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Acídia ficcional

Há um ano, mais de um ano, dois talvez, fui tomado pela acídia ficcional. Romances não me pegam mais: nem lançamentos premiados, às vezes nem monstros consagrados.

A doença chegou a levar que eu desenvolvesse a teoria da segunda chance, na qual uma pessoa teria uma chance de escrever um romance e outra, definitiva, no verso do mesmo romance. E acabou. Depois disso, gastos cara e coroa da moeda, soaria às esperanças do escritores como que o estridor do corvo de Poe: nunca mais..

A teoria não é injusta, de modo algum, e inclusive daria chance aos novos e incessantes autores. Seria como um ticket literário. Gastou, acabou. A vantagem secundária seria a de que poderíamos conhecer muito mais autores e não nos prenderíamos às garras do bom nome e da reputação. Afinal, mesmo autores de excelentes romances praticaram iniquidades e muitos publicaram às vezes mais por exigências contratuais do que por ânimo sincero.

Ânimo é a palavra, mas desânimo também. Eu sei, entendo que o problema está em mim e não nos livros. Não sempre. Há uma falta de paciência generalizada e essa é sempre uma boa ideia: dividir responsabilidades…

Mas não é isso. O problema também está menos na capacidade estilística dos autores que propriamente nas ideias. O problema são justamente as ideias e romances também são ideias. Às vezes, uma ideia só desenvolvida ao máximo. Mas, se por isso, por que não escrever a ideia simplesmente? Ou, melhor, porque a expressão da ideia não basta e é preciso lançar mão de tantas metáforas, alegorias, enredos?

Pensando bem, às vezes é isso mesmo que tem me atordoado nos romances. Certo exagero de engenhosidade ou, por outro lado, extremo apreço às ideias – tão extremo que se vê bem que sua principal qualidade é serem justamente ideológicos. E cansativos, por essa mesma razão, já que uma ideia apenas oferece o mesmo que um livro de duzentas páginas. Diante disso, é muito difícil que meu demônio do meio-dia não se manifeste. Logo ele (a acídia ficcional) aponta suas garras e toma – não raro para sempre – os livros das minhas mãos. E o pior: eu deixo…

E é tão real essa doença que ela não se verifica com outros gêneros. Livros teóricos, de não ficção (onde cabe o mundo), ou ensaios, ou contos o monstro preserva e leio com prazer, pois também é uma leitura como a da internet, em links e interrupções (talvez aí esteja a chave da questão). E a poesia também, que eu tenho repetido que vai salvar a literatura por sua brevidade de forma – mas também por sua carga concentrada de sentido, às vezes muito maior que toda a lista da ficção mais vendida da semana.

Eu não tenho dúvidas que a doença é minha ou está em mim (é pelo que eu torço – e que ela se vá dia desses). Mas vai se ver na pilha de débitos e livros abandonados de cada um e se poderá perceber que se trate, talvez, de insuspeita pandemia…

Adaptações

Se tem algo que eu não tenho dúvida é de que basta uma semana no inferno e até São Pedro e os apóstolos já estão aclimatados. Dúvida nenhuma mesmo. Zero dúvidas.

Uma vez eu tive uma experiência no trabalho que me instruiu para a vida. Até hoje, na memória, me espanta. Foi quando eu percebi que a capacidade de adaptação do ser humano não tem limites e nem sempre age em seu benefício, mas com certeza sempre age sob a condução da necessidade.

O fato se deu com uma prestadora de serviços terceirizada que veio trabalhar conosco para suprir as férias da prestadora habitual e essa pessoa tinha a incomum capacidade de ficar sentada horas na mesma posição, olhando para um parede de azulejos, sem nem mexer num celular pra matar tempo ou jogar cobrinha, sem folhear um livro ou um jornal, acho que nem coçar o nariz ela coçava aproveitando a discrição do ambiente metro por metro que é a nossa cozinha improvisada.

Num primeiro momento, pensei que ela pudesse ter algum tipo de autismo, ou ainda tivesse alguma condição especial que a aparência uniformizada não me permitia perceber. Depois de algumas trocas de frases com ela, vi que não era nada disso. O que havia é que ela tinha um roteiro de trabalho com alguns momentos de espera e horários de controle e se movia criteriosamente por isso. No restante do tempo, fazia absolutamente nada de uma forma extremamente perturbadora, pois ela realmente não era impedida por ninguém de se ocupar com o que desejasse no seu tempo de espera, mas ela simplesmente não fazia questão. Era como se estivesse num estado contemplativo inacessível aos demais, de repouso completo e absoluto, igual a um monge em meditação vipássana.

Por um tempo eu achei que ela podia estar descansando de um rotina noturna pesada, talvez um terceiro turno de trabalho, talvez uma situação familiar difícil – ninguém sabia e nem seria discreto assuntar assim a pessoa que, como uma espécie de transe, passava longos períodos de tempo sentada na mesma e absoluta posição, em completo silêncio. Além do mais, ela não deixava de fazer suas atribuições e aceitava a condição pela mesma razão que leva o ser humano a tolerar o insuportável: a necessidade, sem demonstrar a menor contrariedade com aquilo e suas implicações.

É difícil imaginar que alguém suporte olhar para uma parede de azulejos por horas a fio sem surtar, mas acontece se essa é a sua melhor opção de sobrevivência. Também é difícil suportar que alguém se comporte de maneira tão passiva diante de uma situação tão precária. Acontece também, pois é preciso respeitar a condição das pessoas mesmo que nos pareçam aviltantes, ainda mais quando elas precisam daquilo e sua sobrevivência depende disso. Parece óbvio, não é? É óbvio mesmo, mas, por outro lado, é bem complicado…

Eu lembrei hoje cedo da situação dessa pessoa (com que convivi por cerca de três dias) porque realmente fiquei impactado com a sua capacidade de adaptação a uma condição de trabalho que nem é violenta no sentido ortodoxo da expressão, mas que é resultante de uma combinação de coisas que, apesar da estranheza, consegue gerar comportamentos limítrofes como esse.

