Não são muitas as vezes em que sinto necessidade de falar ou escrever sobre meu filho. É sério isso. Nestes quase dez anos, posso contar nos dedos de uma mão apenas as situações em que isso me ocorreu. Isso de não resistir ao ímpeto de lançar-me ao recurso caudaloso da escrita. Isso é estranho para mim mesmo porque, desde o seu nascimento, boa parte (ou pelo menos a melhor parte) de tudo o que tenho feito ou pensado tem a ver direta ou indiretamente com ele, embora isso não signifique que me coloque antes dele em nada nem situe ele no centro absoluto e copernicano da minha vida. Até porque ele tem a sua própria vida e a sua particular maneira de interagir com o mundo e de ser quem e o que ele é. Porém, porque sou seu pai, é obvio que, assim como eu o tenho, ele também tem a mim, daí ser isso tudo um sistema, vamos chamar assim, dinâmico.
Mas hoje, desde muito cedo, diferente da maioria dos outros dias, quando a rotina ordena idas e vindas, enumera atividades, lista deveres e faz agenda até mesmo dos nossos minutos, hoje acordei pensando muito em que, talvez de um modo um pouco diferente do que sinta a maioria dos pais e mães de crianças com deficiência intelectual que tenho conhecido, eu sinto necessidade de falar menos dos meus “sucessos” que dos meus “fracassos”. E por pensar num fracasso em especial entre os muitos que devo estar acumulando nesse meio tempo, esse sentimento me invadiu de uma maneira irrefreável.
E logo cedo uma certeza se tornou inegável para mim mesmo: a de que fracassei em ensinar ao meu filho ou em fazê-lo perceber que, praticamente desde a sua concepção intrauterina, quando era um mero amontoado de células multiplicando-se alucinadamente, e que isso está escrito no seu genoma como uma espécie assustadora de sistema operacional inextirpável, que ele nasceu com e tem e terá pela vida inteira a síndrome de Down.
Pois é isso: eu fracassei. E percebi claramente a dimensão do meu fracasso ao perceber que o trouxe comigo nesta enrascada: nem eu e nem ele sabemos o que é a síndrome de Down. Nem ele para notá-la em si mesmo; nem eu para ensiná-lo do que não sei ao certo o que seja.
Pelo menos quanto a mim, sei muito bem de onde vem essa falha. Vem de eu não saber nem como definir a mim mesmo. O que sou, afinal, além de um genérico ser humano, como os outros 8 bilhões de genéricos seres humanos praticamente todos essencialmente iguais a mim mesmo? Salvo algumas particularidades visíveis e outras nem tão visíveis, ser “humano” é o que de melhor posso dizer a meu próprio respeito, mas posso e desejo dizer isso a respeito de todos os outros 8 bilhões também. Então isso embora pareça relativamente pouco, é o máximo para exatamente todos.
Posso dizer também minha profissão, minha identidade de gênero e orientação sexual, minha idade, minha condição econômica e, talvez, a cultural. Posso dizer também, se isso me definir para alguém, o salário que declaro à receita federal, minhas últimas opções eleitorais e outros pormenores do mesmo gênero. Além disso ou, ainda com tudo isso, que diferença isso tudo faz à minha condição de humanidade? Pois é. Isso mesmo. Nenhuma. Mas, por um convenção social a meu ver completamente equivocada, para ele, meu filho, isso deveria fazer toda a diferença.
Quanto a ele, talvez eu devesse ajudá-lo a ter maior autoconsciência, maior metacognição. Mas a verdade é que ninguém pode, a rigor, ensinar a quem quer que seja uma consciência arbitrada sobre si mesmo. A verdade é que somos como podemos ser e como podemos nos imaginar. Meu filho com certeza não imagina que tenha a síndrome de Down. E nem eu imagino que ele devesse imaginar uma coisa dessas.
Eis a complexidade da situação.
Se para qualquer pessoa definir a si mesmo é uma tarefa complicada, seja porque muitas vezes não sabemos como abordar a nós mesmos, ou porque nos falte consciência ou até mesmo coragem de assumir a integralidade da própria condição, como então esperar que uma criança, justamente uma criança, possa compreender e assumir irrevogavelmente essa condição pétrea, essa identidade fixa, isso que os adultos todos, pais, professores, médicos, comunidade e etc. dizem sempre que não faz a menor diferença, ou seja, a sua própria diferença?
É complexa e mais difícil do que parece a situação, na verdade.
Fosse tudo diferente, se soubéssemos o que estamos fazendo nesse intervalo particular a que chamamos “nossa vida”, certamente videntes, astrólogos e psicólogos estariam falidos, bem como possivelmente os poetas estariam em silêncio e viveríamos sem maiores inquietações criativas e nem haveria necessidade da arte, matriz e expressão final das mais estranhas inquietações humanas. Não é o que afirmamos implicitamente ao dizer que arte é vida e precisamos dela assim como de oxigênio: às vezes um pouco mais, às vezes um pouco menos?
