosófico e a escrita poética, os poemas da autora permitem que se reconheça a síntese de muitos pensamentos desenvolvidos teoricamente e também o sentimento de uma época denominada por ela mesma de “obscura”. Não por acaso, o tom de seus poemas é predominantemente elegíaco. E, ainda que seus esquemas rítmicos sejam bastante convencionais, é justamente quando em direção ao pensamento filosófico que a sua poesia mais ousa, ao refletir a respeito da condição humana, da presença e a ausência do amor, da amizade, a morte e a história, fugindo sempre ao apelo do sentimentalismo.

A sua é uma poesia que não reserva muito espaço ao ego ou à confissão e se alicerça menos numa poética do que na própria filosofia com que ela travou uma relação precoce e ininterrupta, como leitora de Kant aos 17 e ainda aos 60. Com a edição brasileira de Também Eu Danço, será possível saber que Arendt ocupou-se tanto do horror totalitário e da filosofia política quanto da beleza e da liberdade mais superlativa do pensamento, além de completar a integridade de sua obra com um livro tão ou mais humanizante quanto a sua própria filosofia.

Just another life to live

Delicado é por agora um dos adjetivos preferidos pelas pessoas para descrever algo que as agrada. Normalmente se dedica o termo àquilo que nos parece brando, singelo, sutil.. O que é especial e notável pela beleza. Por outro lado, o termo também se aplica quando se quer dizer que o referente é difícil, frágil, requer cuidado. Quando a situação está delicada o que se quer dizer é que a situação é problemática. Um termo com muitos sentidos e que depende do que vem dele associado para se entender do que se trata.

Tenho lido por aqui a autobiografia de Vashti Bunyan e vou ficando cada vez mais impressionado pelo que leio e encantado com a simplicidade da pessoa e também da sua clareza de espírito.. Como pode o seu talento incrível ter sido tão menosprezado em sua época? Como pôde a crítica musical dos anos 60/70 ter sido tão implacável com uma menina de vinte e poucos anos a ponto de levá-la a concluir que a música não era para ela e que, portanto, o melhor seria desistir da carreira?

Foi o que aconteceu com Vashti. Lá pelas tantas, ela entendeu que seus sonhos e ambições eram despropósitos e exagerados e não iriam acontecer. E apesar da amargura terrível da desistência, foi o que ela fez e no inicio da década de 70 foi viver sua vida. Just another life to live, como diz o título da sua biografia.

Por diletantismo, tenho lido ao longo dos anos a respeito da vida de muitos cantores folk e roqueiros. Alguns têm livros em português, outros pego no Kindle. Comecei há tempos com a biografia de Bob Dylan, Johny Cash, Neil Young, Johni Mitchell, um livro da irmã de Janis em que ela destila um veneno impressionante. Os de Dylan e Neil Young me soaram tão artificiais que me desfiz deles. O de Johny Cash, por outro lado, guardo fora dos livros de música. Nunca curti muito o estilo vocal dele, mas o livro é realmente especial. Agora recomecei com Karen Dalton (outra vida duríssima), Nick Drake e Vashti. Nada disso tem em português.

A verdade é que o mundo artístico sempre teve esses fenômenos: artistas mirins que surgem como cometas e se desviam completamente, muitas desistências não reportadas ou feitas em silêncio e alguns poucos que têm esses resgates como teve a obra de Vashti graças a redescoberta por artistas muito mais jovens e ouvidos apurados, como o do pianista e compositor Max Richter, produtor de seus discos após o intervalo de 35 anos.

Essa redescoberta aconteceu com ela e também com outro fenômeno semelhante, Linda Perhacs, que, diante ao menosprezo geral, botou a viola no saco e foi viver sua vida de cirurgiã-dentista, voltando a gravar e a fazer shows quase septuagenária. Hoje é um clássico cultuado.

Se existe uma música que pode realmente ser chamada delicada por aí é a dela e se o seu nome não estiver na lista, desconfie. Se existem mesmo pessoas que nasceram fora de sua época, ela também é uma dessas pessoas. Nesse tempo em que a urgência de reconhecimento comanda a vida dos pretendentes ao estrelato, histórias como a de sua vida são interessantíssimas para redimensionar um pouco a gana, a pressa e o chamado à exposição da era das redes.

A revolução de 1923 no olhar de Cyro Martins

Artigo publicado na 9ª ed. da Revista Sepé.

