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A mais cruel das artes

A música é a mais cruel das artes. Não se pode enganar a música porque ela te desmente em dois compassos. Não adianta..

Na verdade, nas artes visuais e literárias se dá o mesmo. Apenas que a sensibilidade receptiva é menos exigente. Na música, a inabilidade é gritante e mesmo uma pessoa não instruída musicalmente percebe as falhas de execução e etc. Não existe, simplesmente, o estilo “mal tocado”.

A música nesse sentido é cruel, mas, por outro lado, a destreza técnica permite que a sensibilidade se acentue. E dessa forma composições ganham roupagens, interpretações ganham nuances, melhorias. Nesse aspecto, a literatura é mais cruel. O que está feito, está feito. Ninguém consertará uma obra escrita. Ninguém a reinterpretará e realçará o que ali não existe. É impossível.

Mas a música, se é cruel à primeira audição, é permissiva com que a melhorem.

É isso o que fazem muitos intérpretes e arranjadores. Mas não é por acaso, são músicos que estudam e praticam desde a tenra infância e, se têm algum dom, o aperfeiçoam com trabalho, e não pouco.

Dos artistas, respeito mais os músicos, ainda mais porque sua produção é desvanecente, se evapora no ar, não fica nada.

Dos instrumentos musicais, o violão é o mais cruel. Há que montar o som. O instrumento não está te esperando, está desafiando. A lida com o violão é uma tauromaquia e a vida do guitarrista é ser derrubado e atravessado – eis a crueldade – pelo que ele mesmo consegue extrair do instrumento.

Tenho muitos violonistas que acompanho na internet, do mundo afora. Concertistas, intérpretes impecáveis. Gente que estuda o instrumento desde a tenra idade: 6, 7 anos.

Edith Pageaud é um dessas instrumentistas. Toca violão desde os 6 anos e com 7 já havia sido premiada em recitais nacionais. Dom? Eu acredito que sim, mas dom trabalhado, burilado. O dom pelo dom não necessariamente gera boa arte. É preciso algo mais, enfim, é óbvio.

Nessa interpretação de Piazzolla, Edith altera a execução com timbres e outras técnicas que ela executa à perfeição. No entanto, pelo menos eu ouço assim, o equilíbrio que ela obtém é total, o efeito estético é homogêneo, tempos e contratempos estão tão internalizados que não há forma de se desarmonizarem.

Então, o que acontece é que a música ganha, aumenta. Podemos escutá-la com uma particularidade.

Nas outras artes – eu pouco sei de artes visuais – me parece que isso é impossível. Na literatura, todos os erros e fiascos são em bronze, como dizia o Mario Quintana.

Não sei.

A música é a mais cruel das artes, mas a literatura é mais cruel que a música de muitas mais maneiras.

Me dá meu chapéu

A Cidade Baixa não tem desses cafés do Bom Fim, onde os velhos sentam para tomar um pingado e aproveitar o sol do outono, como uns gatos desalojados da vida doméstica. O comércio da Cidade Baixa é essencialmente etílico, salvo uns bistrozinhos de preços, acho eu, completamente desproporcionais. São poucos desses café de calçada, e os que se mantém em sua maioria são envidraçados. A razão disso é óbvia e não é meu assunto aqui.

O bom desses cafés nem é o café, mas essa companhia de cãs e calvas. Tem quem fuja com medo de ser confundido, mas se é uma vaidade (ou tolice) que nunca tive na juventude, não vai ser agora. É que se a idade traz o desconforto da proximidade cada vez mais breve para com a visitante fatal, por contrapartida traz uma espécie de tranquilidade. Tranquilidade que é um pouco cansaço também, mas sobretudo falta de pressa. De pressa e de surpresa.

É que é muito diferente conversar com alguém que só viu, por exemplo, os governantes deste milênio mal parido e com quem tem na memória os ecos de uma Segunda Guerra Mundial. Há uma forma diferente de sopesar as coisas, é isso que digo, que é algo tranquilizante. Para mim, é. Porque hoje vivemos a era do escândalo e da obscenidade e essas pessoas conhecem espécie de bem e de mal muito menos óbvios que, obviamente, não se extinguiram.

Eu ainda não fiz isso, mas um dia vou simplesmente pedir o meu pingado e tomar meu assento, não mais vou sentar à distância. Se me estranharem, digo simplesmente “ué, me esqueceram?”, e como ninguém vai querer acusar um lapso de memória, vão fazer de conta que conhecem, claro, e me recomendar que eu tire a cabeça do sol porque esqueci do chapéu. Eu, que não uso chapéu..

