Muito antes que eu desenvolvesse o inevitável medo dos boletos, eu tive um pânico absoluto da bruxinha Memeia, personagem dos gibis da Luluzinha. É verdade. Pensando bem, até hoje sinto um desconforto estranho com a apenas aparentemente inocente figura destrambelhada da bruxinha. Embora me pareça que ela não represente qualquer espécie de perigo real, por via das dúvidas eu mantenho um remoto respeito pela menininha e sua bata preta. Outro medo indestrutível que eu desenvolvi na infância foi com o Coronel Urko, do Planeta dos Macacos. Ou melhor, todos os filmes antigos e a série do Planeta dos Macacos me inspiravam e inspiram certo desconforto.
Mas o medo é isso mesmo: é como um gatilho ligado diretamente na adrenal que escapa totalmente ao domínio da racionalidade. No mapa cerebral, ele tem endereço fixo no sistema límbico, na porção da massa cinzenta que temos em comum com praticamente todos os animais e, não por outra razão, predomina na instância dos instintos ao lado da sua meio-irmã: a agressividade.
Se no mundo imperasse a lógica e não a estultice, haveria de ter muito mais monumentos aos medrosos que aos temerários. Se fosse por esses últimos, a espécie não teria nem sobrevivido. Ao sair da caverna, nos teríamos jogado diretamente aos tigres de dente de sabre e teríamos acabado ali mesmo, na porta da toca. Precisou um prudente de plantão para alertar aos demais quanto ao risco evidente de enfrentar feras com pedras e galhos de árvore e pensar em estratégia.
Eu não tenho dúvida de que uma das razões principais do sucesso do Covid se deve ao fato de sua invisibilidade e também de uma arrogância do ser humano contemporâneo em situar-se num lugar privilegiado na natureza. Ou seja, um pouco de medo real não faria mal a ninguém, mas essa é justamente a dificuldade no caso da pandemia: não há uma imagem a ser temida e mesmo a figura do vírus, por minúscula, é tratada pela maioria das pessoas como se não existisse.
Quando eu era criança e sentia medo da bruxinha Memeia eu reconhecia um fator de estranheza na personagem, já que ela introduzia uma aparência e comportamento dissonante entre uma enormidade de outras personagens inocentes. Estava ela ali alertando que não há só inocência no mundo e que, ainda mais grave, ela se oculta numa aparente situação de normalidade, como uma espécie de camuflagem. O mesmo com o Planeta dos Macacos, afinal, é muito insólito que os seres humanos possam ser escravizados por animais. Também uma normalidade aparente está acobertando uma situação terrível, assustadora. Não muito diferente da pandemia também.
O que parece é que poucos detectam um padrão que inspire medo e prudência a não ser que se viva de perto ou em si mesmo o aprendizado da doença e da fragilidade da condição humana. Por isso, a ansiedade é como um medo difuso, desorganizado e insuficiente para a autoproteção e se tornou a sensação predominante nesses dias. Existe a consciência de um risco, mas também uma enorme dificuldade em localizá-lo e precisá-lo com clareza.
Por essas e por outras, já que o vírus e seu contágio são invisíveis, o temor que ele inspira nas pessoas é fraco porque sobrenatural, ou seja, não é pelo seu comportamento evidente, mas pelo que se pode imaginar a seu respeito, com as devidas matizes e informações de cada um.
Como se trata de uma população sem noção e temerária, o contágio é descontrolado. Normalmente, as pessoas temerárias não esboçam uma reação de medo ao ver um gráfico, ao contabilizar números, para elas isso é um cenário tranquilo, administrável na sua neurose cotidiana. São as mesmas pessoas que expõe a comunidade ao risco por serem tomadas de um sentimento de invulnerabilidade.
Este mundo (e também o novo normal) é o império do homo demens e essa época o antropoceno que vai se arruinando dia a dia. O Covid, nesse caso, tem muito pouco trabalho e, se pudesse, o que ele faria mesmo é agradecer as facilidades oferecidas. Nunca foi tão fácil colonizar uma espécie que não tem medo e se julga acima da natureza.