Imagine-se um mundo sem redes sociais, sem internet, sem televisão, sem rádio ou jornais. Este é o mundo de Sombras na Correnteza, romance histórico que Cyro Martins publicou aos 71 anos de idade, em 1979, e que tem como pano de fundo a centenária Revolução de 1923.

Talvez o mais certo fosse dizer que se trata do olhar de Bilo Martins, o pai do próprio Cyro que é homenageado no romance e é também o personagem que testemunha o desenrolar daqueles dias remotos detrás do balcão de um comércio rural (um bolicho, na linguagem campeira). Mas o mais certo mesmo parece ser que o escritor tenha recombinado no livro memórias antigas com o olhar distanciado e a experiência acumulada em setenta anos de vida e muitas publicações nesse percurso. É o que ele próprio adverte no texto de orelha do livro, publicação da Movimento.

Na vida do campo, o bolicho não é apenas um local de comércio, é onde as pessoas se informam e propagam as novidades de boca em boca, de chasque em chasque. Na pasmaceira dos dias idênticos, o bolicho é o centro de comunicação que coloca em contato campo e cidade, o interior e o mundo.

Neste mundo quase um desvão do Brasil sem ainda uma imagem clara da modernização porvir e dominado pela figura autocrática do presidente Borges de Medeiros e a máquina político-militar do Partido Republicano Riograndense, uma eleição marcada pela suspeita (ou certeza) de fraude é o estopim para que o campo ainda muito militarizado em função da Revolução Federalista de 1893 volte a armar-se revivendo os momentos de violência que banharam de sangue o Rio Grande do Sul.

Em trinta anos, porém, o mundo havia mudado e muito. A marca maior da mudança tecnológica proveniente da I Guerra Mundial é o uso das metralhadoras em campo de batalha e agora, sob as ordens de Borges de Medeiros, a Brigada Militar as têm prontas para enfrentar as colunas enfileiradas nas coxilhas pelos apoiadores da candidatura de Joaquim Francisco de Assis Brasil, do Partidor Libertador. Sob o comando do Gen. Flores da Cunha, as forças governistas vão bater-se contra a organização caudilhesca de figuras quase mitológicas, como o Gen. Zeca Netto e o Cel. Honório Lemes. Mais tarde, a revolta ainda será conhecida como a em que o facão enfrentou a matraca, numa alusão à disparidade das forças em combate.

Além de flagrar as escaramuças do conflito e retratar as longas viagens empreendidas pelas colunas militares, o olhar de Cyro é sensível também às pequenas mudanças. O próprio comércio do seu Bilo é afetado pela intensa evasão populacional da região da Campanha em direção às cidades. Embora até a década de 50 a população rural quase equivalesse à urbana, esse movimento revolucionário de 1923 foi definitivo na configuração geográfica e política do estado do Rio Grande do Sul. A partir da chegada de Getúlio Vargas ao poder, o foco da economia passa à industrialização incipiente e o campo a gerar e exportar a pobreza rural para a cidade. Em 1923, o gaúcho a pé que Cyro caracterizara em seus romances anteriores mais conhecidos (Sem rumoPorteira fechada e Estrada Nova) estava em vias de migrar para a cidade.

Sombras na correnteza é um romance político de um autor já maduro e mesmo sua linguagem é mais direta e clara aos olhos urbanos que seus livros anteriores. Cyro, que havia denominado sua literatura por “localista” no lugar do regionalismo mais otimista, não hesita em mostrar as feridas sociais e psíquicas que tanto afetam as pessoas do campo quanto as da cidade. Ao lidar com um exército precário contra o Estado organizado e militarizado, se ele coloca em pé de igualdade militares de campo e de gabinete, é porque foi dos últimos escritores a viver aqueles tempos tais como eles aconteceram. Não é livre de um tom melancólico que ele narra a guerra frátria do épico de 1923. A sensibilidade do autor para com o povo do Rio Grande do Sul e sua história nunca abandonou o homem cosmopolita que ele foi.

Yael Naim ao vivo em Paris

Yael Naim não é o que se poderia chamar de uma artista popularíssima. Nos países europeus, no entanto, tem sempre grande público e repercussão o seu trabalho autoral. No ano passado, ela realizou o seu primeiro trabalho ao vivo. Gravado em Paris, no interior da Eglise Saint-Eustache, o disco de 16 faixas registra boa parte do trabalho de seus quatro registros anteriores e conclui-se com New Soul, a canção pop-folk que encantou Steve Jobs e que ele escolheu para apresentar, em 2008, a versão slim do MacBook Air. Até hoje, é sua canção mais executada em todas as plataformas. A distância desta para as outras faixas está na casa das milhões de execuções. Na gravação ao vivo, ela desacelerou completamente o andamento da letra luminosa e positiva, transformando a canção em uma balada mais antenada ao seus novos e menos difundidos trabalhos.

