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Poesia prescritiva

Revista Parêntese, ed. 241

Por muito tempo, estudiosos da literatura e da poesia e os próprios poetas têm se dedicado a procurar respostas para a insolúvel questão da finalidade da poesia. Para que serve, afinal, a poesia? Poesia para quê?

Talvez em vista disto, alguns livros recentemente publicados tragam desde a capa a prescrição de sua utilização. É o caso do recente lançamento Feroz (Darkside, 2024), da poeta norte-americana Emily Skaja, que arrematou com o livro o Prêmio Walt Whitman da Academia dos Poetas Americanos no ano de 2018. No Brasil, o livro da jovem poeta de Illinois ganhou um subtítulo explicativo, vindo a chamar-se Feroz: poemas para corações dilacerados (tradução de Luci Collin).

Capas de Mundo dentro, Feroz e Em que a poesia faz pensar?

Mas o seu não é o único caso assim. Em 2002, a editora Sextante, do Rio de Janeiro, publicou da médica paliativista Ana Claudia Quintana Arantes o livro Mundo adentro: poesia de sobrevivência. Já no título, como se vê, consta a descrição da sua motivação criativa e também do uso que se pode fazer do seu conteúdo. Além da coleção de poemas, o livro traz apreciações da própria autora e, ao final, um convite aos leitores para que usem a escrita em versos como um “poder restaurador”, visto que a poesia, de acordo com ela, está “disponível para todo mundo”.

Tudo isso, porém, nem pode ser chamado de novidade. Ao longo do tempo, antes nos jornais e agora provavelmente no Instagram, versos poéticos tem sido veiculados no afã de colaborar com os leitores, de ajudá-los a assimilar as questões da vida e de ser um momento especial de leitura contemplativa capaz de, talvez, levá-los a insights estéticos e existenciais. A bem da verdade, desde a Antologia Palatina, ou seja, da Grécia clássica, formas breves e lancinantes vêm sendo oferecidas ao público sequioso de conforto, sabedoria, elevação espiritual, etc.

Por certo os poetas e autores que determinam a priori o uso que se pode extrair de sua criação saberiam melhor do que ninguém, portanto, a resposta àquela insolúvel questão: para que serve, afinal, a poesia? Poesia, afinal de contas, serve para quê?

Mas não se espere por respostas desse quilate em livros assim. O máximo que eles alcançam é o próprio tamanho. Seja como for, para estas pessoas a sua poesia parece necessariamente abstrair da polissemia, da dúvida e da interpretação. É como se dissessem: esta poesia serve para isto, logo, se não é isto que você procura, ela não lhe servirá. A perspectiva não poderia ser mais fatalista. Nela, não cabe um “talvez”, um “pode ser” e nem a mínima sugestão. Ali, a poesia é que foi decidido de antemão ou não é nada.

Embora seja difícil resistir ao julgamento destas propostas, é preciso fazer mais do que o poeta ou os editores agora deram para exigir aos leitores. Assim como é possível (e desejável) que se busque os poemas de sobrevivência não por uma razão de sobrevivência e não se tenha o coração dilacerado antes de conhecer os poemas de Feroz, o que fica flagrante em ambos os títulos é o precário controle que os poetas têm de sua criação. Não bastasse a interferência de pulsões inconscientes, a ideia bakhtiniana de que a poesia maior se completa na interpretação e não se resume a sua forma original é generosa mesmo com autores tão restritivos.

Desta forma, pode-se aproveitar com deleite tanto os versos livres de Emily Skaja e sua potência juvenil ou as palavras de sabedoria de Ana Claudia Arantes sem que essas prescrições determinem tudo o que se pode extrair da leitura, seja em gozo estético ou percepção intelectual. Assim foi que pelo menos eu li a ambos os livros, sem saber se era para isso mesmo que serviam, e me parece que aproveitei mais do que se seguisse o que me ordenaram.

PS: Para quem desejar, a partir daqui, aprofundar estas questões, lembro da leitura do livro do Prof. Carlos Felipe Moisés, Em quê a poesia faz pensar? A versão digital do livro é livre para download na editora da UFPB.

Deficiência, previdência e risco social no Brasil

Um fantasma ronda os dependentes das políticas assistenciais brasileiras: o recadastramento. Não é novidade a aparição nem muito menos inovação do atual governo. No anterior, diversas vezes os titulares das pastas econômica e fazendária cogitaram medidas semelhantes, tendo no alvo os benefícios de aposentadoria e o próprio Benefício de Prestação Continuada (BPC) .

Interessa saber que se trata de um benefício de valor muito baixo e destinado a atender famílias com um renda per capita de até R$ 353,00. Ainda assim, de acordo com declarações de autoridades federais como o ministro Rui Costa, da Casa Civil, e Fernando Haddad, da Economia, seu somatório estaria impactando o orçamento federal numa esfera bilionária, contribuindo para gastos previdenciários extremos que estariam forçando ainda mais o déficit previsto para o ano de 2024.

