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Errata

Não sei se vocês estão preparados para um sessão de coitadismo de um pobre poeta brasileiro, mas a pessoa ter lucidez quanto a si própria é uma coisa basilar. Sem isso, o indivíduo que vive nos píncaros logo se estrebucha ao duro piso da realidade.

O meu caso é simples. Desde o meu primeiro lançamento em livro, soube que eu seria o antípoda ideal daquele personagem de um coach primevo dos anos 70, Og Mandino. O seu livro, intitulado “O maior vendedor do mundo” encontrou na minha pessoa a sua antítese. Talvez eu não seja o pior vendedor do mundo, mas tudo indica infelizmente que sim..

De modo que lançar um livro — e em pré-venda — é uma coisa que me aflige muito porque, além de não ter um produto a mostrar, como vou convencer as minhas vítimas de que vale a pena a minha oferta? It’s complicated.

Pensando nessas tristezas contingenciais e inépcias naturais da minha personalidade, lembrei que tenho aqui, diante dos olhos, o “boneco” deste livro de poemas que reúne os três últimos anos do que venho escrevendo em versos. Coisas que deram as caras aqui, algumas delas, mas não todas. Em livro, a experiência da leitura se transforma por uma arte combinatória de papel, tinta e olhos..

Esta imagem é um mero amontoado de folhas, não é um livro, mas é o livro antes do livro. O pré-livro. O aspecto da coisa numa antecipação. Agora, se ainda assim lhe parece que este livro (preparado com muito carinho e atenção pelo meu amigo e editor Thomaz Albornoz Neves), possa ser uma boa coisa, faz essa aposta, confia neste vate… ahahahah

Em pré-venda até o final do mês, “Errata” talvez seja meu último livro de poesia. Provavelmente seja. Ele não revê nada do que escrevi antes, não me reviso (apesar do titulo), apenas me acho estranho em divulgar folhas que são tão íntimas que se envergonhariam de mim..

O livro pode ser adquirido neste link e vai com meu agradecimento sincero e autógrafo.

Em branco

O que mais tem no mundo hoje é protagonismo. E eu acho estranho que essa ideia prospere tanto nos novos movimentos sociais porque é evidente que ela espelha uma noção competitiva nas relações sociais. Ao invés da busca por reformá-las ou transformá-las, vale aparecer mais, aparecer antes, capitalizar a imagem. A busca por protagonismo é uma nova forma de exploração do individuo pela sua imagem e o sofrimento correspondente a esse processo.

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Caso a inteligência artificial assuma cada vez mais as funções comunicativas, é de esperar que o indivíduo se aliene completamente nesse self ponderado por algoritmos e disjunções aritméticas. Num mundo de redes de relações proveitosas, ou networks, a exclusão assume formas imponderáveis e inimaginadas no modo como as pessoas de mais de vinte anos de idade foram educadas. Todo o esquema de status pessoal torna-se um produto do sucesso da comercialização do seu ego. A ideia de carreira, de obra ou trajetória sucumbe a uma nova ordem de acumulação simbólica. Mais importante que talento é aferir valor a si mesmo, e vender-se a este preço, num esquema licitatório que seleciona as melhores ofertas de valor ao que o sistema simbólico (cultural) necessita explorar.

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Às vezes, só às vezes, temos noção realista do tempo mal empregado de nossa energia mental e vital. No mais das vezes, por uma espécie parassimpática de proteção, essa percepção nos é vedada. Com ela, saberíamos que a maior parte dessa energia foi simplesmente dispersada. Como uma carga elétrica que se perde num circuito, simplesmente muitas vezes os grande aportes de energia não resultam em nada. Quando muito, choques periféricos sem maiores consequências. E a energia não se armazenou, não constituiu um fundo de aposentadoria, ela simplesmente evaporou. Sumiu. Acabou.

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O maior agente de dispersão de energia são as pessoas. E não é porque elas sejam essencialmente dispersantes, mas porque são necessariamente egoístas. Muitas pessoas pensam que o egoísmo é uma deformação de caráter. Eu discordo. O egoísmo é uma forma elementar de diferenciação do eu ao notar que, para o seu bem estar, é preciso prestar mais atenção a si mesmo do que dispersar sua energia.