Até onde sei, Yael andou pelo Brasil pela última vez em 2012, e minha intuição me diz que tão cedo não andará novamente. É uma pena. Eu facilmente venderia um dos meus dentes de ouro para assisti-la.

Yael é um cantora e compositora nada menos que magistral e que não tem receio de explorar seus sentimentos mais densos para criar e interpretar. Ela também tem muitas interpretações gravadas de “terceiros”. Lembro dela cantando James Blake, Radiohead, Mooses Summey e, talvez, a sua segunda gravação mais executada até agora: Toxic, de Britney Spears.

Seu terceiro disco solo, Older, tem duas versões. A original, de 2015, e uma versão revisitada com muitos remixes e participações especiais como as da cantora inglesa Flo Morrissey (na faixa título Older) e na operística Coward que aparece em duas versões, uma acompanhada pelo pianista Brad Mehldau e outra pela Metropole Orkest, um híbrido de orquestra sinfônica, big band e jazz contemporâneo.

O seu segundo disco, She was a boy, não lhe trouxe muitos sucessos, mas é um trabalho de muita unidade em que ela mescla as influências da música israelense e um pop folk delicado, no qual às vezes aparece tocando violão e noutras piano. “Proficiente” nos dois instrumentos, Yael costuma aliar simplicidade instrumental e harmônica a um largo alcance vocal. Em seu primeiro disco, ela está ainda mais “enraizada”, quer dizer, compõe e canta muitas canções em hebraico e em francês. É dele a gravação original de New Soul.

Em 2019, gravou a trilha sonora de Mon Bebé, filme francês que, ao que me consta, nunca chegou ao Brasil nem nos cinemas nem via streaming.

Seu mais recente disco, Nightsongs, é bastante sombrio se comparado aos primeiros. Há um flerte com o gótico em muitas faixas e nos clipes que foram produzidos para o disco. Na internet francesa, vi quem dissesse que era um disco de “cortar os pulsos”. Exagero provável de um público cuja fidelidade às vezes se torna obsessiva e que parece não ter recebido bem a variação de humor nas composições.

Obviamente, Yael amadureceu muito desde o sucesso de New Soul e sua lírica tornou-se mais complexa e, neste disco especialmente, mais triste. Algum problema nisso? Só se isso competisse num disco de má qualidade e, bem, basta que se o ponha para tocar para ver que o seu poder vocal está mantido, sua poética alargada até mesmo idiomaticamente e sua lírica ainda mais emocionada. Nigthsongs é um disco imenso e que não se pode ouvir aleatoriamente, daí que isso possa suscitar reações de fãs acostumados a singles de 3 minutos.

Apesar de uma carreira de 20 anos, Yael Naim conta ainda hoje com uma única resenha no Brasil, de 2009. Acho que com essa recepção não dá mesmo para contar com que um dia ela volte a aparecer por aqui.

Mariana Machado diante do mundo

Artigo publicado no Caderno DOC do jornal Zero Hora, 24/03/2023.

Junto aos demais nas prateleiras de uma livraria, numa tela da internet ou na coleção particular de alguém, um livro é sempre muito semelhante aos outros livros. Como se pode distinguir um de outro? Não é pela gramatura ou qualidade da celulose, certamente não, mas logo se intui que o peso de um livro reside mais na obra e no que dela é inerente do que no objeto e sua exterioridade. É por isso que todos conseguem atestar uma descompensação tanto no valor de venda quanto no valor intrínseco de objetos de aspecto tão semelhante. Semelhança apenas aparente, diga-se de passagem. Nem todo o livro é obra e quem o disse não fui eu, mas Jacques Derrida na sua Gramatologia. De fato, a diferença se dá à leitura e logo que se a inicie desencadeia-se um complexo processo analítico-comparativo.

É essa a balança que cada qual regula com sua experiência, preferências e disposição para a surpresa. Quando acontece, é como o tilintar das moedas de uma slot machine: já não se pode mais largar aquele livro único e inimitável.