Tendo sido cogitadas medidas legislativas unilaterais, como a edição de uma MP disciplinando os cortes e medidas administrativas, e decretos, a posição do governo acaba afligindo pessoas em situação de vulnerabilidade econômica que dependem do BPC para dar conta, como possível, dos altos custos de vida que incidem no Brasil sobre recursos privados de atenção à deficiência. A ideia do governo é mais impessoal: o estimado é que, com as medidas, poderão ser poupados até 26 bilhões de reais destinados às pessoas com deficiência que vivem na pobreza, fora do mercado de trabalho e idosos que nunca contribuíram com o INSS.

Órgão que provavelmente assumirá a tarefa do “pente-fino”, o INSS tem contribuído no diagnóstico do “rombo”. Para o Instituto, a judicialização de medidas concedendo o BPS, aliados ao aumento progressivo dos casos de autismo beneficiados e possíveis fraudes seriam as causas do incremento dos gastos sociais. Não se cogita, por exemplo, que a própria situação econômica do país esteja empurrando progressivamente pessoas para além da linha da pobreza. Certo ou não, é o modo que o governo encontrou de enfrentar a situação que, por natureza técnica e jurídica, corre o risco de agravar a vida dos beneficiários, uma vez que mesmo o teto de recebimento é muito inferior ao necessário provimento das condições de existência de quem quer que seja.

Desnecessária uma formação em Economia para se perceber que a sustentabilidade econômica das famílias de baixa renda está sempre por um fio. Ser pego no pente-fino por uma diferença mínima é, portanto, de uma indignidade contábil. Quem não paga as contas com uma renda per capita de R$ 353,00 não pagará com outra de R$354,00. A injustiça não se aplaca com isso, apenas se aprofunda. O propalado modelo social da deficiência, se serve para a confabulação teórica de classes abastadas, sacrifica sem clemência as pessoas mais pobres que não encontram saída a não ser desertar de atendimentos, de educação, de tudo. Essa espécie de solução técnico orçamentária que nulifica as individualidades tem por único objetivo desonerar o Estado para investimentos politicamente mais rentáveis. O que se destinaria numa avaliação biopsicossocial  a pessoas que por razões econômicas não podem mais se sustentar nem com o auxílio? Pois é para isso que serve a assistência social no modelo econômico vigente (não no “modelo social”), para ajudar a custear um sistema quase de todo privado. Sem nem isso, para quem disso precisa, restaria exatamente o quê?

Também se deve lembrar que, ao ser apontada a judicialização das concessões do BPC, o que se revela como background é que sua concessão pericial não tem sido facilitada. Isso impacta diretamente o trabalho da Defensoria Pública, órgão jurídico que visa proteger as camadas sociais menos favorecidas. Além disso, a necessidade expressa uma condição de vulnerabilidade social muito grande e, para imagem política do país, isso também não é nem um pouco positivo, ou seja, o pente-fino é também uma espécie de mal que vem para o bem — resta saber o bem de quem.

O governo, por sua parte, parece disposto a enfrentar os dissabores e o desgaste da medida. Da necessidade de cortes nos gastos públicos dificilmente alguém discordaria, mas no momento é o que está na linha de tiro. O que será decidido e realizado é outra situação. E o desgaste político, quando atinge a pobreza, parece sempre pesar pouco quando comparado a outras medidas que colaborariam com a melhoria da situação econômica. É uma decisão que será avaliada e pesada no futuro eleitoral por quem conta com o benefício. Que é uma tradição, nem se comente. Cortes e pentes-finos no andar de baixo no Brasil já são história.

Cancelando Wallace

Revista Parêntese, ed. 232

No mundo da história da ciência, nunca se apaziguaram completamente os ânimos em torno da prevalência de Alfred Russel Wallace ou Charles Darwin na elaboração da teoria da seleção natural. Até onde se sabe, felizmente não houve uma disputa por este legado, já que os seus trabalhos foram apresentados em um único paper em junho de 1858. Todavia existe, sim, e muito, a reivindicação posterior de que luzes em excesso tenham sido lançadas sobre Darwin (ou por ele próprio) em detrimento de Wallace, uma pessoa muito modesta e cujos interesses intelectuais paulatinamente o afastaram da “boa ciência”.

Mas isso teria começado ainda no séc. XIX e enquanto eles viveram. É o que se pode saber por meio das biografias de Darwin publicadas no Brasil, já que, de Wallace, não há em curso, parece, nem um projeto de tradução ou edição de qualquer biografia nem da sua prolífica obra para além de livros fora de catálogo. Não que elas faltem em idioma estrangeiro, inglês principalmente, mas aparentemente Wallace caiu fora do interesse editorial brasileiro, repetindo a escrita do seu obscurecimento em todo o mundo.

O problema deste obscurecimento parece começar por aí mesmo, talvez, na popularidade de um e de outro.