37,2 le matin

Um dia, disse a minha filha que no passado eu havia sido um tenorista. Ela perguntou: “Terrorista??” Não, menina, tenorista vem de tenor, de sax tenor. No passado, fui um saxofonista (ou o projeto de um), disse e ela entendeu, claro, porque já havia me escutado tocando nas raras vezes que tenho tirado o tenor do estojo nestes últimos tempos.

Ontem, num post que publiquei no Facebook e comentava dos meus primeiros anos em Porto Alegre, uma amiga desde antes de Porto Alegre lembrou que naquele mesmo ano, nos pátios e corredores do Julinho (o colégio), eu às vezes levava o sax para tocar. Sempre que eu fiz isso foi provocado, nunca foi uma exibição gratuita, embora fosse este um direito a me assistir. Não, não era o caso. Eu não queria “causar” no colégio, mas no Julinho, em 1988, tinha muita gente que tocava um instrumento. Muitos iniciantes que depois estudaram a valer, profissionalizaram-se, etc. Não foi o meu caso. Isso não aconteceu comigo, mas de modo algum eu fui vencido pelo sax. Eu cheguei mesmo a dominar o instrumento, a sentir que podia fazer com ele o que eu bem queria. Aliás, é uma sensação indescritível..

Mas o post me fez lembrar de coisas que aconteceram naquele ano longínquo. Bateu uma nostalgia aqui? Não, talvez um pouquinho só, mas as histórias desse tempo são muito importantes na minha vida, apesar de eu quase nunca tratar dessas memórias. Pelo menos nunca até este momento.

Em 1988, o Julinho (apelido carinhoso do Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre) era uma espécie de laboratório populacional. Gente de todo o tipo e partes da cidade vinham estudar ali, numa escola ainda muito boa e que tinha excelentes professores e uma diversidade invejável de tipos adolescentes. Além das pessoas, o Julinho era uma escola tão politizada ainda que chegava a haver facções sectárias disputando os espaços representativos do colégio: o grêmio estudantil e o centro acadêmico fundado por Leonel Brizola na década de 40 (eu mesmo vi a ata de fundação assinada por ele). Mas, enfim, o Julinho tem muitas histórias e por ali passaram pessoas que começaram coisas decisivas no estado do RS, como o movimento tradicionalista e o movimento ecológico. Mas não foi bem isso que eu encontrei e nem esse é o meu foco aqui.

Quando cheguei ali, eu estava interessado era naquela fauna e fiz amigos entre todos os guetos e subguetos do colégio: do time de basquete aos politizados, dos punks e pré-góticos aos últimos espécimes do bicho-grilismo, do povo do Partenon aos moradores do Bom Fim. Era muito bom… Tinha dias que ia para o colégio de manhã e voltava só pela noite. Nesse meio tempo foi que conheci o pessoal da música. Pessoal ainda hippie no modo de viver, isso em 1988. Gente que fazia artesanato para vender na Praça da Alfândega e muitos deles tocavam violão, guitarra, etc. Foi este o primeiro público do meu velho tenor. Eles queriam porque queriam me ver tocar e, mesmo sendo um iniciante, ok para mim. Desde ali comecei a levar o tenor para o colégio, sem atentar na atração em que isso se transformou..

Quem me alertou quanto a isso foi um bom amigo daqueles dias, chamado Zé, como o da marchinha do Nelson Coelho de Castro. O Zé era uma figura muito especial. Tinha sido presidente do grêmio, depois se afastou, mas ele andava sempre por ali porque o colégio era um ponto de encontro. Igual a mim, o Zé gostava de poesia e escrevia umas coisas, desenhava muito bem, tocava um violão menor que o mediano, mas era uma figura entusiasmada e que queria participar de tudo. Figuras que hoje não encontro mais na vida. Se encontro, nas redes, também quase nunca posso ter certeza.

Eu tentei ensinar o Zé a tocar o tenor. Dizia para ele que um cara negro tinha muito mais a ver com o instrumento do que eu, mas não deu muito certo. O tenor é assim. Requer um adestramento mútuo. O som começa na boca e, antes da boca, na alma. Não dá para “arranhar” o tenor e, até que o som saia “adestrado”, vai um longo tempo de incomodação aos demais. O Zé me devolvia o instrumento e dizia que eu tocasse que as gurias estavam vindo. Na prática, eu era um grande chamariz para o Zé, o pilantra. Só que atraí também os enciumados cabeludos das guitarras.. Fazer o quê? Lamento, quando o senhor tenor chega, não tem para ninguém mais.