Não foi por sorte que caiu em minhas mãos o novo livro da poeta gaúcha Mariana Machado. Eu a leio desde as suas primeiras publicações e sei que, portanto, este é um livro de uma carreira que em 2022 obteve com Cães e Astromélias (Mondrongo, 2021) o terceiro lugar no Prêmio Alphonsus de Guimaraens, da Biblioteca Nacional. Agora, Mariana traz pela mesma editora um volume generoso de 250 páginas de sua poesia, com a publicação de Entre Mandalas, Espadas e uma Escada Caracol. Com o livro, o universo poético de Mariana ao mesmo tempo se arroja e densifica. Certamente, não pesaria mal em nenhuma boa livraria ou na prateleira de boa poesia de uma biblioteca.

Abertas as portas do universo expandindo do livro de Mariana, logo se parte ao encontro de uma recriação em versos do épico Sidarta, de Herman Hesse. Os 47 cantos do poema dão conta da busca por esclarecimento que o buda empreendeu a sós em sua bem conhecida jornada. Aqui, logo se pode ver que também Mariana empreende uma jornada em que se confronta consigo mesma e com o mundo numa tensão poética rara de se ver. E o esclarecimento de Sidarta, o que “quisera dar-se apaixonadamente a tudo”, e que cumpriu o destino por ele mesmo forjado e “deixou tudo para trás e foi-se embora”, não é senão a aprendizagem dos que se desapegam, nesse processo de decantação pelo qual também se transformam os poetas em poetas.

Ao recuperar os ecos antepassados das mulheres do Rio Grande do Sul ou ao combater e desvendar a densidade do mundo presente, Mariana combina sua voz mais coloquial com os recursos de uma excelente leitora de poesia. Isso se confirma ao conhecerem-se as traduções que ela também registra no livro e vão de Goethe a Jacques Prévert, alargando as margens do seu próprio universo ao universo de outros tantos poetas.

No poema A Lavadeira, a poeta rende a sua escuta poética às mulheres:

Quebrando a geada, pé por pé, no mato,
alta a trouxa de roupas – feito Atlas –,
pulando arames, chega à beira d’água
pra mergulhar os dedos, vê-los mortos
e desfazer na fibra seus caroços.

Sim, há mais escuta e um olhar acurado para a vida que um discurso em seus poemas. É uma escuta de memória e da trama dos motivos sutis da vida feminina, suas restrições históricas, desejos e ambições. Mas a poesia se dá apesar disso e quando se encontra com o que há de sublime no mínimo, vê-se também que a poeta nunca prescinde de sua integridade e dedica aos versos, além de técnica vigorosa e têmpera mental, a amorosidade áspera e táctil como é própria da dicção do sul. Livre do embaraço dialetal, a poesia de Mariana rebrilha de sua própria luz.

Mas é poesia que também se deixa notar no mais íntimo processo de maternidade e no encontro de uma plenitude inesperada entre o trivial e o religioso. Com um senso crítico por vezes cáustico, encara a própria rotina e a literatura desse tempo com o mesmo desembaraço com que se depara com as questões metafísicas da fé e de Deus. Seja com a leveza sintética do hai kai ou valendo-se da tradição das formas fixas, ela expande seu domínio do ofício sem que se encontre sequer uma repetição de motivos. Além de uma raridade, uma amostra de que este é um universo irrefreável. Vivendo em Santa Maria, no interior do Rio Grande do Sul, para nossa sorte o seu universo agora se torna acessível na forma de um livro que também é obra. Talvez por essa combinação pese bastante também na sua estante de livros.

A nova biografia de Fernando Pessoa

Revista Parêntese, ed. 160

Bem no final de 2022, num dezembro tomado de assalto pelo noticiário político e pela turbulenta sucessão presidencial brasileira, foi quando finalmente chegou às livrarias nacionais a esperada biografia de Fernando Pessoa que o jornalista Richard Zenith levou mais de uma década para concluir desde que começou a trabalhar no espólio do poeta. O resultado não podia ser menor do que as mais de mil páginas que a Companhia das Letras publicou aqui numa edição vertida do inglês pelo tradutor Pedro Maia Soares. Em maio do mesmo ano, uma versão pela Quetzal foi publicada em Portugal e a versão original em inglês, Pessoa: a biography, saiu em julho de 2021 nos EUA e na Inglaterra, pela Liveright.

