Arquivo da categoria: Sem categoria

Não se aconselha a compaixão

Para a Isabel

For every little lie you tell so you can hide
Will grow inside your chest
Your heart will need to rest
So come into my arms

November Ultra

Não se aconselha a compaixão. Isto é o que se deveria dizer em muitos lugares onde ela havia trabalhado. É que as pessoas primeiro olhavam seus braços e pensavam que ela seria um bom guindaste para os velhos que já não levantam mais pelas próprias pernas. Um guindaste humano e de bom coração que, ao tempo em que erguesse pelas axilas alguém sem esperança em sobreviver, sussurraria em seus ouvidos palavras cândidas, inocentes, como se extraídas de uma canção de ninar. Por isso eu digo sem piscar: compaixão ela não tinha. Na verdade, era outra coisa; algo que não entendi por completo, pois também não houve tempo o bastante.

Para quantos não tenham força para viver, deve haver tantos que os ajudem a suportar, a mãe lhe disse ainda uma criança, a única menina entre sete irmãos nascidos em escadinha, ela a mais velha, e que se tornaria responsável pelos demais se a mãe morresse (e ela morreu de droga e bebida, quer dizer, de uma morte quase planejada). Alguém precisa ser o guindaste, a mãe avisou e antes que entendesse outras coisas elementares de uma vida serviu-lhe a lição.

O que a distraiu nestes anos foram os gatos que a mãe havia deixado que se acomodassem em seu pátio. Ela gostava de ficar olhando os animais como se aquilo fosse uma selva particular, um mundo de natureza, ordenado pela natureza e onde, por consequência, apenas aconteciam as coisas que desejava a natureza. Mas um a um os gatos partiram ou morreram e coube a ela enterrá-los junto aos arbustos que foram tomando conta do lugar. Isso tudo uma ordem da natureza, exceto ela, que desde então adquiriu aos olhos dos outros o hábito dos anjos.

“Eu vou comprar comida, algo que você nos prepare para enfrentar o frio. Não demoro…”, o pai disse na última vez em que o viu. Mais tarde, atrás dele foram os três filhos mais velhos, numa tentativa de reencontro que ela nunca soube se malfadada ou bem sucedida. Às vezes, ela estava encostada na porta da enfermaria, fumando, e me parecia que imaginava ainda que os quatros se encontraram, é claro, e agora vivem da pesca numa cidade portuária e nem é preciso que retornem, mas, se um dia retornarem, ela terá arranjado algo do que comeriam todos, como deve ser numa família.

Nos olhos dos seus irmãos nunca houve gratidão e nem ela esperou por isso. “Vive-se”, é o que ela dizia quando os vizinhos indagavam se precisava de algo e ela recusava, dizendo que com o seu trabalho eles tinham o suficiente.

Eu sinto tristeza que nas cidades, todas elas, nunca tenha um monumento a criaturas assim. Imagino que ela recusaria como recusou um pedido de noivado de um sujeito que disse por ela estar apaixonado, mas ela não o entendeu, não entendeu do que se tratava. Menos mal que uma prima entendeu as tentativas dele, subsequentes as que lhe dedicara. E ela entendeu ainda mais porque, de fato, não havia nada disso de paixão. Sabe-se lá o que havia..

Hoje desde cedo me pareceu que seria um dia estranho. Avisaram que ela não viria almoçar conosco, no refeitório. Foi deslocada para outro andar, outro setor, eu imagino. Não quero saber. Para onde ela tiver ido estará um lugar melhor, isso é que é. Haverá risos de histórias angelicais, sem qualquer maldade ou frivolidade, canções cantadas sem pronúncia, em boca chiusa, e seus músculos trabalhando como a mãe ensinou-a a fazer. Haverá alguém sendo ajudado ou então não haverá realmente mais nada. Em dezembro costumam dar folga aos funcionários, é isso que deve ser. A maldita está de folga e eu aqui, sem quem me conte o desfecho de uma história qualquer, dessas que rolam pelos telefones e eu tenho preguiça de ler até ao final. Irá comer os caramelos todos sozinha, não guardará ao menos um para mim. E é assim mesmo que deve ser. Não se aconselha a compaixão.

Santa Marta em Tarascón

Hoje é dia de Santa Marta de Betânia, irmã de Lázaro e Maria Madalena, que ressuscitou um homem afogado como se fosse um deus e enfrentou com um frasco de água benta uma fera descrita como “um dragão metade animal, metade peixe, mais gordo que um boi, mais comprido que um cavalo, com dentes cortantes como espada e pontiagudos como cornos, munido de cada lado por dois escudos”, gerado pela “união do Leviatã com o Onachus”.

Essa santa prodigiosa teria sido a mártir que converteu os primeiros francos ao cristianismo, numa região também governada pelos romanos no século primeiro depois de Cristo, a quem ela hospedou.

O dragão de Tarrasque é uma besta medonha pela descrição que é feita nas lendas medievais. Ao invés de cuspir fogo como um dragão ordinário, ele inflama tudo com os seus excrementos que são como bolas de fogo que arremessa longíssimo. Vivia a fera num covil próximo à floresta escura onde hoje é a comuna de Tarascón, devorando todos aqueles que ousassem invadir a mata densa.

Marta jogou umas gotas de água benta no monstro e mostrou-lhe um crucifixo. Foi o bastante para o monstro deixar-se aprisionar pela cinta das vestes da santa e por ela foi levado ao vilarejo, onde foi espancado até a morte pelos aldeões.