Do que se sabe, Darwin começou a trabalhar no que depois veio ser A Origem das espécies ainda quando viajava pelo mundo a bordo do Beagle, mas sua condição de saúde precária fazia com que evoluísse lentamente nas anotações e sua ambição inicial era de que o trabalho não resultasse apenas em um volume, mas um grande livro em muitos volumes. Eis que em 1858, conhecendo sua pesquisa e interesses, Wallace envia-lhe um resumo das suas observações altamente coincidentes com o que ele vinha desenvolvendo. Motivado por amigos cientistas que sabiam do seu envolvimento anterior, um trabalho conjunto de ambos é então apresentado na Sociedade Linneana, no mesmo dia em que Darwin sepultava numa capela perto de casa o seu décimo filho, o bebê Charles Waring. Um ano mais tarde, A Origem das espécies é publicada resumidamente, num volume só, e é um estrepitoso sucesso editorial, com a primeira tiragem esgotando-se em poucos dias.

É a publicação e o sucesso comercial do livro, muito mais do que o empenho de um quase heremita, portanto, o que determina a popularidade das ideias de Darwin. Neste meio tempo, Wallace envolveu-se em novas viagens e em outros interesses. Mais tarde, estes interesses divergentes à ciência contribuíram para a sua obscuridade. Também havia que Wallace, de origem social bem mais modesta que Darwin, passou a viver com muitas dificuldades e envolveu-se nos movimentos políticos socialistas. No entanto tudo indica que foram mesmo os seus interesses anti-científicos e propostas que ele fez neste sentido que o “cancelaram” naquele momento, pois tornou-se um elemento constrangedor nos círculos científicos, ainda mais que ele não se furtava a propor os debates espiritualistas com quer que fosse. Thomas Huxley (avô do escritor Aldous Huxley, conhecido como o “buldogue” de Darwin) parece ter sido quem mais empenhou-se nisto, inclusive colocando Darwin na última fileira das homenagens ao naturalista em seu cortejo fúnebre, em 1882. Mais ao final da vida, Wallace recebeu, no entanto, as maiores glórias científicas inglesas e foi lhe reestabelecida a reputação científica. Além das premiações científicas da Sociedade Linneana e da Royal Society, em 1908 recebeu a Ordem do Mérito, distinção máxima da Coroa Britânica.

A bibliografia de Wallace no Brasil é ridícula frente à sua imensa produção intelectual, porém entre os livros aqui publicados se encontram basicamente os destinados ao espiritualismo. Em 1870, mais de uma década após a publicação de A Origem das espécies, foi apenas quando ele publicou um apanhado do seu estudo evolucionista, com o livro Contributions to the Theory of Natural Selection. A esta altura, Darwin já era debatido, combatido e ridicularizado na imprensa londrina. Wallace tomou as dores de Charles e publicou outro dos seus livros traduzidos ao português, Darwinismo. Uma exposição da teoria da seleção natural com algumas de suas aplicações (EDUSP, 2010). O livro não é apenas uma defesa de Darwin, mas o seu reconhecimento de que o trabalho daquele precisava ser defendido como um patrimônio científico que também era devido a ele. E assim ele fez.

É bastante melancólica essa disputa tardia realizada por terceiros, vez que poderia ser muito mais explorada a relação de proximidade e mesmo as diferenças entre eles, não no sentido competitivo, mas visando enriquecer ainda mais o panorama da ciência evolutiva e também do conhecimento biográfico. Muitas vezes Darwin e Wallace apoiaram-se em questões muito importantes, inclusive de ordem financeira, pois foi Charles quem defendeu que a Royal Society destinasse a Wallace uma pensão em seu maior momento de dificuldade. Wallace quase prestou serviços a Darwin, de revisão e ilustração, mas as relações comerciais nunca se estabeleceram e Darwin parecia preferir o trabalho de desconhecidos a ter de reduzir a relação dos dois a termos empregatícios.

Em paralelo, mas não sempre coincidentemente, tanto Darwin quanto Wallace escreveram e publicaram muitos livros. Como um polímata, Wallace dedicou-se a muitos assuntos enquanto Darwin manteve seu foco nos estudos naturalistas. Porém num ponto específico eles voltaram a se encontrar: na adaptação da teoria evolucionista ao mundo dos seres humanos. Com Darwin, isso resultou em A descendência do homem, um livro até certo ponto constrangedor, pois apoiado numa visão spenceriana e imperialista e sem o brilhantismo original de A origem das espécies. Wallace não obteve melhor sucesso com Man’s place in the Universe, de 1904, no qual aliou a perspectiva evolucionista a uma espécie de teologia espírita metafísica reputada na época como imprestável.

Para além das diferenças e dissidências, Darwin e Wallace mantiveram intensa correspondência e muitas vezes Charles mudou de opinião em razão dos argumentos que Wallace lhe apresentou por escrito ou nas poucas visitas que ele fez a Down House. Na América do Sul e especificamente no Brasil ambos estiveram em momentos distintos. Darwin esteve mais ao sul, nos países platinos e no Chile, enquanto Wallace visitou o Rio Negro e a Amazônia. Em 2013, Wallace ainda não havia reunido admiradores suficientes para que uma campanha visando uma estátua em bronze obtivesse sucesso. O crowdfunding finalizou com 50% da meta e o monumento foi erigido com doações especiais. Está no Museu de História Natural, em Londres. No bicentenário de seu nascimento, em 2023, em todo o mundo promoveram-se iniciativas de recuperação do seu legado pela comunidade científica de todo o mundo. A infidelidade para com a ciência foi finalmente perdoada e Wallace reconhecido como uma das figuras mais relevantes (e por que não libertárias?) da ciência moderna.