Apesar de que a obra pessoana tenha sido vastissimamente estudada desde a segunda metade do séc. XX, inclusive por estudiosos brasileiros, o trabalho de Zenith é efetivamente considerado a segunda grande biografia do poeta notabilizado pela obra monumental e pela forma de organizar o seu trabalho em heterônimos. Na edição portuguesa, o livro, aliás, é iniciado por uma dramatis personae pessoana na qual Zenith “biografa” parte dos heterônimos criados pelo poeta (na brasileira, foi transformada em anexo). Contudo sabe-se que o número de alteregos de Pessoa continua sendo impreciso, dado que para muitos deles mal chegou a esboçar um texto, apenas o registro de um nome, mas é certo que passam de uma centena e surgiram em seu universo mental precocemente, antes dos seis anos de idade. Antes da publicação de Zenith, a mais extensa biografia publicada de Pessoa continuava sendo a realizada pelo seu contemporâneo João Gaspar Simões, em 1950, Vida e obra de Fernando Pessoa: história duma geração

Embora no Brasil a sua obra tenha obtido projeção e leitores a partir de 1960, quando a Nova Aguilar publicou sua Obra poética organizada e anotada pela pesquisadora Maria Aliete Galhoz, é certo que o nome de Pessoa transitava de contrabando entre os modernistas brasileiros de viagem à Europa, muito provavelmente por meio das edições de Orpheu e de Presença, revistas nas quais Pessoa fez desfilar seus principais heterônimos entre os demais modernistas portugueses. Contatos efetivos com os brasileiros não são muito conhecidos, além do fato dele mesmo ter emigrado o seu heterônimo Ricardo Reis para o Brasil, em 1919, e cuja data de falecimento imprecisa serviu de mote para a escrita de O ano da morte de Ricardo Reis, romance em que José Saramago resolve por situá-la em torno de 1936, na iminência do nazi-fascismo europeu. Mas, para que se situe melhor esse reconhecimento, é suficiente o relato do quase-encontro dele com a poeta brasileira Cecília Meireles, em 1934. Cecília era casada com um antigo conhecido de Pessoa, o português Fernando Correia Dias, e marcaram um encontro de gentilezas a que ele acabou falhando. Para compensar a falta injustificada, mais tarde deixou no hotel onde a brasileira se hospedava uma edição autografada de Mensagem, seu único livro publicado em vida. Outra referência aos brasileiros na biografia é uma menção a Ronald de Carvalho, poeta que se integrou bastante ao grupo reunido na Orpheu, especialmente Mário de Sá-Carneiro, e uma declaração de Carlos Drummond de Andrade no ano de centenário de nascimento de Pessoa, em 1985, na qual afirma que Pessoa é um poeta “frio, apenas toca nosso lado intelectual”, e diz preferir Camões a ele.

Embora sua obra fosse muito conhecida dos brasileiros e contasse com diversas publicações segmentadas, a partir de 1985 entrou em domínio público e ocorreu por aqui uma verdadeira explosão pessoana. No entanto, logo uma alteração na legislação da União Europeia sobre direitos autorais adiou o processo, que foi retomado em 1993, com o surgimento de inúmeras edições nuas (sem notas ou comentários) de sua poesia e prosa conhecidas. Por longos anos, a poesia de Pessoa e seus heterônimos foi das mais vendidas no Brasil, e seu(s) nome(s), tão ou mais populares que muitos poetas brasileiros. Na mesma medida, aqui e em muitos lugares do mundo foram sendo criados núcleos de estudo de sua obra em diversas universidades, disseminando para além do mundo lusófono os “estudos pessoanos”, confirmando-se já o interesse universal em sua literatura.

De imediato, o que se pode garantir em relação à biografia de Zenith é que ela não se faz interessante apenas por um maior conhecimento de sua vida, mas porque Zenith é um grande conhecedor de sua poética. Uma das grandes felicidades do seu trabalho consiste em nunca despersonalizar o poeta entre seus heterônimos. Zenith busca sobretudo garantir a integridade intelectual do poeta e jogar luzes em sua direção valendo-se inclusive de elementos autobiográficos que Pessoa teria lançado em sua produção literária. Pois então se pode saber que o poeta da Autopsicografia, o assumido “fingidor”, muitas e muitas vezes apresentou, mesmo que de forma distorcida, elementos de sua vida mais corriqueira na sua poesia. Se ele obteve uma dicção sublime em função de elementos às vezes frugais, passagens e situações que de fato viveu ou presenciou, certo que isso mais atesta a sua genialidade criativa.