Eu lembrei porque eu já percebo que vamos acabar nos adaptando tanto às mortes incessantes quanto à condição de ter de viver sob essa condição. Nós nos adaptamos, essa é a verdade. Subiremos aos ônibus. Entraremos em filas. E às vezes deliberadamente sabotaremos a condição do próximo, seja lambendo a maçaneta do seu carro – como já foi filmado – ou menosprezando os cuidados com a máscara e o distanciamento. Seja editando um decreto, uma medida legal, uma norma, uma regra qualquer que vai nos submeter ao comportamento do vírus ao invés de enfrentá-lo com racionalidade e conhecimento. Essa capacidade de adaptação nos leva a criar tanto um pensamento distorcido (para saciar a própria crença), quanto a submeter o maior número de pessoas a esse ordenamento. É olhar para o Estado brasileiro (ou o governo do RS) para notar que estamos já sendo governados pela ótica do COVID e que pouco a pouco (a cada fim de semana esticávamos essa corda, agora já fazemos isso todos os dias) vamos abandonando a noção social do cuidado.

Das epifanias mais aterradoras que as pessoas podem ter, a de compreender que não estão no governo dos fatos, mas organizados por estruturas maiores, é das mais acachapantes. Diante da compreensão, muitos optam por não entender e normalmente fantasiam formas de imaginar um controle da realidade, uma negociação qualquer, teorias, religiões, qualquer coisa. Comportamento neurótico clássico. Depois de se espalhar por todo o mundo com a nossa colaboração, o vírus vai aprendendo, claro, modos de conviver conosco. Ele vai se aclimatando em nós, na sua “vida” acelular.

De alguma maneira que não requer uma inteligência ou instrução, ele nos testou entre outras espécies e decidiu que seríamos um bom mecanismo estratégico para a sua própria sobrevivência. Por nos adaptarmos a viver em péssimas condições, em condições desumanas mesmo, e por não cuidarmos uns dos outros, o vírus sacou qual era a nossa. E todas as nossas sabotagens e artifícios o vírus conta exatamente com isso para ir exterminando-nos sem pressa, até que passemos a suportar. Desse maneira, o vírus está nos adaptando a ele, é lógico. E a miséria dessa situação é maior do que qualquer um de nós suportaria imaginar.

Scroll-down

O normal para as pessoas de todas as épocas sempre foi viver num ou noutro período de guerra, em períodos de dificuldade tremenda, de escassez e penúria. Dificilmente uma geração passaria inteira sem atravessar ou vivenciar alguns eventos histórico marcantes. Me basta pensar nos meus pais, por exemplo, que nasceram antes da Segunda Guerra Mundial. Ou dos meus avós. Esses atravessaram duas guerras, pandemias, ditadores de toda a espécie e nem antibiótico tinha. Meus bisavós viveram uma época em que chegar aos cinquenta anos já era longevidade. E nem havia infância para esse pessoal. Eles pulavam direto das calças curtas para a vida adulta, de trabalho sem facilidades e tecnologia rudimentar, morando em lugares sem estrada, num interior sem horizonte e nem tempo certo.

Mas o destino teria me oferecido (por alguma razão mágica) viver nessa paz perpétua, nessa fruição consumista sem dano e nem tragédia à vista. Nem a ditadura militar, o período mais complicado da história recente, eu vivi direito. Quando dei por mim como ser vivente, já estava tudo se encaminhando para Tancredo e a Nova República. E depois, o mundo político foi mais ou menos sempre um levar com o abdômen o status quo, sem grandes mudanças.

Nas aulas de História no colégio eu até ficava pensando em como teria sido viver em situações e momentos terríveis, mas como um exercício mental mesmo. E não é que se vivesse um estado de coisas equilibrado, mas aparentemente estava meio dado que as coisas seriam meio essa pasmaceira. Sem muro de Berlim, as crises seriam sempre apenas marolinhas na boca dos experts e logo a pujança capitalista sanaria – num passe de mágica – dificuldades imensas, heranças terríveis como a escravidão e uma desigualdade econômica incontornável, sem par no mundo civilizado e que alimenta uma sociedade abertamente violenta, só na fachada feliz.

Não me espanta que morram agora 4000 pessoas/dia e nada aponte no cenário que a sociedade possa mudar o rumo das coisas. É claro. É claro que não. Vivemos no show de Truman, no show do Zuckerberg, causando uns aos outros e não queremos acreditar que essa é uma época trágica protagonizada por nós mesmos e que nos pegou infantilizados ao extremo. E quando eu vejo a geração de septuagenários morrendo, octogenários, eu fico meio em pânico porque com a sua memória se vai a lembrança de como era necessário ser bravo para viver.

Dê uma senha de wifi e umas moedas ao povo e está garantido o show de patetas que nós nos tornamos. Nem originalidade temos nas lamúrias todas iguais. É dar Ctrl + C e Ctrl + V e seguir adiante, num scroll-down sem fim. Mas se essa pandemia e esse governo for apenas o começo de uma crise maior, muito maior, nós ainda assim não hesitaremos em mentir aos nossos filhos e netos de que fizemos todo o possível. Na verdade, fizemos nada. Quase menos que salvar a própria pele, andando que nem baratas tontas, tal o nosso estado de desorientação.

Medo e sobrevivência

Muito antes que eu desenvolvesse o inevitável medo dos boletos, eu tive um pânico absoluto da bruxinha Memeia, personagem dos gibis da Luluzinha. É verdade. Pensando bem, até hoje sinto um desconforto estranho com a apenas aparentemente inocente figura destrambelhada da bruxinha. Embora me pareça que ela não represente qualquer espécie de perigo real, por via das dúvidas eu mantenho um remoto respeito pela menininha e sua bata preta. Outro medo indestrutível que eu desenvolvi na infância foi com o Coronel Urko, do Planeta dos Macacos. Ou melhor, todos os filmes antigos e a série do Planeta dos Macacos me inspiravam e inspiram certo desconforto.