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Não estou defendendo o egoísmo, claro que não, mas é fácil constatar que 99% das pessoas vivem dessa forma, priorizando a si mesmas. O egoísmo é a forma mais conservadora de comportamento. É um espécie de acumulação primitiva ahistórica, inarredável por qualquer processo revolucionário. O egoísmo só cessa com a morte do indivíduo.

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O protagonismo é uma espécie de egoísmo da imagem, uma receita simbólica que se origina na comercialização do eu. Uma super projeção do eu, isto é, uma virtualização.

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Dispersante, por outro lado, é o gregarismo, a vida em grupo, o cuidado. Quem dispensa cuidados dispersa sua energia, sua atenção. O benefício que ele tem é o de alienar a sua consciência, o de pensar menos em si mesmo e mais no contexto do que de si depende, mas isso só acontece quando ele o faz sem notá-lo.

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O bem que se sabe bem e que se autodeclara, não é bem, é mera vaidade, disse Hannah Arendt.

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A vida social é desarmônica porque o altruísmo é uma noção intelectualizada de ação política. Quem pratica o altruísmo muitas vezes está mais interessado no benefício moral da ação do que no bem estar coletivo.

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As pessoas que dizem que preferem ajudar a alguém que pode olhar nos olhos ao invés de colaborar com a sociedade anônima computam recompensas que, se ajudassem a um fundo público organizado, traria mais resultados, mas elas então não afeririam benefícios da ação.

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A situação mais vulnerável em que uma pessoa pode estar é a dependência do outro. No entanto é ao viver essa situação que se pode superar a condição do egoísmo. Por essa razão a negligência com as crianças e com os idosos é punível.

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Deixar de fazer algo, abster-se, é mais poderoso que participar, pois se anula o emprego de energia e ela dessa forma não serve a nada nem ninguém.

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Não podem coexistir a ideia inclusiva e o protagonismo. É um paradoxo.

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É isso que agride a sensibilidade contemporânea e nos leva ao fascismo pós-moderno: a ideia de que a nossa melhor energia será de uma forma ou de outra canalizada num esquema competitivo de proveitos simbólicos e políticos. A mesma ideia da vingança, mas delegada.

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Nada está mais distante do mundo hoje que a ética cristã ou budista. O séc. XX nos serviu para perceber definitivamente o fardo inútil da moral social. O séc. XXI nos vem servindo para dispersar a própria energia mental indefinidamente.

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Um caderno vazio, no qual se projetasse uma forma de vida mais desinteressada, um mundo conscientemente distributivo e reparador, poderíamos ambicionar? Não descreio, mas antes precisaríamos ir até o final do livro que viemos escrevendo. Um livro com protagonistas demais. E um caderno cujo protagonista seria, de forma natural e especial, ninguém.

Não se aconselha a compaixão

Para a Isabel

For every little lie you tell so you can hide
Will grow inside your chest
Your heart will need to rest
So come into my arms

November Ultra

Não se aconselha a compaixão. Isto é o que se deveria dizer em muitos lugares onde ela havia trabalhado. É que as pessoas primeiro olhavam seus braços e pensavam que ela seria um bom guindaste para os velhos que já não levantam mais pelas próprias pernas. Um guindaste humano e de bom coração que, ao tempo em que erguesse pelas axilas alguém sem esperança em sobreviver, sussurraria em seus ouvidos palavras cândidas, inocentes, como se extraídas de uma canção de ninar. Por isso eu digo sem piscar: compaixão ela não tinha. Na verdade, era outra coisa; algo que não entendi por completo, pois também não houve tempo o bastante.