Após este feito, a mirófora Marta, que teria sido também oradora admirável, foi ganhando a fé de todos ao redor e naquela terra de crendices ergueu uma basílica em homenagem à mãe de Jesus, a virgem Maria.

Desde a época medieval ocorre na região uma procissão a que se consagrou em 2008 o estatuto de Patrimônio Cultural da Humanidade. Na procissão, repete-se a chegada de Marta e o dragão carregado pelo cinto sendo atacado pela população. Na Espanha e na Bélgica, a procissão costuma acontecer junto à celebração de Corpus Christi.

Santa Marta é a padroeira dos cozinheiros e em algumas representações ela aparece enfrentando o dragão com uma concha de madeira ou colher de pau.

Existem muitas interpretações do encontro das duas criaturas, mas eu não vou tão longe. Melhor deixar essas coisas para quem estuda. O máximo que fiz foi escrever uns versos. Mas não para a santa, para a vilipendiada besta..

As aspas são da Legenda Áurea, de Jacopo de Varazze.


Santa Marta em Tarascon
2017

Eu levo quem vem e vai
ao fundo de todas as águas.
Sou o último à passagem
entre a natureza e a cidade,
para matar-me não basta coragem.

É preciso ser como ela.
Vencer todos os medos,
ter o milagre aos dedos.
ferrões de todas as abelhas,
grilhões de tecido e seda.

A julgar por minha aparência,
o solaço da primavera
neste ano chegará mais tarde,
como um exército de covardes
trepida ante minha couraça.

Há muitos tipos de morte
que eu tenho a oferecer.
Depois de ser trucidado
ninguém haverá de invocar-me
como a Lázaro, o ressuscitado.

Abaixo do som das palavras,
a minha voz somente ameaça
os tolos, os fúteis e os vis.
As bestas eu deixo que passem
pois elas são seres sutis.

Engulo-os pelos pés e das mãos,
seus medos, anseios, fedores.
Não lhes basta o próprio espelho
pois poucos sobreviveriam
em face dos próprios horrores.

Qual o teu nome monstro?
Ela indagou olhando meus olhos.
Nenhum, eu disse, ou jamais
e ela de pronto entendeu
desfazer dos meus ancestrais.

Pior que a própria Medusa,
ela ergueu sua mão para o alto
e numa língua confusa
entornou o silêncio dos jarros
até retirar-me do lodo.

Iludiu-me com vinho e promessas,
levou-me a um redemoinho.
Febril, pedi-lhe compressas
e ela, falando baixinho, disse-me:
monstro, como és mansinho..

Leva-me, que a vida me farta
e não posso ser compreendido.
Serei o exemplo perfeito
do que deve ser combatido;
e à morte levou-me indefeso.

O povo saudou com festa e pranto
a sua salvadora. Santa Marta
do meu sangue livrou-se,
mas eu, de sua memória,
nem tanto…

Epílogo

Não são muitos a essa hora na rua, ainda mais que maio já exulta um frio que emerge das superfícies, por tudo… Brota das gretas e das rachaduras da tinta uma espécie de suor. Os tijolos suam do tanto que fazem em suportar as vidas em seu interior. Aqui onde estou não há ninguém, mas alguém ainda mantém um fogo aceso. Sinto o ardido da lenha verde queimando e exalando o perfume de uma lareira ou um fogão a lenha aceso já por um desses velhos madrugadores. Mas, na rua, ninguém. A cerração é uma nuvem que desistiu de voar, a mãe disse um dia, e a essa hora há como uma fusão das duas neblinas, a da noite e a do dia. O Fernando não está aqui como disse que estaria e em lugar nem um me parece haver alguém conhecido a quem possa mostrar o recorte de jornal que trago no bolso traseiro da calça jeans. Uma folha do Correio do Sul dobrada em oito ou doze partes, uma imagem borrada ali dentro, a face imberbe de um Alexandre como eu o conheci. Não pode ser a mesma pessoa, eu penso. E por isso preciso tirar a limpo essa informação com alguém. Morreu mesmo? Mas isso é verdade? Quando foi? Alguém foi a esse velório? Era ele mesmo? E se ele botou alguém no lugar dele? Um cupincha que se prestasse… E se ele fez isso para fugir ao Uruguai, Bolívia, o raio que o parta? Quem é que numa hora dessas pode andar por essa maldita cidade e me dar certeza? “Morreu, sim”, quem vai me dizer? Viu a certidão de óbito? Doente de quê? Morto por quem? Pensa bem, tu estás falando do Alexandre e ele tem tantas vidas como um gato, um gato vadio que ninguém segura ou aprisiona. O Alexandre, eu quero dizer, é ladino e felino, o filho-da-mãe, e só vocês mesmo, que são burros, acreditam nas lorotas dele. Eu sei bem que ele está solto a essa hora. Aonde? Que sei eu? Na zona, num boteco fuleiro, na cama do prefeito, o Alexandre ele pode estar onde ele bem entender e é por isso que eu vim aqui, que de outro modo não viria. Não tenho interesse nesse lugar depois da morte do pai e de que consegui finalmente levar a mãe comigo. Vim porque me deram a certeza de que era verdade, mas eu não acredito em ninguém que ainda viva aqui. Este lugar sempre foi um poço de mentiras, meias verdades, um precipício de ilusões dementes. Ali adiante, onde morei, a mesma casa. Se olho ao sul, só o vento de sempre, anavalhando o que encontra pela frente. Pela noite, ruínas de memórias revestem a cidade que parece a mesma, mas não há mais ninguém aqui se ele morreu. É um lugar propício onde morrer de tanta paz, de tanto tédio, de tanto nada para fazer. Eu vim buscar quem me confirme da morte desse traste humano e nem o Fernando, que gostava de mim, consegue estar ainda aqui, ele que resistiu mais que todos nós. Escorado nessa mesma parede, ele fumava lentamente e olhava adiante como se pudesse tocar outro destino com os olhos. E raspava as palmas das mãos como se fosse dizer algo surpreendente, mas só se queixava do frio. “Que frio é esse?”, indagava num discurso pró-forma, sem esperar resposta, sem esperar nada. Ao lado dele, não me intimidava o Alexandre, porque nesse caso ele é quem se intimidava. Nem ao menos o Fernando aqui, claro que não… Ninguém que parecesse conhecido, somente a figura de um Alexandre pálido no bolso das calças. E nem ele poderia me salvar mais de estar aqui, porque nunca me deixaria escapar, pegar a estrada de volta e fugir. Espero que venha de uma vez o dia antes que a noite me deixe também sem alma.