Mas o medo é isso mesmo: é como um gatilho ligado diretamente na adrenal que escapa totalmente ao domínio da racionalidade. No mapa cerebral, ele tem endereço fixo no sistema límbico, na porção da massa cinzenta que temos em comum com praticamente todos os animais e, não por outra razão, predomina na instância dos instintos ao lado da sua meio-irmã: a agressividade.

Se no mundo imperasse a lógica e não a estultice, haveria de ter muito mais monumentos aos medrosos que aos temerários. Se fosse por esses últimos, a espécie não teria nem sobrevivido. Ao sair da caverna, nos teríamos jogado diretamente aos tigres de dente de sabre e teríamos acabado ali mesmo, na porta da toca. Precisou um prudente de plantão para alertar aos demais quanto ao risco evidente de enfrentar feras com pedras e galhos de árvore e pensar em estratégia.

Eu não tenho dúvida de que uma das razões principais do sucesso do Covid se deve ao fato de sua invisibilidade e também de uma arrogância do ser humano contemporâneo em situar-se num lugar privilegiado na natureza. Ou seja, um pouco de medo real não faria mal a ninguém, mas essa é justamente a dificuldade no caso da pandemia: não há uma imagem a ser temida e mesmo a figura do vírus, por minúscula, é tratada pela maioria das pessoas como se não existisse.

Quando eu era criança e sentia medo da bruxinha Memeia eu reconhecia um fator de estranheza na personagem, já que ela introduzia uma aparência e comportamento dissonante entre uma enormidade de outras personagens inocentes. Estava ela ali alertando que não há só inocência no mundo e que, ainda mais grave, ela se oculta numa aparente situação de normalidade, como uma espécie de camuflagem. O mesmo com o Planeta dos Macacos, afinal, é muito insólito que os seres humanos possam ser escravizados por animais. Também uma normalidade aparente está acobertando uma situação terrível, assustadora. Não muito diferente da pandemia também.

O que parece é que poucos detectam um padrão que inspire medo e prudência a não ser que se viva de perto ou em si mesmo o aprendizado da doença e da fragilidade da condição humana. Por isso, a ansiedade é como um medo difuso, desorganizado e insuficiente para a autoproteção e se tornou a sensação predominante nesses dias. Existe a consciência de um risco, mas também uma enorme dificuldade em localizá-lo e precisá-lo com clareza.

Por essas e por outras, já que o vírus e seu contágio são invisíveis, o temor que ele inspira nas pessoas é fraco porque sobrenatural, ou seja, não é pelo seu comportamento evidente, mas pelo que se pode imaginar a seu respeito, com as devidas matizes e informações de cada um.

Como se trata de uma população sem noção e temerária, o contágio é descontrolado. Normalmente, as pessoas temerárias não esboçam uma reação de medo ao ver um gráfico, ao contabilizar números, para elas isso é um cenário tranquilo, administrável na sua neurose cotidiana. São as mesmas pessoas que expõe a comunidade ao risco por serem tomadas de um sentimento de invulnerabilidade.

Este mundo (e também o novo normal) é o império do homo demens e essa época o antropoceno que vai se arruinando dia a dia. O Covid, nesse caso, tem muito pouco trabalho e, se pudesse, o que ele faria mesmo é agradecer as facilidades oferecidas. Nunca foi tão fácil colonizar uma espécie que não tem medo e se julga acima da natureza.

Carnaval canibal

A grande covardia destes tempos bem aventurados, a mais intolerável delas, na minha opinião, é a psicofobia. O mundo está mindfulness demais para a minha cabeça. E os próprios estados mentais são muito mais evitados do que qualquer outro preconceito exterior.

É tal a obsessão pela produtividade que o ócio banal foi abolido e o próprio lazer agora é computado em perdas e ganhos. Fulano viu quantas séries, Sicrano leu quantos livros, Beltrano ouviu quantas músicas, foi a quantos shows, foi a quantos carnavais na Bahia, testemunhou quantos defuntos célebres. É um modo de vida computacional no qual não se pode perder tempo com o que não seja coincidente a um estado mental onipresente, na realidade impossível. Mas não importa. Importa mesmo é viver com uma margem de lucro emocional diante ao tempo, aos demais e à própria vida.

É tamanha a psicofobia que sentimentos normais do ser humano de repente foram debulhados em características “tóxicas” ou “desejáveis”. Desejável é a euforia. Tóxica a depressão. Mas é delirante a possibilidade de surfar impunemente nos estados emocionais. Drogue-se disso, medite-se aquilo, beba-se, compre-se, viaje-se, alivie-se num sistema infindável de compensações e sublimações.

Não sou psicanalista, mas é evidente que as pessoas precisam e têm direito a ter momentos de melancolia. Mas justamente porque a tristeza e a melancolia são estados aparentemente não compartilháveis da existência, solitários, debita-se a elas a noção de negatividade. E no mundo virtual isso fica ainda mais agravado, pois aqui o que se evidencia é o triunfo e, como se uma superfície lisa livre de rugosidades e asperezas, a alienação de um para o seu semelhante.

A positividade é tanta que o luto foi abolido, inclusive o luto social. Não há perdas. Não há frustrações. Não há nem deficiências. A diversidade mesma, que deveria ser um valor da diferença, acaba forjada como um lustro de despersonalização. De equalização bionormativa. E esse vocabulário todo cada vez mais faz parte de um idioma indesejável do qual o saudável é manter distância regular com o salutar e carnavalesco hábito da euforia. O que poderia ser mais melancólico?