Para quantos não tenham força para viver, deve haver tantos que os ajudem a suportar, a mãe lhe disse ainda uma criança, a única menina entre sete irmãos nascidos em escadinha, ela a mais velha, e que se tornaria responsável pelos demais se a mãe morresse (e ela morreu de droga e bebida, quer dizer, de uma morte quase planejada). Alguém precisa ser o guindaste, a mãe avisou e antes que entendesse outras coisas elementares de uma vida serviu-lhe a lição.

O que a distraiu nestes anos foram os gatos que a mãe havia deixado que se acomodassem em seu pátio. Ela gostava de ficar olhando os animais como se aquilo fosse uma selva particular, um mundo de natureza, ordenado pela natureza e onde, por consequência, apenas aconteciam as coisas que desejava a natureza. Mas um a um os gatos partiram ou morreram e coube a ela enterrá-los junto aos arbustos que foram tomando conta do lugar. Isso tudo uma ordem da natureza, exceto ela, que desde então adquiriu aos olhos dos outros o hábito dos anjos.

“Eu vou comprar comida, algo que você nos prepare para enfrentar o frio. Não demoro…”, o pai disse na última vez em que o viu. Mais tarde, atrás dele foram os três filhos mais velhos, numa tentativa de reencontro que ela nunca soube se malfadada ou bem sucedida. Às vezes, ela estava encostada na porta da enfermaria, fumando, e me parecia que imaginava ainda que os quatros se encontraram, é claro, e agora vivem da pesca numa cidade portuária e nem é preciso que retornem, mas, se um dia retornarem, ela terá arranjado algo do que comeriam todos, como deve ser numa família.

Nos olhos dos seus irmãos nunca houve gratidão e nem ela esperou por isso. “Vive-se”, é o que ela dizia quando os vizinhos indagavam se precisava de algo e ela recusava, dizendo que com o seu trabalho eles tinham o suficiente.

Eu sinto tristeza que nas cidades, todas elas, nunca tenha um monumento a criaturas assim. Imagino que ela recusaria como recusou um pedido de noivado de um sujeito que disse por ela estar apaixonado, mas ela não o entendeu, não entendeu do que se tratava. Menos mal que uma prima entendeu as tentativas dele, subsequentes as que lhe dedicara. E ela entendeu ainda mais porque, de fato, não havia nada disso de paixão. Sabe-se lá o que havia..

Hoje desde cedo me pareceu que seria um dia estranho. Avisaram que ela não viria almoçar conosco, no refeitório. Foi deslocada para outro andar, outro setor, eu imagino. Não quero saber. Para onde ela tiver ido estará um lugar melhor, isso é que é. Haverá risos de histórias angelicais, sem qualquer maldade ou frivolidade, canções cantadas sem pronúncia, em boca chiusa, e seus músculos trabalhando como a mãe ensinou-a a fazer. Haverá alguém sendo ajudado ou então não haverá realmente mais nada. Em dezembro costumam dar folga aos funcionários, é isso que deve ser. A maldita está de folga e eu aqui, sem quem me conte o desfecho de uma história qualquer, dessas que rolam pelos telefones e eu tenho preguiça de ler até ao final. Irá comer os caramelos todos sozinha, não guardará ao menos um para mim. E é assim mesmo que deve ser. Não se aconselha a compaixão.

Todos os outros silêncios

Publicado também na Especiaria.

Não com todos, mas com alguns, raros, a leitura de poesia me traz certa sensação de invasão de privacidade. O poeta confessional decerto é uma pessoa que previamente consente com isso, no entanto a privacidade a que me refiro é mais intrincada do que aquela que dá a ver uma rotina, trajetos, modos, gestos; quero dizer da privacidade do pensamento, este laboratório onde a vida se transforma algumas vezes — não muitas, é verdade —  em boa poesia.

Os tempos de hoje são indiscretos. Pouco ou nada se permite de intimidade ao poeta. Muito pelo contrário, a ausência de certa autoevidenciação repercute quase sempre em um correspondente apagamento público. De outro modo, o excesso de evidência repercute igualmente num apagamento, mas então numa forma de dessubjetivação, isto é, por anulação consentida do eu em prol do eu-lírico. Ao mesmo tempo, opera-se uma forma de descompensação entre a criação e a atenção alheias, colando-se ao artista uma película com vida própria e aquilo, externalizado a ele, passa a animar uma performance, raras vezes uma poética. Com a poesia confessional, se dá exatamente o oposto disto. A exposição faz o artista desaparecer e só então pode surgir a pessoa, mas sem uma desassociação, porque esse surgimento se dá ante ao outro, e não antes dele.