Versos humildes

Só não vê quem não quer e há que nunca quererá ver, mas os traços da personalidade de um poeta estão expressos na sua poesia. E pode parecer incrível, mas estão mais expressos na forma do que no conteúdo. O conteúdo é um grande disfarce, é o fingimento. A forma é que revela a expressão do poeta. Claro que não estou pensando na forma métrica, frasal, etc. Estou dizendo da forma como o poeta se dirige ao poema para que ele se anime, como um banana de dinamite é acendida quase parecendo ser uma coisa autônoma. Mas é claro que não é. A mão do poeta está ali, quase oculta. É ela que acende o pavio que conduz a chama pelo caminho da explosão. Mas há também muitos poemas que não explodem. Na verdade, deve haver em algum lugar um depósito de poemas que falharam no seu objetivo de dinamitar as defesas dos leitores. Dos que explodem, nós inevitavelmente passamos a saber alguma coisa das pessoas. São cifras que a nossa intuição decodifica. A forma nos diz da humildade ou da prepotência. Nada mais estranho que um poeta prepotente, que não esquece uma chave pelo chão, que está do outro lado do muro ou diante do espelho num ensaio eterno para consigo mesmo. Estranho e comum, infelizmente. Incomum mesmo é o poeta de versos humildes. Humildes, não pobres. Humildes no sentido do receio de abordar o leitor. Humildes, as pessoas são ou não são. E ninguém pode escolher entre ser ou não ser. Humildes como o inocente que sobe ao cadafalso porque não saberia mentir nem para salvar a própria cabeça. O tempo não me ensinou a ler poesia, mas me ensinou a ler os poetas. Mas com os poetas humildes se deve ter muito cuidado, muito mais do que com os prepotentes. Eles podem sem mais nem menos colocar, num desatino, a sua vida em nossas mãos. O que se pode fazer com criaturas assim? Eu não sei.. Admirar, simplesmente, como se faz a um estranho cometa. E nunca, nem pensar em tentar dependurá-las de volta ao céu de onde vieram. Elas não estão mais lá. Nunca mais estarão. Ou você viu ou não viu. E não se aponta com o dedo, jamais, a um poeta ou a uma estrela. É um convencimento que cada um faz a si mesmo, como os astrólogos que interpretam estrelas e montam absurdas constelações aos olhos incrédulos do céu. 

Necessidade de escrever

Todo o mundo já ouviu alguma vez daquela pessoa que escreve “por necessidade” (já disseram isso a meu respeito, inclusive). O que se quer dizer com isso para mim é uma coisa meio insondável. De que necessidade estamos falando? Editorial? Comunicativa? Confessional? Financeira? Uma só necessidade? Duas? Muitas?

Não há como saber. Porém de alguma forma que também não compreendo completamente, me parece simples distinguir um texto literário escrito “por necessidade” daqueles escritos por outros impulsos. Não leva muito tempo. Na ficção, até ao final da segunda página isso se esclarece por conta própria. Na poesia, me parece que ainda no primeiro fôlego, custe isso um verso, uma estrofe ou o poema inteiro. Há poemas (raros) que se vê que foram escritos sem respirar. Ou pelo menos parece que se vê.

O instrumental é simples e totalmente intuitivo, já que as ferramentas disponíveis ao exame do escrito são sempre superficiais e os escritores são artificiosos ao extremo no sentido de criar jogos de espelhos nos quais tanto mostram-se como ocultam-se ou deliberadamente disfarçam-se. Às vezes, kafkianamente, fazem tudo isso ao mesmo tempo. De qualquer modo, parece haver para cada pessoa leitora uma chave para além das chaves. A chave mestra, a chave micha com que cada qual invade o literário para reconhecer o humano da criatura.

É um segredo para além do lacre. Não fosse isso viável ou desejável, desnecessária seria toda a atividade literária. Bastariam o texto dissertativo e o informativo, mas mesmo o mais lúcido texto analítico nos pesa como um rochedo – e o inacreditável para mim é que muitos escritores de literatura (e até de poesia) parecem também aspirar a essa condição, de que seu texto se consolide e seja o mais direto possível, indubitável, recitativo.

Isso me parece ser mais ou menos como a abolição do mistério da poesia: a escrita sem necessidade. É como se fosse uma arte tomada dos bagaços depois que o fruto morreu.