Nem a pandemia e a notícia de tantas mortes é capaz de levar a pensar que essa película de resistência é muito mais porosa e permeável. E de que somos humanos e devemos responder ao mundo do lugar da humanidade já é coisa do passado. Mesmo a dor é rentável como simulacro e a positividade – apesar de que ninguém vá admitir isso jamais – sim é que se transformou numa doença cuja solução passa, infeliz e fatalmente, pela melancolia.

Às vezes o que me parece é que vivemos (brasileiros) já em cuidados paliativos há muito tempo. E há mais tempo ainda os brasileiros inspiram cuidados. Mas quem se importa? Nem nós mesmos…

Ou já estamos na etapa da negação do sofrimento, levando os demais por diante com o nosso próprio “e daí?”, numa espiral de violência e agressividade gratuita. Inspiramos cuidados, sem dúvida. E um pouco de piedade também. No carnaval, ficamos mais nus, mais loucos ainda porque afetados pelo sol abrasador e pelos delírios daí decorrentes.

O anu-branco

Em madrugadas de primavera chega a parecer que acordo dentro de um conto de João Guimarães. Antes da primeira sirene de ambulância berrar no ar de Porto Alegre, uma sinfonia de aves cantarola, trina, arrulha, assobia, apita, gorgeia e cacareja numa liberdade até desrespeitosa. No breu ainda confiro: são quatro da manhã. Quase sonho que posso ouvir uma queixa de bezerro, ou uma vaca comunicando. Não tem vaca nenhuma, eu sei, mas, se tivesse, não pareceria tão estranho. As aves metropolitanas são músicos desajustados. Integram mesmo a secreta orquestra que executa a mesma sinfonia indiscreta há centenas de anos, indiferente ao que fizemos da natureza, mas com o juízo das horas atordoado, as coitadas. A pandemia aumentou o número de músicos da orquestra e, apesar de me acordarem cedo até para o campo, eu gosto de apontar os cantos que posso distinguir (andavam todos minguando em anos passados). São muitos e sei porque tenho bom ouvido. Na mesma medida sou ruim de nomes, de associar nome e figura. Então não sei quem são direito. Quase sempre me atrapalho, reconheço poucos de nome. Mas mais alto que o melodioso sabiá, num grito selvagem mesmo, o gavionídeo e predador anu branco parece sempre avisar de alguma coisa, na sua trilha de suspense que irrompe como um alarme de dentro do mato. Mas não tem mato (mato queimou). Mas tem, numa agonia de resistir.. Nem que seja dentro de pedaços do seu grito/canto afogueado.

Sci-fi in vivo

Não faz muito acessei minha estação de trabalho remoto aqui de casa. Domingo, isso mesmo. A operação é banal. Basta que eu forneça um endereço de rede, login e senha e está pronto: é como se estivesse em dois lugares, operando simultaneamente dois computadores. Para quem trabalha com recursos de informática, é uma operação trivial, possível há vários anos já. Até a pandemia e a implantação do homework, eu nunca usara o recurso. Nos últimos meses, tem sido a rotina e com muita facilidade acesso atividades e tarefas remotas e as executo como se estivesse in loco.

Entrei para encontrar um texto que estive olhando por alto esses dias. Até onde vi, é dos primeiros artigos que discutem a juridicidade dos algoritmos de navegação para carros autônomos e a questão da responsabilidade penal em danos e acidentes.

O assunto por si só parece estranhamente remoto, como se viesse diretamente de um filme de ficção científica, mas a verdade é que o mundo das normas legais já começa a se preparar para o desembarque desses veículos no Brasil e é necessário que sua tecnicidade seja compreendida e limitada pelo ordenamento jurídico nacional. Será a primeira vez que os automóveis se portarão como robots ou autômatos e o desafio dessa interação é ainda incompreensível em sua extensão. Logo, será mais uma banalidade tecnológica com a qual estaremos lidando como se o mundo sempre tivesse sido assim.

A ideia de que para se ter um robot é necessário um boneco mecânico com cabeça, tronco e membros (ou rodinhas) tem a infantilidade necessária para que não se perceba a dimensão que a tecnologia tomou em nossas vidas. Às vezes eu fico pensando que a robótica sempre foi apenas um jogo de cena, uma cortina de fumaça para a verdadeira revolução tecnológica em curso: a microinformática. Idealizados quase sempre como escravos mecânicos, os robots definitivamente não tem muito a ver com essa imagem, esse clichê.

De um modo ou de outro, o certo é que todos temos vários robots que automatizam tarefas e rotinas para nós, mas de forma que nem percebemos. Um cartão de crédito é um robot, por exemplo, quando ele nos libera da tarefa de ir ao banco, sacar dinheiro, pagar por algum produto ou serviços, receber o troco, conferir e guardar de volta na carteira. Dentro do cartão, um chip coordena todas essas transações e nós já nos acostumamos tanto a isso que banalizamos a complexidade de tarefas executadas por aquele pedaço de plástico.

Tudo o que executa uma tarefa autônoma a nossa vontade, mas seguindo determinadas instruções, pode muito bem ser chamado de robot também. Um elevador. Uma geladeira. Uma televisão. Um computador então nem se fale. Um computador é uma grande comunidade de robots. Ou mais que isso: uma sociedade de comunidades. Acontece que num computador (ou em qualquer meio digital nativo ou de transmissão digital), os robots são muito menos evidentes que os seus ancestrais – o elevador, a geladeira, etc. Ali, tanto há dispositivos para executar uma operação bancária desejada quanto dispositivos infiltrados para roubar dados e outros que estão ali para montar barreiras, caçar e eliminar os códigos intrusos. Há linhas de código minúsculas que são robots. Mas todas essas transações corriqueiras são automatizadas de modo a que a gente possa usar o tempo com outras ocupações e/ou diversões e não essas “banalidades”.