Michael Jordan, poeta

de quando Michael largou a poesia e se tornou um gênio

Há quem maldiga o seu algoritmo por muito pouco. Não eu.

Eu tenho descoberto com ele coisas bem interessantes, como, por exemplo, que o maior jogador de basquete de todos os tempos também tentou a carreira de poeta. Ainda que tenha sido um poema só, e ao que tudo indica dedicado à sua mamãe, ele tinha tudo para se tornar também um gigante dos versos.

É isso mesmo! Quem me revelou isso foi um vídeo do Reels (aqueles vídeos aparentemente aleatórios que cronometram milimetricamente a atenção dos indivíduos para lhe dar e mais mais do mesmo, como se fossemos hamsters).

É por onde o algoritmo parece descobrir o ponto fraco do freguês, a sua droga favorita, a sua perversão secreta, a sua obsessão patológica e passa a lhe oferecer mais e mais daquilo para que ali ele fique o máximo de tempo possível, seja assistindo a vídeos de gatinhos fofos ou coisas que às demais pessoas não importa nem convém saber.

Os vídeos do Reels são, não mal comparando, a cracolândia das redes sociais.

Depois de um tempo variando a oferta de conteúdo, finalmente o algoritmo descobriu que, no meu passado, eu fui um jogador de basquete. Primeiro amador, depois ainda amador e finalmente ex-amador. Essa foi toda a minha carreira.

Mas descobriu o algoritmo que eu ainda hoje posso passar horas sem fim assistindo principalmente às jogadas dos meus diletos gênios da bola ao cesto.

Os gênios são muitos, em todos os tempos, mas divindade, como todos sabem, há uma apenas. Atende pela nome de Michael Jeffrey Jordan, o imortalizado número 23 do Chicago Bulls. Michael Jordan (MJ), o jogador poeta. Sim, talvez o autor de um poema só, escrito na High School, como saber? Mas que importa? Não se pode ter preconceito com detalhes secundários como esses. A poesia é um caminho aberto a todos que se atrevam a trilhá-lo.

Mas desde que eu vi aquilo, entendi subliminarmente que ele, além do basquete, sempre esteve envolvido numa, como eu quero demonstrar, poética.. Exagero? Provarei que não. Pelo menos me deixem blasfemar com liberdade..

Na verdade, nem é preciso que eu prove muito. Os vídeos de Michael estão aí e são auto explicativos. Basta que se perceba a sua atitude em relação ao objetivo do jogo e cada investida sua contra a cesta adversária para que se entenda a intensa catarse a que ele se sempre se entregou ao jogar.

No basquete, como todos que já o praticaram reconhecem, o objetivo da vitória final é secundário, detalhe decorrente de muitas outras coisas. O que importa é que a bola caia no cesto. Quantas tentativas num jogo profissional isso acontece para que o objetivo se cumpra? Centenas, milhares.. Mas cada uma das tentativas é um esforço total, isso em MJ é mais que evidente. E o incrível nele é que sempre o fez de inúmeras maneiras diferentes. Não é uma jogada especializada apenas, um lance de 3 pontos infalível, mas uma versatilidade aliada ao foco que o fez obter o que obteve: ser ainda hoje considerado o “goat”. O bode. O greatest of all times..

Na verdade, o que acontece no basquete são milhares de pequenos jogos dentro de um grande jogo. Há os arremessos de longa distância, média, infiltrações, enterradas.. Para cada uma dessas modalidade de encestamento, diversas possibilidades específicas: reversão, antecipação, explosão, etc etc etc.

Além disso, o jogo em quadra, os movimentos, a levitação, a percepção espacial e de oportunidades. Tudo isso praticado com uma necessidade de solução imediata, de pronto, irrefletida. MJ foi um mestre exímio em tudo isso. É como fosse um Musashi das quadras, um Bach, um Mozart, um Shakespeare, um Machado da bola em gomos.

Mas o que nele há de diferente dos outros jogadores?, indagaria um neófito no melhor de todos os esportes.. O Lebron James não é tão jogador quanto ele? Kobe Bryant não foi? Magic Johnson? Oscar Schmidt, o “mão santa”? A Hortênsia?

Esse é o tipo de heresia que não se pergunta jamais a um basqueteiro..

A questão, para o que interessa aqui, é que nele, MJ, há um senso de obtenção do efeito que é completo. Não há um acaso sequer. E mesmo no erro, o erro é menor, ele não é valorizado, perde o efeito, é como se não existisse em face da nova tentativa. Isso é o suprassumo da vontade criadora. E é aí que justamente reside o que chamo de “poética desportiva” deste hoje senhor sexagenário e multimilionário.