Um destes “rivais”, hoje um excelente músico e professor, gostava muito de me provocar. Toca isso, toca aquilo, ele dizia. Eu não caía na dele, tocava o que eu queria: especialmente o Love Theme de Blade Runner e a trilha de 37,2 Le Matin, ou simplesmente Betty Blue..

O Zé delirava porque realmente o pessoal chegava para conferir. Ninguém que toque um tenor por aí passa despercebido e eu, nesse época, “me encarnei” no negócio. Tocava em qualquer lugar: na sacada de casa, virado para dentro do armário, no arco da Redenção, no Jardim Botânico.. Onde me tolerassem estava eu tocando a blue note indefectível de Betty Blue e praticando mais coisas que eu mesmo inventava do que o professor me passava. É incomparável, mas não é errado dizer que eu me tornei uma espécie de Sonny Rollins porto-alegrense, praticando incansavelmente da mesma forma que o grande Sonny fazia na ponte de Manhattan, claro, com as devidas proporções..

Enquanto o Zé andava às voltas com as gurias, eu, nessa época, só tinha olhos para uma. Então não é justo que me acusem que eu usava o tenor como um instrumento de sedução. Eu queria tocar mesmo e, com meu esforço solitário e heroico, consegui reunir coragem para desafiar o Jimmy Page do Julinho, que me olhava sempre de cima com um sorrisinho irônico. Numa jam bucólica realizada numa noite daquelas, alguém ficou desmoralizado e não fui eu.. hehe Saí de lá com a minha namorada e com os amigos enquanto o pobre diabo ficou tentando remendar as cordas do seu violão e voltar sozinho para casa igual a um humilhado bluesman. Meses mais tarde, tocamos juntos num bar medonho que haviam inaugurado em Ipanema e fizemos as pazes, mantido o devido respeito.

Não é nostalgia, certo? É, sim.. Eu aproveitei a minha adolescência o quanto pude, mas ela não durou muito mais. Mais alguns anos de idas e vindas e o mundo deu meia volta, tão logo o muro de Berlim veio abaixo. Os anos 90, yuppies e certinhos, extinguiram aqueles tipos de Porto Alegre. De repente, instaurou-se a monotonia consumista que ainda vigora. Embora nesses dias calorentos eu ouvi alguém praticando alguma coisa interessante aqui perto. Se eu cruzo com ele ou ela não me custa pegar do estojo e lustrar um pouquinho o tenor para que ele não faça muito feio.

Tempus fugit

Uma vez, não sei que vez, não sei há quanto tempo, li um crítico comentando a respeito de determinado poeta, que aquele seria alguém apenas obcecado em escrever sobre o tempo. Sobre a passagem do tempo e o que o isso causa ou deixa de causar em relação às pessoas e ao mundo.

Para este crítico, o tempo seria apenas uma entidade dimensional, uma categoria física, um elemento óbvio e inexorável, nada além disso. Ainda, a constatação de sua passagem seria motivo poético frágil e superficial, e amostra de pouco conteúdo dada a sua repetição episódica na produção escrita do outro.

Para aquele poeta, de outra forma, o tempo era a própria vida acontecendo, depositando-se na realidade, materializando-se nas coisas todas, em todas as paisagens, nas impressões sensíveis do ser humano sobre tudo, inclusive sobre si mesmo e em sua capacidade de perceber ao mundo e as interações que nele ocorrem.

Para o crítico, o tempo era apenas um intervalo cronológico sobre o qual ele analisava fenômenos literários como se fossem quantidades e não qualidades. Aqui tantas rimas, ali aquele outro tanto de metáforas, aqui as mesmas, ali outras, e assim por diante. Sua necessidade de marcação histórica desejaria afixar na produção do outro mais da sua vaga biografia que da própria poesia.

Curioso (mas nem tanto): ambos procurando sobreviver em seus livros. Um a notar que o tempo é determinante da vida, senão sua própria razão de ser. E o outro a dizer que aquilo nenhuma diferença fazia. As razões dos acontecimentos seriam outras e mais complexas que simplesmente o tempo.

Mas o poeta, em sua lírica fragmentada, apenas flagrava descontinuidades despencadas no mundo, avulsas e incomunicáveis.

Porém, o crítico advogava que não se tratava e nem interessaria tanto assim à poesia nem tempo nem o sentimento que ele provoca, mas especialmente motivos externos, concretos, e a eficácia da palavra.

Em um, o tempo era mais efetivo em transformar o homem do que a palavra e se ele não o exibisse em contraste à vida, era o mesmo que não haver vida.

Em outro, apenas uma evidência entre tantas e como tal deveria ser tratada. Nada de mais.

