A rigor, é desde a publicação de Nêmesis (Companhia das Letras, 2011) que os leitores brasileiros deixaram de contar com textos inéditos de Philip Roth por aqui. E como parece mesmo que o escritor falecido em 2018 foi definitivo em sua aposentadoria anunciada em 2012 e não deixou nenhuma novela ou romance para publicação póstuma, nos últimos tempos restou apenas aos seus leitores e devotos matar amargamente as saudades do autor por meio das notícias envolvendo o polêmico cancelamento da biografia de Blake Bailey, Philip Roth: The Biography (Skyhorse, 2021), a única entre as disponíveis que efetivamente contou com sua colaboração direta. Na prática, restaram efetivamente apenas as notícias: a tradução do livro em si continua suspensa pela Companhia das Letras, editora brasileira interessada na sua publicação antes da polêmica exposição envolvendo Bailey, acusado no começo de 2021 por diversos crimes sexuais.
Agora, a mesma Companhia das Letras oferece ao público brasileiro uma edição retrospectiva compilando dezenas de ensaios e entrevistas de Roth a respeito de literatura e de seu ofício de escritor. Trata-se de um volumoso livro (568 páginas) intitulado Por que escrever?: Conversas e ensaios sobre literatura (1960-2013). Talvez antecipando a retomada da aguardada tradução, garante-se dessa forma que a editora ao menos ocupará os interessados em Roth com uma boa dose de textos de sua autoria até então inéditos em português. Isso não terá ocorrido sem críticas duras ao gesto de suspensão anterior, pois, afinal, as questões apresentadas referiam-se ao biógrafo de Roth e não a ele mesmo. Enquanto prossegue o embaraço, não custa lembrar que Bailey acabou encontrando nova casa para publicar seu livro nos Estados Unidos e a Dom Quixote, de Portugal, promete lançar sua tradução ainda no primeiro semestre deste ano.
No que importa, o livro que agora chega às livrarias é oportunidade para aqueles mais interessados na literatura de Roth do que nos bastidores da sua intimidade completarem finalmente a sua coleção em língua portuguesa. Com a edição, obtém-se o bônus de enfim desviar a atenção de situações alheias ao escritor que, incompreensivelmente, no último ano tornaram-se mais importantes que a repercussão do seu trabalho autoral. Nesse aspecto, Por que escrever?: Conversas e ensaios sobre literatura não poderia ser mais lapidar.
Desde o ensaio de abertura em que Roth contempla o retrato de Kafka para daí imaginar um destino mais longevo para o escritor tcheco, passando por comentários a respeito de escritores seus contemporâneos, como Philp Guston e Saul Bellow e transcrições de suas conversas com Primo Levi, Isaac Bashevis Singer e Milan Kundera, entre outros, até o capítulo final de “explicações” no qual responde sobre o próprio trabalho, vê-se um Roth que se propunha a oferecer um legado crítico tão relevante quanto sua obra ficcional. E o melhor de tudo: numa ensaística na qual se reconhece imediatamente os traços de sua inteligência e humor. Veja-se, por exemplo, o ensaio como no qual ele enfrenta a Wikipedia a fim de corrigir uma entrada a respeito de A marca humana (Companhia das Letras, 2002) e a enciclopédia não assimila imediatamente a sua observação, exigindo-lhe uma “fonte confiável”. Roth não se dá por vencido e publica a devolutiva na The New Yorker. No livro, o ensaio aparece completo, sem as supressões da revista.
Parte considerável do livro compõe-se também por discursos em premiações recebidas, entrevistas e ensaios que já haviam sido publicados anteriormente em Shop Talk (Mariner Books, 2001), mas a compilação apresenta ainda textos inéditos em relação à edição norte-americana, de 2017. As entrevistas são na realidade homenagens que ele faz a escritores com quem travou relação e enfrentavam dificuldades em seus países de origem, principalmente aqueles provenientes do leste europeu, como Milan Kundera e Ivan Klíma. Os ensaios a respeito de sua própria obra, todavia, tornam o livro mais apetecível para seus leitores habituais. Para estes, servem como um anexo indispensável o seu ensaio de aniversário de 45 anos de O complexo de Portnoy (Companhia das Letras, 2004) e o discurso sugestivamente intitulado A impiedosa intimidade da ficção, pronunciado nas comemorações dos seus oitenta anos, em 2013, no Museu de Newark. Em síntese, é praticamente um livro de referência que fixa o legado a seu respeito com seus próprios textos.
Por falar em “legado”, inobstante as “ameaças” literárias que sua obra vem sofrendo recentemente em razão de alegada misoginia e sexismo, mais ou menos no mesmo revés de Bailey, críticos, estudiosos e até amigos de Roth passaram a considerar que seu espólio deveria manter-se disponível para que outros biógrafos nele se debruçassem e dessa forma pudessem até mesmo oferecer novas versões de sua biografia. Ao que parece, junto às caixas de correspondência e demais notas, Roth teria entregado a Bailey pelo menos dois manuscritos inéditos justamente contestando o livro de memórias de Claire Bloom, Leaving a Doll’s House: A Memoir (Little Brown and Co, 1998), atriz com quem viveu por cerca de 14 anos. O temor é que esses manuscritos e os documentos que pudessem consistir em novo apanhado ou publicação recebam a destinação que em vida Roth solicitou aos encarregados do seu espólio: a completa destruição. Por ora, trata-se de um drama sem desfecho.
Quando ainda vivia, Roth havia destinado à biblioteca pública de Newark uma coleção de 7.000 livros anotados, fotografias e documentos pessoais organizados por ele mesmo e algo em torno de 1/5 do seu patrimônio financeiro (cerca de 2 milhões de dólares) para que a biblioteca se reequipasse. Parece que ao aposentar-se com a publicação de Nêmesis, Roth dedicou-se a organizar a eternização de sua memória e seu legado, o que inclui o seu acerto com Bailey. Por meio de sua biblioteca pessoal é possível conhecer suas anotações em Dostoievsky, Colette e Machado de Assis, entre outros. Provavelmente é desse espólio que resultam os ensaios, discursos e apresentação da presente edição de Por que escrever?: Conversas e ensaios sobre literatura (1960-2013).
Daí pode-se presumir, portanto, que a curiosidade literária acerca de Roth será plenamente aplacada com a edição. É claro que isso se confirmaria apenas caso o interesse vulgar na pessoa, fofocas e informações desencontradas preenchessem menos o interesse das pessoas que propriamente sua obra e vida literária. Quanto a isso, é bem provável que Roth soubesse bem que seria algo impossível de deter, narrar ou conduzir com exclusividade. Certamente não a ponto de prever que sua memória fosse embargada por razões esdrúxulas, mas porque seus confrontos com o moralismo fatalmente se chocariam com a contemporânea tara social do cancelamento. Para estes leitores, Por que escrever?: Conversas e ensaios sobre literatura (1960-2013) é excelente oportunidade de conhecer de Roth mais no que ele é interessante, um autor fundamental de sua época histórica e com um talento incomum para narrar. Para os que não morrerão de um pasmo ao saber dos incidentes pessoais da vida do autor, espera-se que a biografia saia de uma vez por todas e suspenda-se a onda de exorcismos pelo menos no que se trata de um monstro literário como ele. Não é algo certo de se esperar, mas nunca custa muito o apelo ao bom senso e à razão.