A bola tem de cair e ele vai empregar toda, completamente toda a sua energia para obter um, dois ou três pontos no épico que é cada jogo por inteiro. E isso a cada lance. É um desgaste de atenção descomunal, como sabe bem quem já tentou jogar basquete por mais de cinco minutos.

* * *

Apesar de que prefiro ver aqueles lances bem antigos em que Jordan simplesmente ultrapassa os adversários rumo a mais um dunk destruidor, tem um lance que é muito emblemático na sua carreira. Aconteceu num jogo contra o Los Angeles Lakers, na final do primeiro do seus títulos, quando suplantou outro gênio das quadras: Magic Johnson.

Numa infiltração em três passos (bandeja), nosso herói se depara com uma impossibilidade espacial, uma barreira imprevista, o que ocorre junto ao próprio esgotamento do seu movimento de três passos. Pois de algum reflexo cinético felino, ele simplesmente muda a trajetória no ar e faz com que a bola passe por um espaço humanamente impossível e que não se encontrava bloqueado pelos dois defensores. Mas a bola passa. Passa e cai. Dois pontos só e daí, diria uma pessoa abilolada pelo pragmatismo.. Uma obra-prima do esporte, diriam os fanáticos.

Michael Jordan – famous switch hands layup

Você provavelmente já viu um cesto de lixo de um escritor que faz justiça ao nome, isso antes do computador.. É o mesmo do que se dá na quadra de basquete. Muitas bolas fora até a obtenção do que realmente tem valor.

Isso independente das suas escolhas formais e estéticas — embora elas possam até garantir algum efeito extra no lance (mas jamais antecipar seu efeito). Isso sempre depende muito de quem joga, dessa habilidade, mas também, complementarmente, de quem assiste. É preciso fazê-lo, simplesmente. Just do it, como diz o lema dos tênis..

Pois assim precisa ser um poema. A bola tem que cair.

Nessa minha livre analogia, o poeta tem que fazer tudo, absolutamente tudo, para que a maldita bola caia. Isso de atirar para cima e talvez ela caia, com o perdão da metáfora, não é a mesma coisa. Não tem valor algum. É sorte. Acaso. Valem dois pontos no placar, mas não têm graça alguma..

A ação poética, nessa perspectiva comparativo-desportiva, é o emprego dessa energia, sem perda de tempo, eficiência ou atenção. O treino não vale. A brincadeira também não. Magic Johnson, um brincalhão, diziam que era muito mais competitivo que Michael Jordan.. As pessoas enganam muito.

A ação se dá quando o sujeito entra em quadra e faz tudo que pode fazer, com o maior empenho possível, até que pareça aos olhos dos outros uma trivialidade (que ele, no entanto, sabe perfeitamente o quanto lhe custou obter).

É o que fazia Michael Jordan ao jogar.

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O poema juvenil de Michael Jordan é imprestável. Felizmente ele foi jogar basquete e não continuou naquelas chorumelas..

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A má notícia aqui é que o algoritmo também descobriu que eu tenho fascínio em vídeos de répteis. Valei-me Freud, mas eu simplesmente gosto de observar a existência desses seres primevos. Se querem me interpretar, bom proveito, eu não me importo..

Mas eu tenho pensado há tempos também numa aproximação poética sobre os répteis.. Que que tem de mais?

* * *

Estou pensando nisso enquanto assisto às finais da NBA..

Que jogadores canhestros e desgraciosos…

* * *

Que os dragões os devorem vivos..

Desentendimentos porto-alegrenses

Não sei se com todo o mundo é assim, mas eu vivo com a cidade onde vivo uma espécie de relação parental. Não é como habitasse um logradouro, mas um cômodo da sua casa. Ou como se ela fosse um corpo gigante e eu vivesse em um de seus órgãos, porque, afinal, respiro dentro dela, as suas umidades, e quando abro as portas e janelas da minha casa dou de cara invariavelmente com as sujidades que a noite deposita no que seriam, talvez alucinadamente, as suas veias e artérias.

Como relação parental, temos bons e maus momentos, eu e a cidade. Nunca compusemos a imagem idealizada da família margarina e, felizmente, tampouco chegamos à disfuncionalidade tolstoiana. Tentamos manter um respeito insubmisso, talvez herança que eu traga da minha educação fronteiriça.

Se me revolto, a ela eu reservo o mesmíssimo direito. E ela me fustiga, me fustigou duramente nesse maio último, e a todos que estamos aqui. Sim, porque não foi a natureza mortífera em revolta que nos sacrificou, eu acho, mas a própria cidade que imaginamos algo maior do que ela efetivamente era, como a imagem distorcida que um filho tem de um pai ou de uma mãe.

Essa desproporção, essa distorção que em mim cria o mesmo sentimento de um adolescente que não se conforma em “parecer”, em “fingir” para o que “os outros poderão pensar”, mas que, sem saber ou poder dar um desfecho para a revolta que se estabelece, acaba incorrendo num sofrimento administrado a duras penas. Não sempre amargo, isso não, mas com muitos silenciamentos, para que não se rompam as suturas de soluções tão precárias como as que lhe sabemos ter provido. Com alguma desatenção também..