Eu ainda estou tentando entender se este livro que tenho em mãos é, de fato, um exemplo de poesia confessional ou não. Seja como for, é um livro que abre uma porta para que se conheça da pessoa esse objeto inapreensível: o seu modo de pensar e de ser.

Todos os outros silêncios, de Lucia Fonseca, é um livro de experiência. Em muitos aspectos, reflexões sobre acontecimentos e sensações de uma vida que são trazidos à superfície do papel pela delicada recomposição da própria vida. São situações no mais das vezes silenciosas, quase ausentes, e para as quais a poesia serve de espécie de elemento de fixação. Não se trata do prosaico ou do casual, mas do narrativo permeado de análise e reflexão, do lírico que emerge do distanciamento de cenas e experiências. Estas poderiam permanecer em silêncio, mas a poeta cede ao poema e permite que sejam vistas sob nova perspectiva pelos leitores. Isto é mesmo uma oportunidade, espécie de um presente. É como eu penso.

Removido o invólucro da poesia, o livro e seus anteparos, de imediato se vê que se está diante de um “eu” dono de sua linguagem, imperativo em sua poética. Em Teia, com uma epígrafe nebulosamente sugestiva de Wislawa Szymborska, a poeta se apresenta mínima, como um detalhe da própria poesia:

Teia

”Sou quem sou,
Inconcebível acaso
como todos os acasos.”

Wislawa Szymborska

Sou quem sou
por obra de deusas e de genes.
Sou quem sou
pelos meus antepassados
pelos acontecimentos.

Se um único gene falhasse
nessa infinita corrente
se da teia que me prende
outras malhas se soltassem

se eu escapasse de mim
me esgueirasse do destino
pelas falhas de algum ontem
se de mim me derramasse;
seria talvez um Outro.
Talvez mancha no assoalho.

Quanto mais se avance no livro, mais o objeto em papel vai se desvanecendo, como um fruto que se descarna. Primeiro, na poesia elegíaca da amorosa seção que ela dedicou ao marido Gabriel, depois em poemas até certo ponto nostálgicos que conversam com a infância, a família e amigos de uma vida. Nestes, a poeta, cada vez mais ciente da própria pessoa, confessa o espanto da vida para uma incógnita Regina, a quem dedica o poema Quando:

Quando

Para Regina

Tenho setenta e sete anos.
Desenho, pinto
mas já não escrevo tão bem.
Há muito, perdi meus pais, meu irmão
perdi meu marido.
Tenho três filhos e três netos.

Quando fico triste
lembrando os ausentes
abro a gaveta da copa:
panos de bandeja cercados de renda
pequenas toalhas de linho bordadas.
Fico olhando muito tempo para eles
admirada
como diante de anjos.

Mais adiante há uma sorte de poemas que são como retratos, que se valem da experiência estética de outros artistas e obras, como a pintura de Paul Klee e a literatura de Fernando Pessoa, Proust, Borges e Clarice Lispector. São referências, é verdade, mas que transfiguram-se em sua poesia menos como homenagem e mais como um retratismo. Poemas cuja narratividade que são quase prosas-em-poema, mas dos quais nunca se ausenta o olhar lírico e afetivo da poeta, como se pode ver em Pose para retrato:

Pose para retrato

A moça e seus filhos parados e sérios diantes das lentes
cercados de céu.
Seus olhos miram planetas, constelações, galáxias.
Mas eles não sabem nada
não sabem nada.
Como nós, como todos nós.