No frigir dos ovos, nem uma emoção estética se repete. Garantias? Nem uma. O que a alguém parece genial a outro parece apenas insuportável. E tematicamente há quem se comova mais com a poesia amorosa, outros com a ideia de Deus, com a natureza, a vida urbana, etc etc etc.

Mesmo assim, o que me parece é que a emoção estética individual seja mero prolongamento de expectativas prévias, coincidente com crenças, ideologias, etc. E que rejeitamos a diferença também numa atitude instintiva e irracional. Antipatia? A outra face da simpatia.

Mas em todas as entrevistas com escritores que já li, nunca encontrei uma em que fosse indagado à pessoa a razão pela qual ela faz o que faz. Parece implícita a necessidade, curiosamente expressa numa desnecessidade.

Mesmo assim, a única vantagem aparente, ou diferenciação, da arte produzida sob o império da necessidade é que ela entrega mais nitidamente do autor do que, por exemplo, um complexo de racionalizações. E se há uma curiosidade superior no ser humano é a de reconhecer no outro a sua semelhança. Há quem desista das pessoas nesse intento e dirija-se a Deus (ou a ninguém), mas, ao contrário da religião, que isola e serializa as pessoas, a literatura é um poderoso artifício de conexão. Basta ver o quanto e como se reúnem os escritores em torno aos seus interesses comuns. Também isso parece ser uma espécie de necessidade. Todos procuram mais ou menos declaradamente aqueles que compartilham seus códigos, valores, repertório, etc.

Mas a necessidade que move escritores é também objetiva, não apenas um desejo de transbordo expressivo. Tornar a pessoa e o self compreensíveis me parece ser uma grande força mobilizadora. Isso é que diz Hannah Arendt em ‘A condição humana’, entre muitas outras coisas. Ela, que dizia pensar melhor por escrito, prova talvez de que a elaboração verbal escrita seja mesmo um dos pontos mais altos da inteligência, pensava também que os sentimentos humanos não sejam narráveis. Essencialmente, ninguém pode compreender tudo o que há e se passa com o outro. Pode compartilhar. E pode também não compartilhar.

Essa talvez seja a razão pela qual escritores usem bastante as redes sociais. Como se pudessem encontrar eco nesse vale tomado de gente, já que o declínio da leitura em livros é meio que evidente (e até certo ponto uma experiência incomunicável). E até escrever – por alguma necessidade – coisas que pareçam desnecessárias e justamente a respeito da própria necessidade.

Desentendimentos porto-alegrenses

Não sei se com todo o mundo é assim, mas eu vivo com a cidade onde vivo uma espécie de relação parental. Não é como habitasse um logradouro, mas um cômodo da sua casa. Ou como se ela fosse um corpo gigante e eu vivesse em um de seus órgãos, porque, afinal, respiro dentro dela, as suas umidades, e quando abro as portas e janelas da minha casa dou de cara invariavelmente com as sujidades que a noite deposita no que seriam, talvez alucinadamente, as suas veias e artérias.

Como relação parental, temos bons e maus momentos, eu e a cidade. Nunca compusemos a imagem idealizada da família margarina e, felizmente, tampouco chegamos à disfuncionalidade tolstoiana. Tentamos manter um respeito insubmisso, talvez herança que eu traga da minha educação fronteiriça.

Se me revolto, a ela eu reservo o mesmíssimo direito. E ela me fustiga, me fustigou duramente nesse maio último, e a todos que estamos aqui. Sim, porque não foi a natureza mortífera em revolta que nos sacrificou, eu acho, mas a própria cidade que imaginamos algo maior do que ela efetivamente era, como a imagem distorcida que um filho tem de um pai ou de uma mãe.

Essa desproporção, essa distorção que em mim cria o mesmo sentimento de um adolescente que não se conforma em “parecer”, em “fingir” para o que “os outros poderão pensar”, mas que, sem saber ou poder dar um desfecho para a revolta que se estabelece, acaba incorrendo num sofrimento administrado a duras penas. Não sempre amargo, isso não, mas com muitos silenciamentos, para que não se rompam as suturas de soluções tão precárias como as que lhe sabemos ter provido. Com alguma desatenção também..

Como um corpo humano, a cidade também sangra. E, nesse transbordo violento, desconhece qualquer limite. Avança com a mesma força contra os museus, shoppings centers, livrarias, edifícios e os mais humildes endereços. É a sua inclemência cega que nos apavora, como se ela acordasse numa manhã como uma espécie de touro louco solto na praça.

Mesmo nesses dias, vejo com os olhos marejados o esforço daqueles que independentemente de qualquer coisa, digo, qualquer coisa mesmo, prestam socorro a quem quer que seja, digo a quem quer que seja mesmo. São pessoas agregadoras, cujo esforço é digno reconhecer e agradecer, sem olhar a nada além do que apenas isso. Talvez sejam os braços mais fortes da cidade, ou talvez nem tenham esse poder se comparados a outros, mas nessa calamidade revelaram-se assim. Ou se forem os filhos melhor nutridos da cidade, pode ser que sim (não tenho nem farei esse levantamento), nesse caso é justo que sejam os primeiros a arregaçar as mangas, não haveria de ser os combalidos, os alagados. Seja como for, é bom para a cidade que possam fazer e façam.