Como um corpo humano, a cidade também sangra. E, nesse transbordo violento, desconhece qualquer limite. Avança com a mesma força contra os museus, shoppings centers, livrarias, edifícios e os mais humildes endereços. É a sua inclemência cega que nos apavora, como se ela acordasse numa manhã como uma espécie de touro louco solto na praça.

Mesmo nesses dias, vejo com os olhos marejados o esforço daqueles que independentemente de qualquer coisa, digo, qualquer coisa mesmo, prestam socorro a quem quer que seja, digo a quem quer que seja mesmo. São pessoas agregadoras, cujo esforço é digno reconhecer e agradecer, sem olhar a nada além do que apenas isso. Talvez sejam os braços mais fortes da cidade, ou talvez nem tenham esse poder se comparados a outros, mas nessa calamidade revelaram-se assim. Ou se forem os filhos melhor nutridos da cidade, pode ser que sim (não tenho nem farei esse levantamento), nesse caso é justo que sejam os primeiros a arregaçar as mangas, não haveria de ser os combalidos, os alagados. Seja como for, é bom para a cidade que possam fazer e façam.

No ano passado, não, não foi no ano passado, foi neste ano, ali em vésperas da entrega do Prêmio Açorianos (parece que já fazem milênios), e estive ao ponto de ter de pensar em um fala de agradecimento caso ganhasse aquele prêmio tão porto-alegrense, me ocorreu uma imagem ao mesmo tempo familiar (e complicada), de que a premiação me servisse de uma certidão de nascimento tardia. Uma adoção, nesse caso. Não foi o caso, não aconteceu e então não precisei declarar em público o meu estado de filiação para com a cidade. Mas nem por isso vivo a sensação do “enjeitado”, não mesmo. Estou aqui por opção e gosto de manter comigo os ditados interioranos, no seu pragmatismo, com os quais eu fui criado. Nada disso de “virar o cocho” ou “cuspir no prato” me agrada. Todavia a falta do documento comprobatório me devolve, às vezes, em secreto, a ambição juvenil de abandoná-la para sempre. E eis que de um momento de caos completo, a velha cidade, não exatamente a que eu conheci na adolescência real ou a de agora, parece que ouço-a suplicar silenciosamente, como costumam fazer os velhos e orgulhosos gaúchos…

Quem não está aqui, por certo não pode ouvi-la bem nem imagino que poderiam entendê-la, mas eu, não sei por que razão, julgo que posso. E que preciso prestar-lhe pelo menos atenção. O seu canto ainda é fraco, morrente, está já nos que não estão mais aqui (não estão?), nos lugares que sobrevivem às construções que a tentam falsificar, como as de um antigo calçamento ou nas vielas do Centro abandonado por áreas mais nobres.

Quando ando ali, ela me esclarece (não eu) que é inacreditável que sobreviva mais do que foi feito em 1935 do que o realizado ontem. Ou ainda antes. Essa memória que nos sonambuliza, como se apenas em sonhos nos fosse permitido transitá-la na forma que merecia, sem penduricalhos horríveis que foram pendurando em sua face, “rótula das cuias”, um shopping ao lado do outro, uma estatuária medonhenta, nem falo dos ex-cinemas.. Uma desfiguração que a cidade aceita porque incapaz de reagir, nos seus 252 anos. Uma idosa com mais parentesco em Montevideo ou Buenos Aires do que em Abu Dhabi, embora os arquitetos que agora se dão ao trabalho de imaginá-la não percebam a sua incompleição com o faraônico. Ela, uma senhora modesta por necessidade, nem sempre se dá muito bem com as novas gerações de gente que nasce ou vem dar aqui.

Se às vezes me revolto contra a cidade, eu espero que ela entenda como uma prova de um amor, mesmo que um amor às avessas. É um desgaste de 30 anos de relação. Acho que até um pouco mais que isso dura já essa “união”. Às vezes, sinto vontade de sumir desse mapa que a água tomou sem mais cerimônias. E sinto também a culpa por esse desejo. Brigamos sem nos ferir demasiadamente. Não suportaríamos. E nesses bancos geminados, jogados ao esquecimento, (por que o que parece esquecido e jogado por aí sempre nos comunica mais que o anunciado com pompa, alguém pode me explicar?), sei que voltarei a me entender com a cidade, ainda que os termos com que faremos não estejam plenamente claros.

Em breve, a inundação se tornará lenda. E o inverno, espero, não há de ser tão rigoroso. Saio com um casaco que agora me estorva as mãos, afinal, é outono.. As meias dos pés estão suadas de caminhar. Convém que eu não demore muito mais e volte para casa antes que anoiteça.


𝗜𝗺𝗮𝗴𝗲𝗺: bancos originais do Auditório Araújo Vianna (1927), atualmente no Parque da Redenção. A foto é minha, de 2024 ou 2023..