Quase ao final do livro, na seção intitulada Canções, a paisagem natural desdobra-se como um diorama interno ao livro, onde, talvez, resida o núcleo de sua atenção manifestando-se num olhar afetivo sobre o mundo e suas coisas. É onde a poeta diz ainda mais de si mesma. Desta seção, não convém destacar um poema a fim de não prejudicar a integridade da obra. É preciso cercar-se de cuidado, pois o nível de exposição é tamanho que, fragmentado, pareceria afetar a apreensão dessa poesia terna e ao mesmo tempo nada autocomiserativa que Lucia produz em relação a si mesma, no que talvez seja o ponto mais alto do livro, pelo menos no seu viés mais confessional.

Ao final da leitura de Todos os outros silêncios, não pude deixar de me perguntar a respeito de como uma poeta de tal consistência havia me passado em brancas nuvens por tanto tempo. Para quem se pretende um leitor atento ao gênero, me parece criminoso, pois este é o primeiro livro de sua autoria que conheci e sua trajetória vem ativa pelo menos desde os anos 80.

Trato de investigar a situação e não demoro a compreendê-la. Já um poeta que se faz notar pela sua qualidade não encontra, infelizmente, o mesmo reconhecimento que se dedica, na cultura de consumo visual destes tempos, a quem se coloca permanentemente em evidência. Não se trata de julgar a situação, apenas de constatá-la. O que se pode julgar, no entanto, é a incapacidade persistente da percepção crítica em relação aos poetas contemporâneos e sua visada de vitrine, sem a menor profundidade. No entanto, se as referências quanto ao seu trabalho são restritas, a obra felizmente é vasta e irei com certeza dela me ocupar, com bom proveito, ainda por muito tempo dos seus demais livros, que indesculpavelmente ignorava.


Lucia Fonseca é autora de pelo menos dez livros de literatura. Ao mesmo tempo deste Todos os outros silêncios, lançou o livro de contos A menina que me visita, ambos pela 7Letras. No website Vestígios (https://www.vestigios.net.br) disponibiliza alguns de seus livros para donwload, além de uma generosa seleção de contos e poemas.

Laurel

Feliz, a primavera
sobrevive sem flores
de empréstimo.

E aqui se daria
o nascituro da tarde —
num indefinido meio-dia.

O pássaro (sem ventura)
trafega o espaço, mas
doutra estrutura.

Os olhos não alcançam
o que se ergue
como fortuita quimera.

Numa única paleta de cores,
o mesmo dia renasce
uma centena de vezes.

O azul não continua azul.
O céu migra de lugar.
A sombra não atenua.

Luz rosácea que restou,
do caule seco da flor
a folha comparece

e empresta os braços ao sol
como uma reserva disforme
da flor imerecida.

Já pensou, se ouvida,
o que ela diria? Nada..
Isso foi toda a vida.

Santa Marta em Tarascón

Hoje é dia de Santa Marta de Betânia, irmã de Lázaro e Maria Madalena, que ressuscitou um homem afogado como se fosse um deus e enfrentou com um frasco de água benta uma fera descrita como “um dragão metade animal, metade peixe, mais gordo que um boi, mais comprido que um cavalo, com dentes cortantes como espada e pontiagudos como cornos, munido de cada lado por dois escudos”, gerado pela “união do Leviatã com o Onachus”.

Essa santa prodigiosa teria sido a mártir que converteu os primeiros francos ao cristianismo, numa região também governada pelos romanos no século primeiro depois de Cristo, a quem ela hospedou.

O dragão de Tarrasque é uma besta medonha pela descrição que é feita nas lendas medievais. Ao invés de cuspir fogo como um dragão ordinário, ele inflama tudo com os seus excrementos que são como bolas de fogo que arremessa longíssimo. Vivia a fera num covil próximo à floresta escura onde hoje é a comuna de Tarascón, devorando todos aqueles que ousassem invadir a mata densa.

Marta jogou umas gotas de água benta no monstro e mostrou-lhe um crucifixo. Foi o bastante para o monstro deixar-se aprisionar pela cinta das vestes da santa e por ela foi levado ao vilarejo, onde foi espancado até a morte pelos aldeões.