No ano passado, não, não foi no ano passado, foi neste ano, ali em vésperas da entrega do Prêmio Açorianos (parece que já fazem milênios), e estive ao ponto de ter de pensar em um fala de agradecimento caso ganhasse aquele prêmio tão porto-alegrense, me ocorreu uma imagem ao mesmo tempo familiar (e complicada), de que a premiação me servisse de uma certidão de nascimento tardia. Uma adoção, nesse caso. Não foi o caso, não aconteceu e então não precisei declarar em público o meu estado de filiação para com a cidade. Mas nem por isso vivo a sensação do “enjeitado”, não mesmo. Estou aqui por opção e gosto de manter comigo os ditados interioranos, no seu pragmatismo, com os quais eu fui criado. Nada disso de “virar o cocho” ou “cuspir no prato” me agrada. Todavia a falta do documento comprobatório me devolve, às vezes, em secreto, a ambição juvenil de abandoná-la para sempre. E eis que de um momento de caos completo, a velha cidade, não exatamente a que eu conheci na adolescência real ou a de agora, parece que ouço-a suplicar silenciosamente, como costumam fazer os velhos e orgulhosos gaúchos…

Quem não está aqui, por certo não pode ouvi-la bem nem imagino que poderiam entendê-la, mas eu, não sei por que razão, julgo que posso. E que preciso prestar-lhe pelo menos atenção. O seu canto ainda é fraco, morrente, está já nos que não estão mais aqui (não estão?), nos lugares que sobrevivem às construções que a tentam falsificar, como as de um antigo calçamento ou nas vielas do Centro abandonado por áreas mais nobres.

Quando ando ali, ela me esclarece (não eu) que é inacreditável que sobreviva mais do que foi feito em 1935 do que o realizado ontem. Ou ainda antes. Essa memória que nos sonambuliza, como se apenas em sonhos nos fosse permitido transitá-la na forma que merecia, sem penduricalhos horríveis que foram pendurando em sua face, “rótula das cuias”, um shopping ao lado do outro, uma estatuária medonhenta, nem falo dos ex-cinemas.. Uma desfiguração que a cidade aceita porque incapaz de reagir, nos seus 252 anos. Uma idosa com mais parentesco em Montevideo ou Buenos Aires do que em Abu Dhabi, embora os arquitetos que agora se dão ao trabalho de imaginá-la não percebam a sua incompleição com o faraônico. Ela, uma senhora modesta por necessidade, nem sempre se dá muito bem com as novas gerações de gente que nasce ou vem dar aqui.

Se às vezes me revolto contra a cidade, eu espero que ela entenda como uma prova de um amor, mesmo que um amor às avessas. É um desgaste de 30 anos de relação. Acho que até um pouco mais que isso dura já essa “união”. Às vezes, sinto vontade de sumir desse mapa que a água tomou sem mais cerimônias. E sinto também a culpa por esse desejo. Brigamos sem nos ferir demasiadamente. Não suportaríamos. E nesses bancos geminados, jogados ao esquecimento, (por que o que parece esquecido e jogado por aí sempre nos comunica mais que o anunciado com pompa, alguém pode me explicar?), sei que voltarei a me entender com a cidade, ainda que os termos com que faremos não estejam plenamente claros.

Em breve, a inundação se tornará lenda. E o inverno, espero, não há de ser tão rigoroso. Saio com um casaco que agora me estorva as mãos, afinal, é outono.. As meias dos pés estão suadas de caminhar. Convém que eu não demore muito mais e volte para casa antes que anoiteça.


𝗜𝗺𝗮𝗴𝗲𝗺: bancos originais do Auditório Araújo Vianna (1927), atualmente no Parque da Redenção. A foto é minha, de 2024 ou 2023..

Um inédito Aureliano de Figueiredo Pinto

Artigo publicado na 10ª ed. da Revista Sepé

Possivelmente não exista na poesia rio-grandense livro tão inédito quanto foi Itinerário – poemas de cada instante (1998), de Aureliano de Figueiredo Pinto.

Aureliano não apenas não o publicou em vida como tratou de garantir que o caderno de manuscritos não fosse conhecido até que ele mesmo e sua esposa não vivessem mais. Mesmo assim, ainda levou cerca de 40 anos mais (Aureliano morreu em 1959) para que o filho entregasse os originais para publicação, aos cuidados do Prof. Carlos Jorge Appel, da editora Movimento.

Na página frontal do manuscrito, uma misteriosa dedicatória rasurada indicando a quem o livro seria dedicado, mas cujo conhecimento parece ter ficado mesmo restrito à família. 

Se a informação perdeu-se ou se desvaneceu no tempo, o mesmo não se pode dizer dos poemas do livro. Ainda assim, ao contrário dos outros livros de Aureliano, até hoje Itinerários não teve público para uma segunda edição. Isso talvez se explique um pouco pela temática rural dos outros livros que, no Rio Grande do Sul, até há bem pouco significava a garantia de um bom público leitor. Os versos de Romances de Estância e Querência (1959) e do póstumo Armorial de Estância (1963) foram popularizados por diversos cantores e folcloristas, especialmente nas gravações de Noel Guarany, em 1978, no bojo do movimento nativista, fortemente inspirado, aliás, em sua poética.

Romances de Estância e Querência foi o único dos livros que Aureliano chegou a ver editado; saiu pela Globo e o filho levou até São Paulo, onde ele buscava recursos e tratamento, os primeiros exemplares para que o pai conhecesse. Memórias do Coronel Falcão é póstumo (teria sido escrito no final da década de 30) e foi publicado em 1973. Acabou sendo reunido aos demais romances realistas de 30 publicados à época em que foram escritos, como Sem Rumo de Cyro Martins, Xarqueada de Pedro Wayne e Fronteira agreste, de Ivan Pedro de Martins.