Cada um a seu modo, ambos viveram da mesma matéria, mas um por refutá-la enquanto no outro não havia qualquer tentativa de convencimento. Apenas lhe ocorria registrar algo dentro dos calendários vazios. O acontecido e, talvez, o não acontecido.

Ambos sentiam-se certos no que diziam e pensavam (pelo menos para si mesmos), mesmo que fossem razões inconciliáveis.

Para a felicidade de ambos (e também de seus leitores), ao que se sabe nunca se deu um debate aberto. Talvez lutassem a morrer com a forma patética das disputas. A luta com as palavras é a luta mais vã, disse Drummond. A luta “pelas” palavras também.

Seja o que houve na interpretação de cada qual, o tempo passou.

Os argumentos do critico enrijeceram-se, como monumentos implacáveis.

Já os poemas entraram em ciclo, como acontece aos poetas, que às vezes são lembrados e, no mais do tempo, permanecem esquecidos.

Às vezes, um ou outro de seus versos ainda prega um sorriso, ou causa espanto, ou flagra uma comoção casual em um novo ou velho leitor. Mas isso não se apura, nem o efeito disso.

O monumento do crítico, por outro lado, já não vive exceto na sombra que procurou fazer sobre aquele, como a luz da manhã se alonga pelo chão e se dissolve indistinguível ao anoitecer.

Lá dentro dos seus achados e parágrafos rigorosos, por mais sóbrios e acertados que sejam, os argumentos continuam sempre os mesmos, sisudos, compenetrados, razoáveis.

O tempo, seja ele o que for, tem efeito diverso, como se vê, até mesmo na palavra escrita, mas isso nunca é dado a ninguém prever como irá ou não acontecer.

A contraposição do que para um requer validade e, para o outro, é mero flerte com a transitoriedade.

Servil e generoso com uns é o tempo. Com outros, rigoroso e cruel.

Vida ele, de fato, não é, mas, se não fosse ele, haveria exatamente o que para ser dito? Nem poesia e nem considerações quanto a ela.

Lembro de Hölderlin e seu Der Zeitgeist: Igual a um menino, olhei para o chão / procurando refúgio nas cavernas e, fraco / que sou, busco um lugar no qual você, / destruidor de todas as coisas, não possa estar.

E Shakespeare: Who will believe my verse in time to come, / If it were fill’d with your most high deserts?

E Drummond: Tempo em que não se diz mais: meu amor. / Porque o amor resultou inútil. / E os olhos não choram. / E as mãos tecem apenas o rude trabalho. / E o coração está seco.

E Quintana: Quando se vê, já são seis horas! / Quando se vê, já é sexta-feira! … / Quando se vê perdemos o amor da nossa vida. / Quando se vê passaram 50 anos!

E Pessoa: Aproveitar o tempo! / Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?

E Virgilio: Mas ele foge, entretanto, irreversivelmente o tempo foge.

E assim através dos tempos.

E passei tanto tempo lendo poesia, que nem lembro mais do que o crítico dizia..

Déjà vu

Ao contrário do déjà vu, às vezes me acontece uma estranha sensação do inédito. Estou vendo isso aqui, mas de repente isso aqui não me parece ser o que me parecia até ontem ou mesmo há um instante.

Havia antes essa realidade que eu ignorava ou só agora posso percebê-la?

Decerto é um truque perceptivo que o cérebro nos causa para que suportemos a repetição dos dias, itinerários, paisagens e tudo o mais que se repete ou que precisamos refazer.

Sonoramente, é como se os ouvidos fossem subitamente destamponados. Visualmente, é como se o tisnado opaco que borra a tudo do nada acordasse limpo. Literariamente, é como se o o texto nos mostrasse o seu subconsciente, e do que ele tenta nos dissuadir com seus mil artifícios estéticos e retóricos, mas que está ali, a psicologia do autor, ao alcance dos olhos de qualquer um, como uma espécie de nudez invertida.

Estranho também que a sensação, assim como ela vem, logo ela se vai. E o novo amarelo passa a ser o velho amarelo. A voz magnífica de um cantora parece que entra de volta numa caixa. Os livros resumem-se aos títulos de um catálogo.

Só o sol, sempre o mesmo sol, repete-se infatigável.

Para ele, às vezes também parecemos renovados. Mas ele não se manifesta quanto a ninguém em especial. Se ele pudesse dizer, certo que diria “hoje você está mais colorido que o habitual também” ou “que voz linda a sua” ou “o seu poema diz muito para mim”.