Após este feito, a mirófora Marta, que teria sido também oradora admirável, foi ganhando a fé de todos ao redor e naquela terra de crendices ergueu uma basílica em homenagem à mãe de Jesus, a virgem Maria.

Desde a época medieval ocorre na região uma procissão a que se consagrou em 2008 o estatuto de Patrimônio Cultural da Humanidade. Na procissão, repete-se a chegada de Marta e o dragão carregado pelo cinto sendo atacado pela população. Na Espanha e na Bélgica, a procissão costuma acontecer junto à celebração de Corpus Christi.

Santa Marta é a padroeira dos cozinheiros e em algumas representações ela aparece enfrentando o dragão com uma concha de madeira ou colher de pau.

Existem muitas interpretações do encontro das duas criaturas, mas eu não vou tão longe. Melhor deixar essas coisas para quem estuda. O máximo que fiz foi escrever uns versos. Mas não para a santa, para a vilipendiada besta..

As aspas são da Legenda Áurea, de Jacopo de Varazze.


Santa Marta em Tarascon
2017

Eu levo quem vem e vai
ao fundo de todas as águas.
Sou o último à passagem
entre a natureza e a cidade,
para matar-me não basta coragem.

É preciso ser como ela.
Vencer todos os medos,
ter o milagre aos dedos.
ferrões de todas as abelhas,
grilhões de tecido e seda.

A julgar por minha aparência,
o solaço da primavera
neste ano chegará mais tarde,
como um exército de covardes
trepida ante minha couraça.

Há muitos tipos de morte
que eu tenho a oferecer.
Depois de ser trucidado
ninguém haverá de invocar-me
como a Lázaro, o ressuscitado.

Abaixo do som das palavras,
a minha voz somente ameaça
os tolos, os fúteis e os vis.
As bestas eu deixo que passem
pois elas são seres sutis.

Engulo-os pelos pés e das mãos,
seus medos, anseios, fedores.
Não lhes basta o próprio espelho
pois poucos sobreviveriam
em face dos próprios horrores.

Qual o teu nome monstro?
Ela indagou olhando meus olhos.
Nenhum, eu disse, ou jamais
e ela de pronto entendeu
desfazer dos meus ancestrais.

Pior que a própria Medusa,
ela ergueu sua mão para o alto
e numa língua confusa
entornou o silêncio dos jarros
até retirar-me do lodo.

Iludiu-me com vinho e promessas,
levou-me a um redemoinho.
Febril, pedi-lhe compressas
e ela, falando baixinho, disse-me:
monstro, como és mansinho..

Leva-me, que a vida me farta
e não posso ser compreendido.
Serei o exemplo perfeito
do que deve ser combatido;
e à morte levou-me indefeso.

O povo saudou com festa e pranto
a sua salvadora. Santa Marta
do meu sangue livrou-se,
mas eu, de sua memória,
nem tanto…

A mais cruel das artes

A música é a mais cruel das artes. Não se pode enganar a música porque ela te desmente em dois compassos. Não adianta..

Na verdade, nas artes visuais e literárias se dá o mesmo. Apenas que a sensibilidade receptiva é menos exigente. Na música, a inabilidade é gritante e mesmo uma pessoa não instruída musicalmente percebe as falhas de execução e etc. Não existe, simplesmente, o estilo “mal tocado”.

A música nesse sentido é cruel, mas, por outro lado, a destreza técnica permite que a sensibilidade se acentue. E dessa forma composições ganham roupagens, interpretações ganham nuances, melhorias. Nesse aspecto, a literatura é mais cruel. O que está feito, está feito. Ninguém consertará uma obra escrita. Ninguém a reinterpretará e realçará o que ali não existe. É impossível.

Mas a música, se é cruel à primeira audição, é permissiva com que a melhorem.

É isso o que fazem muitos intérpretes e arranjadores. Mas não é por acaso, são músicos que estudam e praticam desde a tenra infância e, se têm algum dom, o aperfeiçoam com trabalho, e não pouco.