Poesia e mito indo-europeus

Eu não entendo uma linha de hitita, do antigo nórdico, do avesta, do protocelta, do védico e nem do grego. Mesmo assim, desde que o abri pela primeira vez, não consegui largar mais esta lindeza de livro que a editora Mnema lançou há poucos anos por aqui, do filólogo inglês Martin L. West. É o livro que tenho lido neste período extenuante que temos vivido aqui no RS.

Eu certamente tenho me valido dele como forma de levar minha mente para muito longe daqui, ao menos pelo tempo possível, da leitura. Mas isso se deve muito mais à fluência com a qual o livro foi escrito do que por uma razão “escapista”.

Mas M. L. West, o autor, ele tem me feito acreditar que, se não conheço os antigos idiomas a que ele se refere, consigo compreender perfeitamente como estes povos antigos articulavam linguagem e arte poética.

Para além da constatação de que os recursos retóricos e linguísticos de que dispomos hoje têm uma história mais antiga do que presumimos, o livro em si é uma viagem muito completa (e complexa, mas não inacessível) através do tempo, comunicando culturas que se transformaram e dissociaram séculos afora, mas mantendo equivalências que os filólogos revelam com a mesma facilidade com que eu, por exemplo, posso abrir uma janela ou folhear um livro. É uma naturalidade espantosa e acachapante.

Também não demora muito para que se dê a percepção de que seu autor não é apenas versado num ramo linguístico x ou y, um especialista, mas que detém aquela condição meio que do magnífico, que é a capacidade de transitar entre ciências sem vacilar, algo bastante incomum quando comparado às fragmentárias ciências humanas do séc. XX, nas quais as teorias tornaram-se disciplinas mais ou menos auto suficientes e, talvez por isso, pareçam aos leigos, como eu, sem muito apoio no tempo e nem no espaço.

O leigo é como um aluno, um desiluminado. E não são todos os autores (na verdade, uma minoria) que mantêm a dignidade de estabelecer contato com a sua condição precária. A quinta-essência desse distanciamento parece se dar justamente na filosofia da linguagem e suas hipóteses teóricas contemporâneas, as quais a linguagem poética, sustentada na metaforização e suas figuras, esclarece às vezes com mais sutileza do que em teses que chegam ao extremo hermético da algebrização. Os leigos, exaustos e impotentes, não tomam parte nessa especialização, até porque o caminho oposto, o da historicização, é muito mais encantador, como costumam ser os nomes em relação aos números, pelo menos no meu gosto..

Apesar de ser um livro de filologia antiga e centrado no estudo comparativo das línguas indo-europeias, é um trabalho de encantamento no qual o autor se dirige à mitologia mais ancestral com uma facilidade desconcertante. Então, pode-se pensar que se trata também de um livro de mitologia e religião comparadas. Mas não foi dessa forma que eu o li, ou melhor, estou lendo ainda. Eu estou lendo como literatura, como se as referências que ele realiza sobre o mundo da antiguidade clássica fossem personagens.

É dessa forma que eu sempre li os livros de história antiga e mitologia, desde J. Frazer até M. Eliade e Jung. É uma leitura parcial, sem dúvida, mas que me desobriga da tarefa de me deter no incompreensível do detalhismo e de aproveitar a escrita como uma tarefa “homérica”, de quem se serve da eloquência alheia para desnutrir os limites da própria ignorância.

Down House, 1858: o memorial de Charles Waring Darwin

Eu sei que a minha falta de pressa quase exasperou os editores da Editora Dialogar, especialmente a Letícia Möller, por divulgar a chegada de “Down House” do parque gráfico. Bom, este é um livro que está nascendo há quase dez anos, então isso explica a minha falta de pressa. As pessoas que me julgam impaciente na verdade cometem uma grande injustiça. Eu tenho muita paciência e cautela com as coisas que me disponho a fazer.

Nestes dias que já estamos com o livro temos trabalhado bastante no sentido de viabilizar o seu lançamento e outras providências. Eu nem digo que eu tenho a boa sorte de ter uma editora tão compenetrada quanto ela, pois não é sorte, eu tinha certeza de que seria assim e fico muito feliz que agora, sim, temos data e local de lançamento deste livro que, como peça gráfica, é uma joia nas suas 180 páginas. Isso vale para a concepção, para o design maravilhoso bolado pela Cintia Belloc, para tudo.

Em relação ao texto e ao que o motivou eu convido a que visitem o site que preparamos para divulgar e também para comercializá-lo. Em breve, espero poder dar mais informações e tb tirar dúvidas dos leitores e curiosos. Até lá, estaremos trabalhando para que essa breve história possa chegar o mais longe possível.

Vou aproveitar a oportunidade e registrar meu profundo agradecimento à minha querida amiga Ana Claudia Brandão, que gentilmente leu e só depois escreveu a orelha do livro, como tem que ser..

O lançamento vai ser no dia 25/05, no Museu de Ciências e Tecnologia da PUC RS e haverá um debate prévio com os os professores José Roberto Goldim e Vivian Missaglia.