Se você é uma pessoa que, por acaso, costuma jogar xadrez contra sistemas autônomos, já percebeu que sua capacidade é cada vez mais ridícula diante a deles. A não ser que você seja um Kasparov da vida (mas mesmo ele tomou um mate inesquecível do Deep Blue da IBM em 1997). Mais recentemente, o Deep Mind (outro deep) venceu o garoto Lee Se-Dol em 2016 jogando Go, um jogo ainda mais complexo do que o Xadrez. Desde essa época, tornou-se uma “banalidade” ser vencido por sistemas autônomos nutridos por inteligência artificial. Mas a questão certamente é mais “deep” do que parece.

Há outras datas de corte dessa evolução que ocorreram imperceptivelmente no ambiente doméstico. Uma delas foi o lançamento do Windows 10, pela Microsoft. Desde então o sistema operacional se estabilizou de modo impressionante à medida que a maior parte das transações informacionais deixou de ocorrer nos mainframes pessoais, passando ao território das nuvens (que de nuvens não tem nada, são supercomputadores regiamente pagos pelas empresas de tecnologia). O iPhone 4, da Apple, surge no mesmo contexto, amparando-se no mesmo conceito de intensificação da virtualidade.

É bem nesse momento que os robots e microbots da informática migraram massivamente para as nuvens, deixando ao encargo dos apetrechos apenas operações triviais, de processamento rápido. Hoje, praticamente não há mais computadores no mercado, apenas uma caixinha com a mesma tecnologia nano dos telefones. Também nenhuma mídia nova surgiu desde então, apenas novos formatos de encapsulamento e encriptação de dados. O que aconteceu foi que as empresas de storage então passaram a abrigar centenas de zilhares de bits, o famoso big data. Dentro dele, transações oficiais, extra-oficiais e um cadinho invisível que é retrabalhado permanentemente pela inteligência artificial a fim de extrair dados, apontar tendências e, por fim, vender mais tecnologia.

A questão é que, de fato, a revolução tecnológica não está nessa mudança de localização dos dados. Ela está no fato de que os dados passaram a nos comandar e nós é que nos tornamos seus escravos, alimentando sistemas que se aperfeiçoam apenas em nos comandar melhor. E, como nos melhores sistemas totalitários, com a nossa anuência e colaboração. O próprio vício em tecnologia é um hack implantado em nosso sistema biológico, eletro-biológico, enfim, o cérebro.

Não interessa se gostemos mais ou menos disso, mas tudo os sistemas sabem antes a nosso respeito. Basta que acionemos um login, e eles imediatamente recompõem nossas tarefas de trabalho, nossas relações humanas, nossa situação financeira e até mesmo emocional – ou para o que você acha que servem essas carinhas, coraçõezinhos, joinhas e etc a não ser medir a sua (a minha, a nossa) temperatura emocional?

Não faz muito tempo, o Facebook lançou vários alertas falsos de tentativas de suicídio, em erros forçados de interpretação instruídos pelos seus programadores, mas salvou algumas vidas também. Não foi bola de cristal que eles usaram.

Há poucos dias, no Google Translator, coloquei para traduzir um texto em alemão de um livro traduzido que fiquei com preguiça de buscar na estante. A tradução era a mesma do livro, em cada vírgula. O tradutor recebeu royalties por isso?

Não importa o que você faça, qual seja o seu trabalho, se isso já não aconteceu, não demora vai acontecer com você também. Não serão mais os robots que trabalharão para você, mas justamente o contrário.

Às vezes até uma ideia nova, aquela sensação de um insight poderoso, será mera indução tecnológica em seus diálogos algorítmicos. Se foram experimentadas a partir de 2010, eu não duvidaria. Até o voto e outras decisões da esfera aparente da liberdade. A liberdade não é aquela sensação de segurança de uma decisão tranquila, ideológica, mas exatamente o oposto movediço dessa sensação. E se há uma técnica de poder associada a essa revolução, a minha impressão é que ela é a mais bem sucedida desde o fim da escravidão. Muito mais efetiva e controladora que o consumismo de massas.

Agora pode parecer delirante ou exagero, mas em breve isso ficará cada vez mais evidente. E você ainda estará pensando que o Felipe Neto é que um digital influencer perigoso. Esse é o problema de gastar palavras à toa, porque de tão ignorantes e embevecidos não sabemos nem nomear nem qualificar esse poder, quando conseguimos notar sua presença.

Leitura e bibliofilia

Como os aborígenes que temem que a sua alma fique presa numa fotografia, os bibliófilos brasileiros pretendem evitar a pirataria tornando o preço do livro nacional um dos mais altos do mundo. Não faz muito sentido, mas, tomando-se consequência como causa, o argumento ganha ares de razoabilidade. Parece ciência, mas trata-se de apenas mais um disparate.

O preço do livro nacional é alto por uma série de razões, a menos importante delas é a pirataria. Em recente entrevista concedida ao jornal O Globo, o presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, Marcos da Veiga Pereira, confirmou que, para dar conta do setor livreiro, os valores saem das editoras por x (R$10,00) para a venda final por 6x (R$66,00). A variação, portanto, em regra ultrapassa os 600% e, de acordo com os cálculos da reportagem, com uma margem de 50% mantendo o mínimo de lucratividade.

O que o Lucio conclui, examinando esses números? Que os livros poderiam ser mais acessíveis e em muitos casos até mesmo ter preços populares. Que os programas governamentais poderiam muito bem obter contrapartidas públicas reais, não sacolinhas de brindes ou a vala banal das propinas.

O que os bibliófilos concluem? Para evitar a pirataria e a diminuição da procura, vamos aumentar os preços.

No mercado, é difícil encontrar um produto que passe por esse percurso de preços sem que o PROCON precise intervir. Ou o CADE. Mas, por alguma razão, no caso do setor livreiro uma política de preços fundamentada em percepções subjetivas não representa problema nem esses percentuais motivam a atuação dos órgãos de proteção do consumidor. Afinal “livro” e “povo” não têm muito a ver, é o que devem pensar os interessados. Talvez se trate de uma tradição ou da propagação de diagnósticos e compreensões parciais. Ou de um combinado de ambas.