Mas ele nunca diz nada, este velho. Na sua justiça específica, talvez queira nos poupar de alguma coisa. Que sejamos repetitivos, enfadonhos. Que nossa arte seja insignificante. Que nossa vida não seja tanto assim quanto nos parece e queremos que pareça, e nem mais que a de ninguém. Suspenso, nos gasta dia após dia, imparável. Ao mesmo tempo lento e rápido, para que não possamos percebê-lo muito — e nem nos percebermos.

O espírito da literatura não é o livro

Não me parece que haja muitos lugares mais enigmáticos do que o que havia por detrás dessa porta, em meados do séc. XIX. Hoje, não. Hoje é apenas o quarto de um museu. Ele fica em Amherst, no norte dos EUA. É a porta do quarto de Emily Dickinson, em cujas frestas ela teria guardado — reza a lenda — os seus envelope poems. Talvez o quarto de Fernando Pessoa no Largo do Carmo, em Lisboa, tenha sido assim também fascinante. O pequeno quarto onde Simone Weil morreu sozinha no Sanatório Grosvenor, na mesma Ashford pela qual anos antes haviam passado Charles Darwin e sua filha Anne, em busca de uma salvação que não veio para a menina.

Mais certo é que por detrás dessa porta fosse apenas possível encontrar o quarto de dormir de Emily, a cama onde contorcia-se em razão das dores causadas pela nefrite, sua pequena escrivaninha quadrada e uma única cadeira, na qual ela sentava-se para escrever. Tampouco transparece mistério no quarto de Pessoa. Ali estaria o baú entreaberto com anotações de criaturas que por seu intermédio puderam conhecer este mundo, uma estante dupla de livros e alguma garrafa vazia de vinho ou absinto no piso. Detrás da porta em Ashford, o colchão que uma Simone desnutrida e diáfana deixou intacto, para o próximo convalescente.

Não escolhi esses três nomes por sua aura, nada disso. Escolhi porque estão no topo do meu panteão, um pouco acima de outro autor que morreu praticamente inédito: Franz Kafka. São deles as coisas mais impressionantes que já li, embora de Simone não como poeta. A não ser por um poema chamado justamente “A porta”, o seu é um texto do pensamento, e de “graça”, mas de uma força impressionante.

É uma coincidência estranha que os nomes acima, quase todos eles permaneceram em vida praticamente inéditos em livro. Pessoa ainda chegou a ver Mensagem, Kafka uma coleção de contos, mas tanto Simone quanto Emily publicaram apenas em jornais e suplementos. Nada que denunciasse a imensidão da obra por trás de cada um deles. Mas talvez não seja coincidência, apenas que se dedicaram mais a escrever do que publicar. Emily parecia ter muitos receios de se expor e de ter uma má apreciação. Pessoa acho que não conseguiu se organizar para tanto, embora seus planos fossem até conhecidos de amigos próximos. Kafka incumbiu um amigo para queimar seus originais, não sei se sabendo que o outro não o faria. E de Simone Weil a obra foi mantida por amigos para depois de sua morte ser editada e divulgada por Albert Camus.

Tenho um carinho muito especial pelos autores inéditos, reservados. Não estou falando daqueles que não conseguem editora (hoje alguém não consegue?), mas daqueles que não se entregam à carreira literária, mas vivem tão intensamente a literatura que ela praticamente se consome neles mesmos. Porque são pessoas organizadas por outra ordem que não a do auto-proveito, muitas vezes é preciso que atravessem a última porta para que só então sejam valorizadas. Às vezes, nem assim. Acho isso de uma indignidade terrível, ainda mais porque muitas vezes este espólio é objeto de familiares desinteressados na pessoa e na obra, mas não nessa exposição e exploração comercial. Muito complicado isso.

Neste ano de 2024 eu perdi um amigo muito especial, que morreu praticamente inédito em livro. Salvo um volume juvenil, feito com parcos recursos, sua obra está praticamente perdida. E o que ele mesmo não eliminou, decidiu por não guardar. Então, simplesmente perdeu-se. Eu tenho comigo algumas coisas que ele publicava num blogue e eu salvei, mas não é suficiente para um livro. No meu juízo, a sua poesia é superior a de muitos livros bem-sucedidos por aí, mas me incomoda mesmo é a consciência de que ninguém saberá das horas intensas que ele dedicou à escrita. A intensidade terá sido apenas aquele frêmito momentâneo que poucos conseguem fixar a contento no papel. Este foi um poeta que me abriu a porta e eu pude conhecer um pouco, mas quantos há, como ele, que o mundo ignorará por completo?