Acho que sim. E que, ao contrário dos demais seres vivos, nós – os seres humanos – sentimos uma imensa necessidade de atribuir e conferir significado à vida, seus intervalos, etapas e, se possível, até aos mais triviais minutos e segundos. Então dizemos por aí ou assumimos como verdadeiras algumas sentenças e verdades acerca de nós mesmos porque o tempo de autorreflexão é cada vez mais exíguo diante das urgências da vida, as reais e as “virtuais”. Daí a pressa toda.
Pensamos que somos belos ou feios, estúpidos ou inteligentes, egoístas ou altruístas, legais ou chatos, ricos ou pobres e assim por diante. E muitas vezes, isso também eu suspeito que seja verdade, nos enganamos a fartar a respeito de nós mesmos. Algumas vezes até deliberadamente. Por que então não nos enganaríamos a respeito dos outros? Por que tentaríamos não deliberar sobre os outros se dispomos até mesmo da nossa própria identidade e condição humana, como kits avulsos, como rótulos de produtos e embalagens? Como nomes cujo sentido muitas vezes sequer entendemos por completo?
Por outro lado, duvido que nunca nenhum de nós tenha pensado que a vida do “deficiente”, do “doente mental” ou de um “desviante” qualquer que se possa escolher como objeto de racionalização não contenha mais verdade, ou pelo menos felicidade, do que qualquer outra vida corriqueira e cheia de rotinas e tudo isso que “faz uma vida”… E duvido por uma única e exclusiva razão: a chance desse pensamento estar correto é tão plausível quanto o seu oposto e pensar-se em uma única forma de vida válida é apenas a expressão da mais subjetiva arrogância, isso que exacerbamos como conquista e mérito na nossa cada vez mais egocêntrica e tendenciosa compreensão do mundo, dos outros e de nós mesmos.
Então, vamos ver. Pelo menos a complexidade da situação parece simplificar-se um pouco. Mas tem mais.
Lembro que logo que meu filho nasceu, ou nos seus primeiros anos de vida, acompanhei mais ou menos à distância um diálogo, num grupo de pais e mães reunidos via internet, de que determinada criança, não sei filho de quem, também nascida com a síndrome de Down, de que essa criança de não mais de quatro ou cinco anos de idade “sabia” que tinha nascido com a síndrome de Down.
Lembro de que imediatamente essa informação me pareceu chocante e estarrecedora e não somente por conhecer desde aquele momento um pouco a respeito das dificuldades cognitivas inerentes à síndrome, mas porque, na ponta do lápis, ainda hoje o que se sabe melhor a respeito da síndrome de Down é a sua etiologia, sua causa, mas não no que ela implica biológica e psiquicamente. Pelo menos não na sua totalidade. Pelo menos não com a mesma clareza que se entendem outras condições, porque o genoma humano é um complexo relacional dinâmico e não um mapa astral, de onde não se tem muita saída e ao qual se estaria fatalmente atrelado. Para completar, a síndrome também falha em ser abordada como patologia justamente porque esse é um limite impreciso que, como se vê, provém do interior da vida intracelular e chega até a vida social e em suas tentativas de explicá-la, bem mais tarde, na vida adulta propriamente dita.
Naquele momento, entretanto, a questão para mim era outra. O que me importava era entender o que essa criança efetivamente sabia sobre a síndrome e saber o que os seus tutores no assunto sabiam também a respeito dela e teriam conseguido transmitir-lhe assim tão precocemente. Ou se ela apenas dizia que “era Down” como dissesse “sou menino” ou “sou menina”.
Provavelmente era isso mesmo, mas a conversa na época não prosperou a ponto de que eu pudesse entender melhor isso porque pelo menos eu não lembro mais nada significativo que tenha se dito, a não ser o anúncio estarrecedor de que uma criança com deficiência intelectual teria hipoteticamente consciência de uma condição que, na verdade, nem hoje ainda a ciência sabe dizer o que poderia defini-la, para além da trissomia do cromossomo 21 e sua atabalhoada expressão.
Quando me lembro dessa situação, fico pensando ainda hoje em que tipo de lições ou instruções eu deveria ter fornecido e estar fornecendo ao meu filho para que ele entendesse o que é “ser Down”. E, sinceramente, duvido que ele fosse conseguir entender! E afirmo isso nem tanto pelas suas dificuldades cognitivas, mas por culpa das minhas dificuldades explicativas. Não existe a possibilidade que meu filho, mesmo quase aos dez anos de idade, possa entender as implicações genéticas e bioquímicas da síndrome de Down, das quais sou assumidamente um quase total ignorante.