Logo quando publiquem os resultados das pesquisas dos hábitos de leitura nacionais, como os realizados quadrianualmente pelo Instituto Pró-Livro (da CBL e SNEL), também se saberá que culpados são os iletrados e analfabetos funcionais brasileiros, pois deixam de participar desse mercado. Da publicação desses resultados, a mídia se fartará a diagnosticar a situação lamentável da leitura no Brasil. Em letras garrafais, os principais jornais estamparão que em média o brasileiro lê 2 livros ao ano contra 15 da Finlândia. Com os livros custando em média R$ 60,00/unidade, não é difícil de entender porque isso acontece.

E a pirataria, o que faz? A pirataria faz o que o Estado não faz ao providenciar bibliotecas acessíveis a população, que é seu dever. Em países com sistemas de bibliotecas públicas equipados, a pirataria quase em nada participa do “mercado”. Até mesmo porque os serviços de bibliotecas são formas de “pirataria legal” sistematicamente desencorajadas pelo sistema editorial. Daí, portanto, que defender o espaço de bibliotecas numa manutenção desses argumentos é imoral. Editoras não se dignam a doar sobras para bibliotecas. Ao invés disso, preferem inutilizar seus passivos em reciclagem. Duvidam? Eu que duvido. E mudo com prazer minha convicção se puder ver ao menos um convênio ativo entre editoras e qualquer biblioteca brasileira sem que isso passe por uma grande aquisição governamental, uma licitação, um programa, etc.

Nada disso faz mesmo muito sentido, mas é ilustrativo da história cultural brasileira o uso extorsivo do valor simbólico do livro para justificar práticas comerciais abusivas nas quais pirataria e direitos autorais são imbricados no mesmo problema.

Só que este modelo de negócios é tão ruim para as pequenas editoras que é desanimador constatar que mais de 50% do mercado hoje é dominado por uma transnacional, a Penguin Books, e seus selos nacionais, entre os quais a prestigiosa Companhia das Letras e seus subselos. Junte-se 3 ou 4 majors, e então sabemos como a cadeia se comporta e porque se comporta como se comporta: punindo o consumidor com preços elevados e livrando-se de qualquer compromisso educacional duradouro. Business, é disso que se trata e nada além disso.

Outro argumento reincidente na crítica ao hábito de leitura do brasileiro é a comparação aos vizinhos argentinos. Mas além de uma rixa pátria ancestral, essa é uma comparação totalmente improcedente. Tanto a história política quanto educacional argentinas são muito diferentes da brasileira. Há duzentos anos pelo menos os índices de alfabetização interiorizada da Argentina são superiores ao Brasil e o investimento em escolas e bibliotecas comunitárias data da Guerra do Paraguai, basta ver o exemplo de Sarmiento, visionário presidente argentino que fundou mais escolas e bibliotecas no séc XIX lá do que nós em todo o séc. XX cá.

O nosso chegou no boom da II Guerra Mundial, quando experimentamos o milagre brasileiro, mas durou pouco. Antes disso, são notáveis os empreendimentos literários que arruinaram pessoas físicas, tais como Moteiro Lobato e outros. O livro popular não tem uma boa história no Brasil e isso acompanha justamente os índices educacionais de um modo geral. Enquanto os argentinos tem uma relação com o livro de “leitores”, nós temos de “bibliófilos”. É uma questão cultural mesmo, da nossa verve cortesã, de luxo e pompa e breguice. Pois então. É como bibliófilos somos tratados, com preços fora da realidade. Com os bodes expiatórios certos, para que vamos nos preocupar com isso?

É uma pena, mas é como eu vejo as coisas. E estou muito longe de ser/estar feliz por causa disso, ainda mais com o entendimento brucutu do governo atual, de dificultar tudo ainda mais. Às vezes eu penso que viemos no preparando para esse apogeu de realismo que estamos vivendo, só pode ser, ou então não soubemos evitar por arrogância mesmo. Nisso somos tão bons de acusar os argentinos também que é uma forma de não assumir a imensa fraqueza da infantilidade civil que permite roubarmos uns aos outros e tudo o mais, e toda essa tradição de vilanias e brutalidades.

Irrecuperáveis, 2

Não é lá muito comum que alguém acuse um insight, uma epifania, em razão de uma coisa banal como uma escova de dentes, mas pode acontecer. Não convém duvidar. A maioria das pessoas é pouco modesta com seus lampejos. Normalmente eles ocorrem em datas especiais, viagens, leituras, filmes, equinócios, etc. Comigo aconteceu numa escovação de dentes. E nem foi comigo, mas com o meu filho que, num belo dia, decidiu aposentar a sua escova de dentes modelo mirim.

(Quem não tem filhos não sabe como o mercado volta-se ao público infantil com uma gana impressionante e de forma cada vez mais precoce. Não é questão de mera oferta, é assédio mesmo. Tudo tem bichinho e personagem. É um universo de simbolização feito na marra, muitas vezes sem qualquer alternativa.

Não fossem inúmeros os casos de crianças que confundem o mundo real com a programação do Discovery Kids, tudo bem. Tratando-se do ser humano, nada muito estranho. Há adultos que acham que a vida é o programa do Datena ou reality shows sem fim. Acontece que, no caso dos infantes, o assédio ocorre cada vez mais precocemente e não adianta que se poste aqui e ali que não se deve, por exemplo, permitir o acesso das crianças ao conteúdo dos apetrechos midiáticos se está todo mundo o tempo inteiro grudado neles. Estamos todos envolvidos pela mão e abraço invisível do mercado de uma forma ou de outra, não adianta.