No ano passado ou retrasado eu escrevi um prefácio para um livro que deveria existir e ser celebrado por quem gosta de boa poesia. A poeta me pediu para escrevê-lo e eu acho que nunca gostei tanto de escrever um prefácio como o para ela, mas ela não conseguiu ainda se organizar para publicar. Eu lamento, mas entendo perfeitamente. Fato é que obras como a sua estão em falta, no meu juízo, enquanto livros não faltam. É uma pena que as coisas sejam assim, mas cada vez mais eu me convenço de que foi assim sempre.

A história do livro é muito violenta e tem capítulos cruéis. Ao lado disso, feliz e incrivelmente o espírito criativo se mantém. A literatura se mantém a despeito do livro. Mas na minha idade eu já testemunhei injustiças e apagamentos absurdos. Talvez as obras de uma Emily Dickinson ou de um Fernando Pessoa hoje não fossem sequer notadas, ou menosprezadas. Talvez Kafka preferisse lançar ele mesmo seus livros às chamas. É um mundo que se fecha por dentro, o do livro, e que de certa forma sufoca os leitores.. Mas é preciso salvar as obras que estão morrendo por descaso com a memória cultural e as que estão agonizando dentro da casca do ovo por falta de uma mínima atenção, de espaços, de tudo.

Isso não tem a ver com o livro ou o sucesso comercial ou as editoras ou as livrarias ou os suplementos, tem a ver com a literatura. A internet, que lucra com a objetificação de tudo, com a inteligência artificial vai se tornando cada vez mais a “internet das coisas”. A literatura na internet não precisa seguir esse modelo, mas, se acreditarmos apenas nisso, é no que ela fatalmente acabará se tornando.

O calceteiro

Hoje o calceteiro não veio. Havia ameaça de chuva, mas a chuva também não veio. Nem um nem outro vieram. Não sei onde foi parar o som das repetidas marteladas que ontem repercutiram tanto e que hoje repercutiriam outra vez. Havia um partitura pendurada no ar que não se sonorizou.

Às vezes fui a janela observá-lo: ele selecionava como um cirurgião entre tijoletas intactas e machucadas. As machucadas ele ia destroçando e ensacava à disposição de um comboio que passa pela noite levando na caçamba ruínas de pedras, frangalhos e outros destroços que as pessoas deixam na rua.

Na forma pela qual ele alinha as tijoletas, só é possível uma ordem, caso contrário todas perdem o ajuste. E a calçada volta a ser uma espécie de estrada, um caminho. Em frestas retilíneas ele vai ajustando as pedras que não se incomodam do seu manuseio.

Nada disso se parece à vida real, onde tudo se desajusta tão rápido, mais que se possa perceber. Mas, ao contrário dele, que descarta as pedras sem dó, é muito difícil jogar fora o que está arruinado. A consciência de viver é dada por cicatrizes e outras protuberâncias, como o cabelo que cresce, pelos no corpo, unhas, essas coisas. Tudo, menos as coisas intactas.

Já as pedras não têm consciência nenhuma, é claro que não. Se algo lhes falta, não parece ser por culpa do calceteiro. O incômodo rugoso das outras pedras raspando em desencontros é também uma espécie de conforto, assim como as pequenas almofadas nas patinhas dos cães que sem solenidade ou pudor urinam na obra do homem e sobre a sua fronte, tapando-lhe o sol e adulterando sua fisionomia.

Minha amiga Dalva de Oliveira

Ninguém imaginaria que esta senhora confortavelmente instalada sobre o encanamento da calha de chuva do meu edifício seja na verdade uma reencarnação da Dalva de Oliveira.

Mas não só ela é como eu tenho certeza de que mais adiante, no pátio da minha vizinha, vive também a reencarnação pássara de Ângela Maria e num perímetro não muito grande ainda se possam encontrar todas as rainhas do rádio, que por alguma razão resolveram voltar à vida tudo aqui pertinho de casa, numa grande coalizão de talentos que elas exuberam madrugadas afora.

Eu não sei bem a identidade delas — de noite todos os sabiás são pardos —, mas esta aqui eu tenho certeza de que é a Dalva, que, de acordo com a opinião de Heitor Villa-Lobos, foi a maior das cantoras brasileiras da sua época. E porque tenho bom ouvido e certeza de que nunca daquele bico emitiu-se que fosse só uma nota desafinada..

Coisa mais agradável que tem é acordar com o canto de um sabiá. O problema é que nessa época de acasalamento os pretendentes a nubentes acabam montando uma orquestra filarmônica noturna. E o que era mera seresta logo se torna a Primavera de Vivaldi.

Mas… Para que dormir? Vamos aproveitar e ouvir os pássaros!..