Esta possibilidade, portanto, está completamente descartada.
A possibilidade seguinte me parece pior ainda. Parece hedionda do ponto de vista ético e humano. Se eu procurar explicar-lhe, por exemplo, que as suas dificuldades em tudo humanas são elas mesmas a síndrome, será antes de qualquer coisa cientificamente errado, além de ser uma violência de minha parte, ou uma espécie de fuga, como é sempre o gesto de atribuir ao desconhecido a razão de ser de qualquer comportamento ou característica. Seria como admitir que a fase lunar ou a estação do ano estariam agindo nesse sentido. Seria uma fraude de minha parte. E uma violência para ele, porque eu estaria condicionando a minha visão a seu respeito com base numa fantasia pela qual optei unilateralmente, uma crença qualquer ou até mesmo uma ideologia que eu determinaria e que poderia falsear ao meu bel prazer entre o que é deficiência e o que ela não é, conforme os pressupostos e interesses ideológicos em questão, sejam meus ou tomados de empréstimo.
A verdade, ou pelo menos a única verdade que me interessa, é que eu não sei e espero nunca saber lhe explicar o que é a síndrome de Down. E isso não é uma opção simplista por viver na ignorância, mas talvez seja a opção mais difícil entre todas: a de assumir para mim mesmo que a diferença não existe. Que ela é um atributo linguístico. Uma imposição clínica determinada por uma convenção cientificamente provisória, como são todos os diagnósticos clínicos, como é todo o conhecimento científico.
A verdade é que eu penso que meu filho não precisa saber de nada disso, porque acredito que nem isso vai lhe parecer compreensível, dada a sua condição intelectual, e nem vai lhe fazer falta nenhuma saber. É o que eu penso e como tenho agido desde que ele nasceu.
Ele é assim e, a despeito de procurarmos melhorar suas condições de vida, o respeitamos. Jamais irei lhe dizer, mesmo nas previsíveis situações de discriminação, que ele não recebeu um convite de aniversário de um colega, por hipótese, porque “é Down”, e sim porque os outros são estúpidos, porque a estupidez é muito mais difícil de ser autoidentificada e assumida que uma alteração cromossômica, por mais incrível que pareça.
Também as suas dificuldades cognitivas e/ou comportamentais eu jamais pensei ou pensarei em atribuí-las a um erro de expressão de um gen qualquer, mas simplesmente vou tentar convencê-lo que dificuldades dessa ordem eu e todos os 8 bilhões de outros seres humanos temos também em relação a muitas, inumeráveis e incomparáveis situações e que, bem, temos sobrevivido com isso…
Por que haverei eu de complicar as coisas para ele? Não sou seu pai? Tudo bem que é função dos pais fornecer limites comportamentais aos filhos e não penso em fugir a essa incumbência social (está bem, às vezes penso em dar umas escapadelas, sim, a este dever…) nem em criar por minha própria vontade um selvagem, mas inculcar preconceitos precoces, além de liquidar com a autoestima de qualquer pessoa e ainda por cima dar um nome a isso, me parece de uma perfídia incomum, mas a sorte é de que ela seria pelo menos de um tipo a qual se poderia compreender e, mesmo que a duras penas, sendo o caso e caso a caso, lógico, corrigir.
Não vou lhe dar esses limites conceituais, sobretudo porque gosto de vê-lo assim, sem pensar neles nem confirmar nessa idade da vida uma identidade pétrea, um rótulo, uma caricatura humana qualquer… Suas opções, escolhas, seu desejo cheio de vontades (que coisa mais estranha isso!) às vezes até o fazem um tipo difícil, mas se eu quisesse formar uma criatura totalmente dócil e passiva eu não teria filhos, teria ficado nos animais de estimação.
Talvez seja esse sentimento, seja tudo isso, uma espécie de negacionismo tardio de minha parte. Não sei. Pode ser. Apenas sei que meu filho nasceu com a síndrome de Down e de que ele não tem a menor noção disso. Eu espero que, por respeito ao ser humano que ele é, no seu futuro pessoal não fiquem lembrando a ele disso desnecessariamente, de um nome que não faz nenhuma diferença nem muda nada na sua vida. Se alguém espera de mim, como pai, que lhe ensine isso e “seu lugar no mundo”, eu sinto muito, mas pode contar desde já com a sua própria decepção. A dar-lhe essa lição, se é a mim que caberia ensiná-la, já falhei “de nascença”. Ele com a síndrome de Down e eu como sou, nós somos mesmo irrecuperáveis.
Uma consideração sobre “Irrecuperáveis”