Quando publicado na década de 90, não se imaginava que o médico e intelectual discreto que Aureliano foi tivesse produzido versos daquele qualidade lírica e intensidade erótica. Primeiro, seria de pensar que, caso houvesse material inédito, seriam poemas que continuassem a temática dos seus dois outros livros anteriores, com motivos rurais. Segundo, a guinada lírica um tanto quebra em pedaços o estereótipo de que um poeta que tenha se celebrizado pela “cor local” não possa alcançar os temais universais, como o amor, o erotismo, reflexões existenciais quanto à vida e finitude humanas.

Como em vida Aureliano não esteve em busca de publicação ou reconhecimento e sua obra seja praticamente toda póstuma, a crítica literária o alcançou tardia e parcamente. Basta dizer que as duas mais extensas apreciações publicadas ainda são as mesmas dos anos 80, quando o falecido escritor Luiz Sérgio Metz realizou e publicou para a coleção Esses Gaúchos, da editora Tchê um livreto dedicado a ele, em 1986, e a professora Helena Tornquist produziu para a coleção Letras Rio-Grandenses, do Instituto Estadual do Livro, um caderno especial, em 1989. Ambos os trabalhos têm o mesmo titulo: Aureliano de Figueiredo Pinto.

Apesar disso, nos também já anosos volumes da história literária do Rio Grande do Sul seu nome comparece muito mais associado à poesia regionalista. A despeito de ter uma “realização grande”, conforme o assinalado por Luís Augusto Fischer, os poemas líricos de Itinerário não contam nos mais difundidos livros de história literária com uma apreciação correspondente, bastando que se o situe entre o simbolismo ainda muito praticado no Rio Grande do Sul dos anos 30 e as inovações formais modernistas que ele aproveitou mais, curiosamente, na poesia de inspiração rural.

Como Itinerário vem a público no final da década de 90 e tais trabalhos são praticamente da mesma época, essa parte de sua obra permanece mal reportada. No tocante à sua lírica, Aureliano se arroja em conteúdo ao mesmo tempo que se contém nas formas mais tradicionais da poesia simbolista e neo-parnasiana. Um dos mais extensos artigos produzidos a respeito da literatura de Aureliano, publicado em 1974 pelo Prof. Guilhermino Cesar, por exemplo, ignora a existência dos poemas de Itinerário. No artigo, Guilhermino reconhece o caráter reservado do poeta e lamenta que não tivesse até então se registrado em sua obra “uma descida mais vertical à paixão do homem”.

Os versos a seguir demonstram bem que o poeta, afinal, cumpriu o desejo de Guilhermino, porém de forma inédita, sem que o mesmo pudesse sabê-lo:

XI

A água que eu bebo tem o gosto do teu beijo;
a manhã lembra a luz pagã do teu sorriso.
Sugere a névoa o vago olhar, longe, impreciso,
de quando aplacas, fina e langue, o teu desejo.

A asa que passa, no céu alto, em vôo andejo,
lembra o teu gesto arisco em sutil sobreaviso.
E, na árvore alta e fina, e na flor do paraíso, :
tendo-te toda em mim, sempre em tudo te vejo.

Bruna e pálida, alta e trêmula, os cabelos
cheios da escuridão das noites em que amamos!
— Sinto-te no meu sangue em tumultos e apelos.

Em tua leve silhueta o mundo se resume.
E quando, sem encontrar-nos, nos buscamos,
ruge em minha alma em sombra a alma do teu perfume.

Em que pese sua aparição apagadiça, a obra de Aureliano vem sendo estudada mais ou menos diretamente. Em sua maior parte, seu nome é citado co-lateralmente em trabalhos que problematizam o romance de 30. Por ele referir-se mesmo em sua lírica a elementos de sua vivência em remissivas geográficas (como ao “vento pampeiro”) parte dos poucos trabalhos dedicados a ele notam em sua lírica póstuma a marca indelével do regionalismo, como uma chaga fosse, como se isso anulasse o alcance universal de sua visada lírica, a meu ver uma apreciação contaminada de preconceitos.

Embora nos anos em que estudou Medicina em Porto Alegre tenha tido um convívio próximo aos escritores que viveram o fervor modernista rio-grandense, nos cafés do centro e em torno da Livraria do Globo, Aureliano logo que pode retornou à Tupanciretã e lá estabeleceu-se como clínico-geral, interrompendo as publicações que fez por meio de periódicos como a Revista Kodak, que circulou entre os anos de 1912-1920.

Paradigma de um autor verdadeiramente reservado, Aureliano de Figueiredo Pinto por muito pouco não passou completamente despercebido pelas gerações suas posteriores. No caso, ele teve um dos filhos que se preocupou em não deixá-lo cair no oblívio completo e a sorte de um editor preocupado em recuperar e conservar a memória literária do Rio Grande do Sul sem qualquer preconceito temático, linguístico ou de procedência.

Charruas e minuanos em Bagé

Lá em Bagé, minha cidade natal, todos aprendem cedo que o lugar onde o Minuano sopra mais forte é na frente do Charrua.

O Charrua em questão é o hotel que por duas décadas foi o mais sofisticado da cidade, empreendimento do grupo Ypiranga que foi vendido em meados da década de 80 para um empresário local que grafou o seu próprio nome no hotel e retirou da fachada o cavaleiro indígena que o simbolizava e se podia ver à distância.