Noite dessas, com olhos pesados e ouvidos alertas, cheguei a cogitar em desalojar a Dalva. Cansei de você, vá cantar noutro terreiro, pensei.

Mas tomei do telefone e revendo-a, absorta chocando a ninhada de ovinhos, recobrei o pouco de humanidade que evaporava àquelas horas altas da noite. De ornitopata me conformei em ornitólogo. Fiquei com a foto. Ela, com o seu ninho.

Também pensei que talvez pudesse ser atacado por um sabiá malandro de navalha na mão (um namorado típico dos anos 50, terno branco e chapéu panamá) e achei que não tinha cabimento ninguém passar por essas aventuras e muito menos um despejo tão brutal. Eu era um monstro pensando numa violência de empreiteira imobiliária e ela a reencarnação da Dalva de Oliveira..

Seus trinados, barroquismo que aprendeu involuntariamente na natureza, quando soam eu sei que são três da manhã. Para uns, hora de desbragada boemia. Para outros, o sutil despertar da neurastenia.. Assim é a vida, jamais se pode pretender agradar a todos. Mesmo a voz de uma Dalva de Oliveira pode soar insuportável, a depender do humor do freguês..

Michael Jordan, poeta

de quando Michael largou a poesia e se tornou um gênio

Há quem maldiga o seu algoritmo por muito pouco. Não eu.

Eu tenho descoberto com ele coisas bem interessantes, como, por exemplo, que o maior jogador de basquete de todos os tempos também tentou a carreira de poeta. Ainda que tenha sido um poema só, e ao que tudo indica dedicado à sua mamãe, ele tinha tudo para se tornar também um gigante dos versos.

É isso mesmo! Quem me revelou isso foi um vídeo do Reels (aqueles vídeos aparentemente aleatórios que cronometram milimetricamente a atenção dos indivíduos para lhe dar e mais mais do mesmo, como se fossemos hamsters).

É por onde o algoritmo parece descobrir o ponto fraco do freguês, a sua droga favorita, a sua perversão secreta, a sua obsessão patológica e passa a lhe oferecer mais e mais daquilo para que ali ele fique o máximo de tempo possível, seja assistindo a vídeos de gatinhos fofos ou coisas que às demais pessoas não importa nem convém saber.

Os vídeos do Reels são, não mal comparando, a cracolândia das redes sociais.

Depois de um tempo variando a oferta de conteúdo, finalmente o algoritmo descobriu que, no meu passado, eu fui um jogador de basquete. Primeiro amador, depois ainda amador e finalmente ex-amador. Essa foi toda a minha carreira.

Mas descobriu o algoritmo que eu ainda hoje posso passar horas sem fim assistindo principalmente às jogadas dos meus diletos gênios da bola ao cesto.

Os gênios são muitos, em todos os tempos, mas divindade, como todos sabem, há uma apenas. Atende pela nome de Michael Jeffrey Jordan, o imortalizado número 23 do Chicago Bulls. Michael Jordan (MJ), o jogador poeta. Sim, talvez o autor de um poema só, escrito na High School, como saber? Mas que importa? Não se pode ter preconceito com detalhes secundários como esses. A poesia é um caminho aberto a todos que se atrevam a trilhá-lo.

Mas desde que eu vi aquilo, entendi subliminarmente que ele, além do basquete, sempre esteve envolvido numa, como eu quero demonstrar, poética.. Exagero? Provarei que não. Pelo menos me deixem blasfemar com liberdade..

Na verdade, nem é preciso que eu prove muito. Os vídeos de Michael estão aí e são auto explicativos. Basta que se perceba a sua atitude em relação ao objetivo do jogo e cada investida sua contra a cesta adversária para que se entenda a intensa catarse a que ele se sempre se entregou ao jogar.

No basquete, como todos que já o praticaram reconhecem, o objetivo da vitória final é secundário, detalhe decorrente de muitas outras coisas. O que importa é que a bola caia no cesto. Quantas tentativas num jogo profissional isso acontece para que o objetivo se cumpra? Centenas, milhares.. Mas cada uma das tentativas é um esforço total, isso em MJ é mais que evidente. E o incrível nele é que sempre o fez de inúmeras maneiras diferentes. Não é uma jogada especializada apenas, um lance de 3 pontos infalível, mas uma versatilidade aliada ao foco que o fez obter o que obteve: ser ainda hoje considerado o “goat”. O bode. O greatest of all times..

Na verdade, o que acontece no basquete são milhares de pequenos jogos dentro de um grande jogo. Há os arremessos de longa distância, média, infiltrações, enterradas.. Para cada uma dessas modalidade de encestamento, diversas possibilidades específicas: reversão, antecipação, explosão, etc etc etc.