O livro já está à venda tanto no próprio site como no da editora. E não é pré-venda. Quem comprar, já recebe, sem demoras.

O site fica em https://downhouse.online

Inventário (agora também em e-book)

Ontem venci algumas reservas e traumas e decidi por colocar na Amazon uma versão digital completa do Inventário, antologia dos meus poemas preparada e editada em 2022 pelo meu amigo Thomaz Albornoz Neves.

Por muito tempo, defendi a ideia de que um e-book de poesia seria uma coisa indigna. Daí dá para se ter a ideia do porte da minha própria resistência em levar adiante a ideia.

Acontece que se parece simples publicar um livro (e não é), comercializá-lo é ainda menos simples. O regime e a política de vendas da maior parte das livrarias, considerado econometricamente, é muito refratário às pequenas edições e pequenas editoras.

Apenas considerando-se as margens de consignação (40% do valor de capa) o resultado comercial objetivo da publicação de um livro é praticamente um milagre, sendo que um milagre muito facilitado às grandes casas que decidem pela sua vontade a forma pela qual seus produtos serão comercializados.

Nada disso é muito simples.

Não são poucas as pequenas editoras e indies que priorizam suas venda nas marketplaces em função de percentuais menores e outras facilidades. É complicado, pois justamente as bigsellers estão sempre no alvo dos problemas do preço do livro e tudo isso.

Mas eu não tenho nem intenção de resolver problema dessa monta nem sequer de me dedicar a compreender essa dinâmica. Já tentei em muitos artigos que escrevi, mas é uma situação que me fartou ao ponto de não desejar mais tocar no assunto.

Minha intenção, por outro lado, é apenas tornar um pouco mais fácil o acesso ao livro. Detalhe que não estou vendendo por ali exemplares físicos dos livros, apenas a versão em e-book. Também para vendas de impressos a Amazon impõe muitas condições, embora a pirataria de títulos ocorra por ali, e não pouca.

Bom, não acho que sejam edições comparáveis, mas, para quem não se importa, é uma opção. Também tem que por ali se pode ler, na amostra, um bom pedaço da parte inicial do livro. É uma chance do/a leitor/a decidir se vale gastar seus cobres ou não.

A versão impressa continua sendo comercializada nas livrarias Cirkula e Érico Veríssimo, em Porto Alegre. Também diretamente comigo, por meio deste link aqui (https://sacola.pagbank.com.br/4fe0d95e-a585-4d1c-8484-d17c2f4a2285).

Pela diferença de valor, eu quebrava o cofrinho das crianças e comprava o impresso, mas a ideia é usar a máquina do Bezos como catálogo e divulgação mesmo, já que as bibliotecas (as brasileiras pelo menos) infelizmente não se prestam mais a essa finalidade.

Uma vizinha

Até ontem, vivia nessa casa mantida com capricho e cuidado uma vizinha que viveu longos 104 anos de idade.

Quando instalaram numa das lojas do meu condomínio uma lancheria eu fui um dos que não gostou muito da ideia. Questões de higiene me preocupavam, afora um possível incômodo com os transeuntes e frequentadores.

Ela, não.

A Dona Ida estava sempre por ali. Numa mesinha, às vezes acompanhada, às vezes sozinha, quando tinha jogo do Colorado ela sentava-se e bebia uma (ou mais?) cerveja de 600 ml enquanto o time fazia das suas em campo. De acordo com o dono do estabelecimento, era pé quente. Dificilmente o Inter perdia se ela assistia.

Às vezes, eu a via tomando a linha 77, do Menino Deus, e descia poucas paradas adiante, no Zaffari. Fazia suas compras e tomava um táxi de volta para casa.

Ao lado da porta de entrada da sua casa, num banco de madeira, às vezes eu a via sentada com alguma visita. A casa tinha um ar de descanso e só de pousar nela os olhos me acontecia um degelo. Na semana passada ela estava ali, se não me engano. Cuidando com os olhos alguma coisa, um passarinho, a altura da grama, não sei o quê…

Talvez alguém herde ou compre a sua casinha. Não sei se tinha parentes, na verdade falei com ela uma vez apenas, quando num dia de São Cosme e Damião ela postou-se no portão oferecendo balas e doces para as crianças que passavam. Uma vez eu e minha filha passávamos ali e ela lhe ofereceu uma boa porção.

A rua já está bem mais feia sem ela, que gozava da saúde que todo o idoso merecia ter. Decerto não foi de graça e nem por uma benção que ela obteve essa vitalidade centenária. Por isso, para mim ela era uma pessoa paradigmática. Tomar sozinha um ônibus nessa Porto Alegre asselvajada, entornar uma Antártica e ainda por cima torcer para o Colorado, aos 100, não é para qualquer um.

Procurei aqui, mas não encontrei, uma reportagem feita para a tevê com ela. Não encontrei no Google, que já começou a me oferecer – só pode ser por desaforo mesmo – cadeira de vovó e ofertas de casa de repouso.