Já Minuano é o nome do vento que sopra de sudoeste, normalmente acompanhando as massas polares e é o vento mais frio que sopra em território brasileiro. Logo após a entrada de uma frente fria, o Minuano enregelante sopra forte sob as colunas do hotel, vindo de Aceguá, e há que ter força nas pernas para manter-se em pé ao cruzar por ali.

Fora essas duas menções, que eu me lembre, Bagé não guarda nenhuma referência histórica pública dos povos originários, nem um topônimo e nem nome de rua. Sequer o nome da cidade foi perdoado, assim como a memória de um certo curandeiro que teria por lá vivido à época dos primeiros acampamentos, e que até motivo de chacota se tornou na intelectualidade rio-grandense dos anos 50.

Ibajé teria sido o seu nome e, por essa razão, o nome da cidade guardava a grafia dos vocábulos indígenas, com a letra “J”. Ao longo do tempo, instituiu-se o Bagé com “G”, desfigurou-se a lenda e se chegou ao ponto de derivar o nome a um remoto vilarejo português, desvinculando-se de suas possíveis conotações indígenas.

Dos povos originários, a cidade vizinha do forte de Santa Tecla e da redução de Santo André dos Guenoas hoje não conta mais nem com a estampa na fachada do hotel. No município, vive hoje um assentamento kaingang que passa por muitas dificuldades, necessitando nesse inverno de alimentos, agasalhos e cobertores.

5 canções de Nick Drake

Nicholas Rodney Drake (19 de junho de 1948 – 25 de novembro de 1974) foi um cantor e compositor inglês conhecido por suas canções baseadas em violão . Ele não encontrou um grande público durante sua vida, mas seu trabalho gradualmente alcançou maior notoriedade e reconhecimento. Drake estudou na Universidade de Cambridge e lançou seu primeiro álbum, Five Leaves Left , em 1969. Depois, gravou mais dois álbuns – Bryter Layter (1971) e Pink Moon (1972). Nenhum dos dois vendeu mais de 5.000 cópias no lançamento inicial. Não há imagens de vídeo conhecidas do Drake adulto; ele só foi capturado em fotos estáticas e em filmagens caseiras de sua infância. Drake tratava-se de deprssão, o que é refletido em suas letras. Após a conclusão de seu terceiro álbum, Pink Moon de 1972 , ele se retirou das apresentações ao vivo e das gravações, retirando-se para a casa de seus pais na zona rural de Warwickshire . Em 25 de novembro de 1974, Drake morreu de overdose de um antidepressivo prescrito, aos 26 anos. Se sua morte foi um acidente ou suicídio não foi resolvido (com informações da Wikipedia).

Um lugar para ficar

Quando eu era jovem, ainda mais do que agora
Nunca vi a verdade pendurada na porta
E agora estou mais velho, vejo isso em meu rosto
E agora preciso levantar, limpar este lugar

Eu era fresco, mais que os montes
Onde as flores crescem e o sol ainda brilha
Agora estou mais escuro que o mar mais profundo
Então apenas me aceite, me dê um lugar para ficar

E eu era forte, forte como o sol
E pensei que o veria quando o dia acabasse
Agora estou mais fraco que o azul mais pálido
Oh, tão fraco nessa espera por você

A place to be

When I was young, younger than before
I never saw the truth hanging from the door
And now I’m older, see it face to face
And now I’m older, gotta get up, clean the place

And I was green, greener than the hill
Where flowers grow and the sun shone still
Now I’m darker than the deepest sea
Just hand me down, give me a place to be

And I was strong, strong in the sun
I thought I’d see when day was done
Now I’m weaker than the palest blue
Oh, so weak in this need for you


Roupas de areia

Quem te vestiu com estas roupas de areia?
Quem te levou para tão longe da minha terra?
Quem disse que minhas palavras estavam erradas?
E quem dirá que fiquei muito tempo?

Roupas de areia cobriram seu rosto
Mudaram você, tomando o meu lugar
Então vá em frente, siga até o mar
Algo levou você tão longe de mim.

Voltaram a valer a pena as cores do céu?
Para ver a terra, usa os olhos pintados?
Para olhar através das vidraças sombreadas?
Ver as manchas da grama no inverno?

Agora você pode voltar para o lugar que partiu?
Tente queimar o seu novo nome
Ou com colheres de prata e luz colorida
Você cultuará as luas, nas noites de inverno?

Roupas de areia cobriram seu rosto
Mudaram você, tomando o meu lugar
Então vá em frente, siga até o mar
Algo levou você tão longe de mim.

Clothes of sand

Who has dressed you in strange clothes of sand?
Who has taken you far from my land?
Who has said that my sayings were wrong?
And who will say that I stayed much too long?

Clothes of sand have covered your face
Given you meaning, taken my place
Some make your way on down to sea
Something has taken you so far from me

Does it now seem worth all the color of skies?
To see the earth through painted eyes
To look through panes of shaded glass
See the stains of winter’s grass

Can you now return to from where you came?
Try to burn your changing name
Or with silver spoons and colored light
Will you worship moons in winter’s night?