Dos artistas, respeito mais os músicos, ainda mais porque sua produção é desvanecente, se evapora no ar, não fica nada.

Dos instrumentos musicais, o violão é o mais cruel. Há que montar o som. O instrumento não está te esperando, está desafiando. A lida com o violão é uma tauromaquia e a vida do guitarrista é ser derrubado e atravessado – eis a crueldade – pelo que ele mesmo consegue extrair do instrumento.

Tenho muitos violonistas que acompanho na internet, do mundo afora. Concertistas, intérpretes impecáveis. Gente que estuda o instrumento desde a tenra idade: 6, 7 anos.

Edith Pageaud é um dessas instrumentistas. Toca violão desde os 6 anos e com 7 já havia sido premiada em recitais nacionais. Dom? Eu acredito que sim, mas dom trabalhado, burilado. O dom pelo dom não necessariamente gera boa arte. É preciso algo mais, enfim, é óbvio.

Nessa interpretação de Piazzolla, Edith altera a execução com timbres e outras técnicas que ela executa à perfeição. No entanto, pelo menos eu ouço assim, o equilíbrio que ela obtém é total, o efeito estético é homogêneo, tempos e contratempos estão tão internalizados que não há forma de se desarmonizarem.

Então, o que acontece é que a música ganha, aumenta. Podemos escutá-la com uma particularidade.

Nas outras artes – eu pouco sei de artes visuais – me parece que isso é impossível. Na literatura, todos os erros e fiascos são em bronze, como dizia o Mario Quintana.

Não sei.

A música é a mais cruel das artes, mas a literatura é mais cruel que a música de muitas mais maneiras.

Quando fores bem velhinha


William Butler Yeats
(13/06/1865 – 28/01/1939)

Quando fores bem velhinha, já grisalha e, exausta de sono,
Pestanejares junto ao fogo da lareira, toma este livro,
Lê com calma, e sonha com o olhar um pouco mais vivo,
Como o que tiveste outrora, sem as sombras do abandono;

Quantos, falsos ou verdadeiros, amaram a encantadora
E fugaz beleza da juventude, quando era simples e fácil,
Mas um homem só amou com efeito a peregrina em tua alma,
E amou em teu rosto as sombras que podes ver agora;

E curvando-te em direção às chamas incandescentes,
Resmunga, tristonha, de qualquer amor distante
Que sobrepassou colinas e montanhas adiante
Desaparecendo igual a estrelas cadentes.

§

When you are old and grey and full of sleep,
And nodding by the fire, take down this book,
And slowly read, and dream of the soft look
Your eyes had once, and of their shadows deep;

How many loved your moments of glad grace,
And loved your beauty with love false or true,
But one man loved the pilgrim soul in you,
And loved the sorrows of your changing face;

And bending down beside the glowing bars,
Murmur, a little sadly, how Love fled
And paced upon the mountains overhead
And hid his face amid a crowd of stars.

Me dá meu chapéu

A Cidade Baixa não tem desses cafés do Bom Fim, onde os velhos sentam para tomar um pingado e aproveitar o sol do outono, como uns gatos desalojados da vida doméstica. O comércio da Cidade Baixa é essencialmente etílico, salvo uns bistrozinhos de preços, acho eu, completamente desproporcionais. São poucos desses café de calçada, e os que se mantém em sua maioria são envidraçados. A razão disso é óbvia e não é meu assunto aqui.

O bom desses cafés nem é o café, mas essa companhia de cãs e calvas. Tem quem fuja com medo de ser confundido, mas se é uma vaidade (ou tolice) que nunca tive na juventude, não vai ser agora. É que se a idade traz o desconforto da proximidade cada vez mais breve para com a visitante fatal, por contrapartida traz uma espécie de tranquilidade. Tranquilidade que é um pouco cansaço também, mas sobretudo falta de pressa. De pressa e de surpresa.