Além disso, é um tipo peculiar de injustiça a privação das crianças a esse mundo, pois, afinal, o que mais elas querem é compartilhar do modo de vida dos que a cercam e não há nesse desejo crime algum, afinal nós mesmos damos prova o tempo inteiro de que ele é irresistível. As crianças costumam ser as primeiras a notar e observar essa injustiça. Os efeitos disso fazem parte doutra discussão, doutro capítulo da história toda.)

Quem não tem filhos com alguma deficiência intelectual, como o meu, que nasceu com a síndrome de Down, dificilmente valorizaria um acontecimento banal como esse. É que isso é uma coisa um pouco mais complicada quando você ouviu por anos a fio que ele seria uma eterna criança, e leu livros que confirmavam isso e ouviu isso de médicos e chegou a pensar que, afinal, nada mais haveria a ser feito quanto a isso, quanto a qualquer coisa. Isso é bastante terrível do ponto de vista comportamental e emocional, mas principalmente enganoso, pois a infância não é um intervalo mental, mas temporal. Não dá para ser criança a vida inteira sob nenhum aspecto. A adolescência é disruptiva. Basta que se deixe a pessoa expressar sua potência hormonal, seu desejo social, sua curiosidade natural.

Mas acontece que, num extremo, alguém inventou (provavelmente um vendedor) que a adolescência é um fenômeno cultural. Que um dia se é criança e, no outro, adulto. No outro, que é meramente biológico. Antes a pessoa não reproduzia, agora reproduz. Numa zona cinza e imprecisa entre estes dois pólos talvez haja alguma verdade. Só que, quando se trata de alguém que tem uma deficiência intelectual, opera-se a magia do congelamento e da negação do desenvolvimento. Na verdade não é magia nenhuma, mas apenas violência e coerção.

Quando eu falo em livros, não estou pensando aqui na literatura ficcional porque acho que sua nuance é outra, mas na literatura científica mesmo. Na literatura que achou de dar ao nome de “idade mental” a um determinado apanhado das capacidades cognitivas das pessoas. A um tracejado numa escala.

Sem dúvida o psicólogo francês Alfred Binet nunca imaginou que sua terminologia fosse resumida cerca de um século depois de sua criação num amontoado de xingamentos. Binet foi o cientista que cunhou os termos “idiota”, “imbecil” e “débil mental” para designar scores de um teste que, noves fora, não é muito melhor que um nametest desses que todos os dias circulam nas redes sociais. É científico na mesma medida em que toda a ciência depende de um comportamento autônomo e imprevisível. Tornar a inteligência previsível e presumível em seu potencial era o seu objetivo, além de determinar o quociente de “educabilidade” de cada pessoa. Seu estudo foi bem mais elaborado que o de Francis Galton, o “pai” da eugenia, mas sem dúvida alicerçou-se nele e nas crenças comuns à época. Em outros lugares do mundo, estes estudos tiveram como objetivo a elaboração e execução de políticas de saúde com base em seleção negativa. Binet não tem culpa nisso, mas lançou bases conceituais e terminológicas que ainda hoje perduram. E isso sim é demonstrativo de certa estagnação.

Muita água rolou desde Binet, mas o legado ficou. E seus termos também, com exceção do “débil” que em meados dos anos 60 os psicólogos e estudiosos da mente conseguiram evoluir para “retardo”. Hoje, usam-se ambos na mesma acepção: como xingamento. Para efeito prático, quase nada mudou e mesmo autores difundidos na atualidade fundamentam-se em modelagem, reprogramação e condicionamento, travestindo de novos conceitos práticas bem conhecidas há décadas, tudo por conquistar uma “mente suficientemente boa” e diminuir o estranhamento social de terceiros, nem que para isso se lance mão de correção plástica.

No meu modo de entender, a psicologia, a psicanálise e a psiquiatria fizeram muito pouco pela deficiência intelectual, quase nada, a não ser a recriação de testes e espaços de clausura e estranhamento, presumivelmente “científicos”. Muito mais fizeram os próprios pais e mães com a ajuda principalmente de uma gama de profissionais e terapeutas via de regra menosprezados. Na minha opinião, trata-se de pessoas que merecem muito mais do que costumam receber de reconhecimento. Mas não são “doutores”, então costumam estar numa escala de importância diminuída. Bem, não no meu conceito. Para mim, são os verdadeiros experts e eu os respeito imensamente.
Toda essa explicação certamente não explica o porquê da epifania da escova de dentes, mas eu fico muito feliz em ter na minha casa a comprovação de que o conceito de “idade mental” é mais uma convenção infeliz da ciência. E isso porque foi banalizado ao extremo e deturpado quando empregado para denominar o comportamento humano.

Eu realmente não entendo qual a dificuldade em assumir que trazemos em nós mesmos todas as idades e que precisamos brincar na mesma medida em que precisamos comer, dormir e tudo o mais. E que estamos sempre sendo seduzidos por imagens e simbolizações com forte apelo infantil. Essa nova interface do Facebook, por exemplo, é autoilustrativa. De mais a mais, não conheço muitos voluntários ao trabalho maçante, muito mais ao ócio recreativo. Exceções há, de quem faça exclusivamente o trabalho que preferiria, mas é uma proporção ridícula.

É muito difícil para qualquer adulto não ter de lidar com a própria criança, suas expectativas, frustrações, birras, traumas, etc. A maior parte do comportamento adulto, aliás, é embrionária da primeira infância – e é provavelmente daí que algumas pessoas se preocupem mais que outras a respeito da importância dos efeitos da virtualidade na infância. E outros se preocupem mais até com a virtualidade do que com o real.. Ao custo de transformar o mundo virtual numa versão digital do pátio do colégio onde estão todos a puxar os cabelos uns dos outros, maldizer, formar guetos, paparicar e maltratar, o que eu vejo são crianças grandes por tudo, e nada disso tem a ver com “idade mental”, mas por escolhas em tese refletidas. Em tese.