Além disso, o jogo em quadra, os movimentos, a levitação, a percepção espacial e de oportunidades. Tudo isso praticado com uma necessidade de solução imediata, de pronto, irrefletida. MJ foi um mestre exímio em tudo isso. É como fosse um Musashi das quadras, um Bach, um Mozart, um Shakespeare, um Machado da bola em gomos.

Mas o que nele há de diferente dos outros jogadores?, indagaria um neófito no melhor de todos os esportes.. O Lebron James não é tão jogador quanto ele? Kobe Bryant não foi? Magic Johnson? Oscar Schmidt, o “mão santa”? A Hortênsia?

Esse é o tipo de heresia que não se pergunta jamais a um basqueteiro..

A questão, para o que interessa aqui, é que nele, MJ, há um senso de obtenção do efeito que é completo. Não há um acaso sequer. E mesmo no erro, o erro é menor, ele não é valorizado, perde o efeito, é como se não existisse em face da nova tentativa. Isso é o suprassumo da vontade criadora. E é aí que justamente reside o que chamo de “poética desportiva” deste hoje senhor sexagenário e multimilionário.

A bola tem de cair e ele vai empregar toda, completamente toda a sua energia para obter um, dois ou três pontos no épico que é cada jogo por inteiro. E isso a cada lance. É um desgaste de atenção descomunal, como sabe bem quem já tentou jogar basquete por mais de cinco minutos.

* * *

Apesar de que prefiro ver aqueles lances bem antigos em que Jordan simplesmente ultrapassa os adversários rumo a mais um dunk destruidor, tem um lance que é muito emblemático na sua carreira. Aconteceu num jogo contra o Los Angeles Lakers, na final do primeiro do seus títulos, quando suplantou outro gênio das quadras: Magic Johnson.

Numa infiltração em três passos (bandeja), nosso herói se depara com uma impossibilidade espacial, uma barreira imprevista, o que ocorre junto ao próprio esgotamento do seu movimento de três passos. Pois de algum reflexo cinético felino, ele simplesmente muda a trajetória no ar e faz com que a bola passe por um espaço humanamente impossível e que não se encontrava bloqueado pelos dois defensores. Mas a bola passa. Passa e cai. Dois pontos só e daí, diria uma pessoa abilolada pelo pragmatismo.. Uma obra-prima do esporte, diriam os fanáticos.

Michael Jordan – famous switch hands layup

Você provavelmente já viu um cesto de lixo de um escritor que faz justiça ao nome, isso antes do computador.. É o mesmo do que se dá na quadra de basquete. Muitas bolas fora até a obtenção do que realmente tem valor.

Isso independente das suas escolhas formais e estéticas — embora elas possam até garantir algum efeito extra no lance (mas jamais antecipar seu efeito). Isso sempre depende muito de quem joga, dessa habilidade, mas também, complementarmente, de quem assiste. É preciso fazê-lo, simplesmente. Just do it, como diz o lema dos tênis..

Pois assim precisa ser um poema. A bola tem que cair.

Nessa minha livre analogia, o poeta tem que fazer tudo, absolutamente tudo, para que a maldita bola caia. Isso de atirar para cima e talvez ela caia, com o perdão da metáfora, não é a mesma coisa. Não tem valor algum. É sorte. Acaso. Valem dois pontos no placar, mas não têm graça alguma..

A ação poética, nessa perspectiva comparativo-desportiva, é o emprego dessa energia, sem perda de tempo, eficiência ou atenção. O treino não vale. A brincadeira também não. Magic Johnson, um brincalhão, diziam que era muito mais competitivo que Michael Jordan.. As pessoas enganam muito.

A ação se dá quando o sujeito entra em quadra e faz tudo que pode fazer, com o maior empenho possível, até que pareça aos olhos dos outros uma trivialidade (que ele, no entanto, sabe perfeitamente o quanto lhe custou obter).

É o que fazia Michael Jordan ao jogar.

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O poema juvenil de Michael Jordan é imprestável. Felizmente ele foi jogar basquete e não continuou naquelas chorumelas..

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A má notícia aqui é que o algoritmo também descobriu que eu tenho fascínio em vídeos de répteis. Valei-me Freud, mas eu simplesmente gosto de observar a existência desses seres primevos. Se querem me interpretar, bom proveito, eu não me importo..

Mas eu tenho pensado há tempos também numa aproximação poética sobre os répteis.. Que que tem de mais?

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Estou pensando nisso enquanto assisto às finais da NBA..

Que jogadores canhestros e desgraciosos…

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Que os dragões os devorem vivos..