Clothes of sand have covered your face
Given you meaning taken my place
So make your way on down to the sea
Something has taken you so far from me


O cão de olhos negros

Um cão de olhos negros, ele chamou na minha porta
O cão de olhos negros, ele pediu por mais
Um cão de olhos negros, ele sabia meu nome
Um cão de olhos negros, ele sabia meu nome

Um cão de olhos negros

Eu estou ficando velho e quero ir pra casa
Eu estou ficando velho e não quero saber
Eu estou ficando velho e quero ir pra casa

Um cão de olhos negros chamou na minha porta
Um cão de olhos negros me pediu por mais

Black eyed dog

Black eyed dog he called at my door
The black eyed dog he called for more
A black eyed dog he knew my name
A black eyed dog he knew my name
A black eyed dog
A black eyed dog
I’m growing old and I wanna go home, I’m growing old and I dont wanna know
I’m growing old and I wanna go home
Black eyed dog he called at my door
The black eyed dog he called for more


Sábado de sol

O sol de sábado veio cedo nessa manhã
Num céu tão claro e azul
O sol de sábado veio sem avisar
Então ninguém sabia o que fazer
O sol de sábado trouxe pessoas e rostos
Que não pareciam em seus melhores dias
Mas quando me lembro daquelas pessoas e lugares
Eles eram realmente muito bons no que faziam
Do jeito deles
Hoje o sol de sábado não veio me ver

Pense em histórias com razão de ser
E rimas circulando em sua mente
E pense nas pessoas em seu próprio tempo
Voltando de novo e de novo
E de novo
E de novo
Mas o sol de sábado virou a chuva do domingo

Saturday Sun

Saturday sun came early one morning
In a sky so clear and blue
Saturday sun came without warning
So no-one knew what to do
Saturday sun brought people and faces
That didn’t seem much in their day
But when I remembered those people and places
They were really too good in their way
In their way
In their way
Saturday sun won’t come and see me today

Think about stories with reason and rhyme
Circling through your brain
And think about people in their season and time
Returning again and again
And again
And again
but Saturday sun has turned to Sunday’s rain


O homem do rio

Betty veio por sua conta
Disse que tinha algo para dizer
Sobre as coisas hoje
E as folhas no chão.

Disse que não soube das novidades,
Não teve tempo para escolher
Uma maneira de perder,
Mas ela acredita.

Eu vou ver o homem do rio
E lhe direi tudo o que posso
Sobre os planos
Para a primavera.

Se ele me disser tudo o que sabe
Sobre como o seu rio flui
E como toda a noite ele se mostra
Quando é verão.

Ela disse que hoje rezou
Para o céu soprar para longe
Ou talvez deixar –
Ela não tinha certeza.

E quando pensou na chuva de verão
Chamando por ela mais uma vez
A dor passou
E ficou um pouco mais.

Eu vou até o homem do rio
E contar a ele tudo o que posso
Sobre a proibição
De me sentir livre.

Se ele contar tudo o que sabe
Sobre o modo como o rio flui
Eu não irei supor
Ser para mim.

Oh, como eles vêm e vão.

Riverman

Betty came by on her way
Said she had a word to say
About things today
And fallen leaves.

Said she hadn’t heard the news
Hadn’t had the time to choose
A way to lose
But she believes.

Going to see the river man
Going to tell him all I can
About the plan
For lilac time.

If he tells me all he knows
About the way his river flows
And all night shows
In summertime.

Betty said she prayed today
For the sky to blow away
Or maybe stay
She wasn’t sure.

For when she thought of summer rain
Calling for her mind again
She lost the pain
And stayed for more.

Going to see the river man
Going to tell him all I can
About the ban
On feeling free.

If he tells me all he knows
About the way his river flows
I don’t suppose
It’s meant for me.

Oh, how they come and go
Oh, how they come and go.

Wildcat

Ontem assisti a Wildcat, o documentário que eu havia comentado no outro dia, a respeito da sua trilha sonora. Assisti com um nó na garganta porque filmes, livros ou músicas sobre adolescentes “problemáticos” não me causam outra reação.

Mas eu esperava que no filme o “problemático” fosse apenas Harry, o ex soldado britânico que retorna do Afeganistão com sequelas mentais graves, entre as quais a síndrome de stress pós-traumático e uma depressão profunda, com tentativas de suicídio. Porém a pesquisadora que ele encontra na profunda Amazônia peruana, Samantha, não é menos traumatizada. Ela, no caso, pelo convívio com um pai alcoolista e violento que a fez desde criança preferir o convívio com os animais aos adultos humanoides.

Pode parecer uma estranheza – ou não – encontrar dois adolescentes abdicando da vida social no que é o momento de seu apogeu para viver em um território inóspito e com vida selvagem real, cercados de feras e criaturas humanas mais ameaçadoras que as próprias feras, e que partilham do mesmo território apenas para conquistá-lo e depredá-lo.

Na prática, o filme aborda um processo de reabilitação dos mais complicados. Ao mesmo tempo, Harry trabalha na readaptação à vida selvagem de uma jaguatirica e na sua própria reabilitação emocional. Como num documentário não cabem escapismos à fantasia, o que se pode ver é que o processo está longe de ser uma jornada de superação. Muito mais se vê da tensão absurda que a depressão deita às costas e reserva à mente de um jovem com vinte anos de idade.

Depois de assisti-lo, não me espanta saber a reação emocional que sua exibição tem causado mundo afora. Ao unir dois universos sensíveis, adolescência e relação homem x natureza, sabe-se como a jaguatirica se reintegra ao mundo da floresta, mas permanece a dúvida quanto a adaptação do ser humano. Àqueles que pensam que viver entre feras é experiência terrível, o filme é instrutivo do quão desestruturante pode ser a vida entre os homens.