Há exatos quatro anos eu escrevi um texto que eu lembro que na época impressionou muita gente. Nele eu comentava, entre outras coisas, que meu filho não tinha noção de que tinha nascido com a síndrome de Down. Isso porque, em primeiro lugar, eu não tinha segurança de “como” e “se” devia explicar isso a ele. Segundo, porque achava que ele não entenderia e nem precisava entender esse conceito clínico. A questão da trissomia do gen 21 e também os efeitos disso na sua vida mental, comportamental, etc. Continuamos na mesma aqui e, por mim, assim permanecerá.

Amigos e pessoas próximas chegaram a tentar me dizer que eu “tinha de”, que era meu dever explicar a ele no que consistiam seus limites e dificuldades cognitivas. E que isso seria benéfico para ele. Eu fico pensando em porquê teria de explicar a ele somente os “dele” mesmo. É um tipo de reforço positivo que me escapa? E os meus limites? E os de todo o mundo? Não é preciso? Não. Não vou mesmo!

Assim como a adolescência que aposenta escovas de dentes de bonequinhos, os próprios bonequinhos e outras infantilidades, o que mesmo vou dizer a ele a esse respeito? De que desista de crescer? Mas o que ele fará então com seu corpo, com sua mente, com a sua imensa energia vital? Querem que, terapeuticamente, eu o detenha no chiqueirinho dos bebês? Isso parece mesmo possível? E outra, quem é que vai combinar com os russos, isto é, com ele mesmo? Negativo. Eu fora.

Convivam os outros com suas dificuldades de assimilação. Eu sempre tive certeza de que minha única função em sua vida não seria melhor do que a de um frentista, e serviria apenas para lhe injetar combustível e dissolver o quanto possível, do para-brisa, a fuligem do mundo, que é imensa e definitivamente não lhe pertence.

Primeiro foram os super heróis guardados numa caixa, e esquecidos. Mais tarde, as músicas de criança, os brinquedos, as roupas, tudo.. Eu já nem me apego mais nisso. Não tenho mais saudade do molequinho.

Como aquele antropoide de Oliver Stone que, em “2001” joga para o alto o fêmur de uma fera, libertando-se da condição animalesca e adentrando no território do homo sapiens, o meu guri tascou longe a escova de dentes do Mickey Mouse e junto dela foi-se o teste de QI. Agora só quer ouvir rock and roll (ele acha que Ed Sheeran e Justin Bieber são roqueiros, mas tudo bem), que não lhe mandem tomar banho e que não encham o saco desnecessariamente com coisas menos importantes. Ele não quer mais saber. E nem eu.

Eu, robô

Tardes de sábado boas mesmo têm de ter o bom e saudável tédio criativo. Esses dias eu vi de um famoso escritor que a pandemia estaria impedindo-o de escrever e ele dizia que precisava caminhar para escrever, então não estava escrevendo mais nada nos últimos tempos. Não é que ele escrevesse caminhando, mas haveria algo no andar à toa que lhe seria fundamental para o pensamento e, lógico, também para a escrita. Eu também acho e gosto muito de andar, principalmente no centro de Porto Alegre. Apesar de que o centro nunca esteve tão depauperado e abandonado, eu gosto, e para mim não há outro lugar em Porto Alegre que me dê tanta vontade de caminhar por caminhar. Sinto falta mesmo.

A pandemia nos roubou a liberdade de caminhar por aí e nos jogou de cabeça no mundo das redes, onde também não há tédio. Não sei como acontecem as antologias da pandemia sem que os escritores possam deambular livremente e o combustível da escrita, o tédio, a sedimentar pensamentos e emoções. Mas há quem consiga e eu fico realmente admirado.

Quando era criança, eu gostava muito de inventar histórias absurdas para os meus amigos. Era uma coisa meio teatral que eu fazia e só me dava por satisfeito quando conseguia convencê-los da minha representação. Não sei em que momento da minha infância me desviei das artes cênicas, mas acho que aquele tédio absoluto das tardes interioranas (e o livre trânsito pelas ruas da Bagé dos anos 70) me compelia a inventar alguma coisa. Qualquer coisa..
Naquelas eras glaciais, a tevê mal pegava e a programação das ruas era bem mais convidativa. Além disso, só na vizinhança havia dezenas de crianças para interagir realmente. E crianças naquela época consistiam um conceito bem mais elástico do que hoje. A adolescência e seus ritos de consumo chegaram por lá mais pro fim dos 80.

Nessa época é que apareceu lá em casa um disco do Kraftwerk, que um dos meus irmãos descobriu não sei de onde. Eu simplesmente surtei com aquilo e andava como um robô pela casa, esticando braços e pernas e endurecendo joelhos, cotovelos e o pescoço que ganhara engrenagens.

Numa tarde daquelas, decidi que um grande amigo e vizinho, crédulo como ele só, ele teria que acreditar que eu realmente me transformara num robô. De cara ele não quis embarcar muito na minha narrativa, mas, pouco a pouco, fui convencendo a ele e saímos pra rua comigo caminhando ainda daquele jeito robótico. Os vizinhos adultos me olhavam com certa desconfiança e como eu não esmorecesse, o meu amigo por fim cedeu – em prantos – quando eu disse que logo à noite um OVNI vinha me buscar a adeus planeta Terra, adeus rua, adeus tudo..

É inacreditável, mas é a mais pura verdade. São todos fatos verídicos, inclusive eu ter me transformado em robô.. 🙂

Brincadeiras à parte, eu até hoje não entendi como esse amigo conseguia acreditar em mim, já que uma vez por semana eu era uma coisa diferente.. Outras vezes fui vampiro, lobisomem e outras coisas improváveis e ele sempre acreditou. Religiosamente. Quando enfim parei de representar, ele também parou de acreditar em mim. Tinha a convicção de que devia ser criança ainda um tempo mais, mas o meu tempo já havia se acabado. E assim foi que nos afastamos. Quando a primeira transformação de verdade aconteceu, mas só para mim..