É que é muito diferente conversar com alguém que só viu, por exemplo, os governantes deste milênio mal parido e com quem tem na memória os ecos de uma Segunda Guerra Mundial. Há uma forma diferente de sopesar as coisas, é isso que digo, que é algo tranquilizante. Para mim, é. Porque hoje vivemos a era do escândalo e da obscenidade e essas pessoas conhecem espécie de bem e de mal muito menos óbvios que, obviamente, não se extinguiram.

Eu ainda não fiz isso, mas um dia vou simplesmente pedir o meu pingado e tomar meu assento, não mais vou sentar à distância. Se me estranharem, digo simplesmente “ué, me esqueceram?”, e como ninguém vai querer acusar um lapso de memória, vão fazer de conta que conhecem, claro, e me recomendar que eu tire a cabeça do sol porque esqueci do chapéu. Eu, que não uso chapéu..

A lenda do corpo e da cabeça

Que o Rio Grande do Sul é lugar de pouca lenda ninguém desconhece. Tira-se o boitatá, o negrinho do pastoreio e Sepé, ou seja, Simões Lopes Neto, sobra praticamente nada. A pobreza imaginativa é acachapante e o excesso de realismo é a regra.

Visando suprir essa lacuna é que o Paulo Damin deve ter escrito “A lenda do corpo e da cabeça”. Será que foi? Eu acho que foi isso. Ele deve ter pensado: “vou bagunçar isso aqui de uma vez” e se lançou ao teclado.

Bom, não sei se foi mesmo assim ou se ele fez um uso prévio de psicoativos (ou graspa), mas que há no texto indícios de alteração de consciência, isso há. Estou por ser desmentido, mas fica o registro dessa dúvida.

Não é uma história normal, de gente normal, essa que agora virou livro e antes, por outra espécie de insanidade, os editores da Parêntese haviam publicado como um folhetim. Como é que eles se animaram? Eu fico pensando onde é que eles estavam com a cabeça.. Será que foram ameaçados de decapitação e se renderam? Fica o registro de mais essa dúvida.

A escrita mediante psicoativos (ou graspa), como é sabido, faz o autor ficar meio hiperconfiante. A adrenalina brota dos olhos e ele vai, naquele surto, se recompensando das loucuras que vão saindo da sua mente aos borbotões por outras loucuras ainda mais loucas. De minha parte, eu fico só imaginando as expressões faciais do autor ao escrever barbaridades que nem me animo a reproduzir aqui.

Todavia, se não foi do uso de drogas, decerto tudo aquilo ali provém de alguma técnica bretoniania. Um descompromisso total com a realidade no qual vai se contando a história de um corpo decapitado cuja condição, demente in extremis, não impediu que continuasse uma aventura com ares medievais. Isso o corpo. E a cabeça remanescente, imagem depositária da razão, ainda é mais lisérgica que o corpo e tem conversas animadas com os cursos d’água (isso mesmo), que também falam pelos cotovelos (?!).

Ao encontro de caçadores, bruxas, rios que conversam, sombras despegadas do corpo, cabeças navegantes e um bandoleiro com mais de uma centena de anos, o leitor logo percebe que está lendo um texto desinteressado (modo educado de dizer louco). Aqui o Paulo não traz uma fábula moralizante ou uma metáfora poética rebuscada, parece apenas ter-se deixado levar pelo prazer ancestral de contar uma história no tom mais coloquial, ainda que sem muito pé nem cabeça..

Mas exatamente por isso a gente se deixe contagiar fácil e rapidamente envereda pelas desventuras algo medievais e pelo insólito dessa lenda meio trash contada num modo de dizer absolutamente espontâneo. E isso, vamos combinar, é uma raridade entre os escritores destes dias tão, tão.. Me falta a palavra.. Ah, sim. Tão cabeçudos..

Pois o Paulo conseguiu me fazer rir como um livro não vinha podendo fazer há muito tempo. Eu, que estava por comer uma bergamota, até esqueci da fruta ali na mesa, no solzinho. Mas vou lá buscar que é a capaz da cabeça avulsa cruzar ali, roubar o fruto, e eu ainda por cima ter de testemunhar alguma coisa.

Não vi nada, não sei de nada, só que o livrinho é imperdível.