O premiado trabalho de Zenith (foi finalista do Pulitzer em 2022), no entanto, não vem passando imune a críticas. Por investigar com certa exaustão indícios e questões envolvendo a sexualidade do poeta, tem recebido críticas inclusive da parente mais próxima de Pessoa que é ainda viva. Aos 96 anos de idade, a também escritora e poeta Manuela Nogueira leu e classificou como fantasiosas algumas das dúvidas suscitadas na biografia. Também confirma que a imagem de um Pessoa “macambúzio”, de acordo com ela, não procede e afirma que o tio, embora muito desorganizado, produzia num ritmo que não desejava interromper em razão de nenhuma relação interpessoal, mas que era bem humorado e brincalhão.

A imagem de um poeta sombrio é, aliás, também muito questionada por Zenith. Muito presentes na biografia de João Gaspar Simões, de 1950, que elevou enormemente o interesse em torno do poeta com o seu trabalho biográfico, as características psicológicas (e psicopatológicas) do poeta são centrais na busca de Simões, mas notoriamente permeadas por um excessivo psicologismo desde os estudos do também contemporâneo Adolfo Casais Monteiro. Em muitas situações, Zenith explora outras facetas e informações a respeito do poeta de que certamente Simões não dispunha em 1950. O que se vislumbra é um indivíduo interessado na vida política do seu país e do mundo e que, com maior ou menor sorte, procurou manter boas relações e um círculo de amigos composto pela intelectualidade da época, além de ter também boas relações familiares. Com isso esclarecido, o leitor tem garantido poder voltar sossegado à busca por compreender o sentido mais profundo daquilo que Pessoa guardou a sete chaves durante a vida na sua famosa arca: a obra literária. E, ao passo de sua leitura, a tarefa vai se configurando como uma grande jornada de reconhecimento na qual vida e obra têm, por uma característica sui generis e pessoana, praticamente o mesmo peso e relevância.

A jornada proposta por Zenith, cabe dizer, é muito facilitada pela sua escrita leve e jornalística. Há uma visada simpática sobre o poeta, que se alfabetizou sozinho aos quatro anos de idade, num claro indicativo de altas habilidades. Quando se sabe, por exemplo, da sua dificuldade em manter o foco na conclusão dos inumeráveis projetos iniciados que pipocam em sua mente, ele diz não saber “evitar o ódio que os meus pensamentos têm a acabar seja o que for; uma coisa simples suscita dez mil pensamentos, e destes dez mil pensamentos brotam dez mil inter-associacões”, seria simples associá-lo ao que hoje se conhece como o transtorno de déficit de atenção. Não é por falta de características psíquicas, como se vê, que se dificulta a tarefa de compreendê-lo, mas pela sua abundância. E quando o biógrafo destina um capítulo inteiro do seu livro para demonstrar o esforço espiritual e intelectual de Pessoa em atingir um alto grau de alta exigência estética e psíquica, o que acaba muitas vezes sacrificando a sua estima e deprimindo-o, acaba por conferir ao poeta o que às vezes perdemos ao conhecê-lo: a dimensão de gozo e sofrimento de seu espírito criativo.

Qualquer leitor de Pessoa, mesmo o mais preliminar, logo ao defrontar-se com sua poesia percebe estar diante de um precipício intelectual. É uma experiência muito dissonante de qualquer outra poesia que se possa conhecer. De acordo com Leyla Perrone, uma de suas principais estudiosas no Brasil, a obra de Pessoa impõe um antecedente que todos os poetas de língua portuguesa devem enfrentar na perspectiva de continuar a usar a mesma língua. Depois dele, o sentimentalismo e a facilidade retórica “aparecem como erros imperdoáveis”, e isso é algo que se intui e compreende mesmo à sua leitura direta. O que a biografia de Zenith tem a oferecer para compreensão de Pessoa, no caso, é a confirmação de que esse universo – o mundo “pessoano” – foi, incrivelmente, tarefa de um homem só. E que, a despeito de viver os seus últimos anos de vida num pequeno apartamento da Coelho da Rocha, em Lisboa, ao morrer, de acordo com Miguel Torga, “Portugal viu passar num caixão sem ao menos perguntar quem era”. Nada disso conseguiu impedi-lo de ter engendrado uma das obras poéticas mais impressionantes e complexas de todo o mundo no séc. XX.