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Prêmio AGES Livro do Ano 2024

O Prêmio AGES Livro do Ano 2024 foi entregue no dia 4 de dezembro de 2024, no Espaço Força e Luz, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. A cerimônia premiou as melhores obras literárias publicadas em 2023 por autores gaúchos ou residentes no estado. 

Na categoria Narrativa Longa, o escritor Lucio Carvalho recebeu o Prêmio AGES por “La Minuana”, publicado pela TAN. O troféu foi entregue por Max Ledur, presidente da Câmara Rio-Grandense do Livro.

A cerimônia de entrega do Prêmio AGES Livro do Ano 2024 ocorreu no dia 4 de dezembro passado no Espaço Força e Luz (Rua dos Andradas, 1223, Porto Alegre/RS).

A presidenta da AGES, Liana Timm, conduziu a premiação, ao lado da vice-presidenta cultural da entidade, Cátia Castilho Simon.

Nesta edição do Prêmio AGES Livro do Ano, a AGES – Associação Gaúcha de Escritores celebrou a literatura produzida no Rio Grande Sul com dois prêmios especiais, entregues à escritora Valesca de Assis e ao escritor Tabajara Ruas, que têm se destacado no cenário literário.

Também foi feita uma homenagem ao escritor e produtor cultural Doralino Souza da Rosa, editor da revista Paranhana Literário, falecido este ano.

Confira os livros escolhidos como vencedores do Prêmio AGES:

NARRATIVA LONGA
La Minuana“, Lucio Carvalho (TAN)

NARRATIVA CURTA
Vespeiro“, Irka Barrios (DarkSide Books)

CRÔNICA
Cevando a palavra“, Demétrio Xavier (Coragem)

POESIA
AB Cena“, Sabrina Dalbelo (Urutau)

INFANTIL
Para onde vai, Dona Lesma?“, Helo Bacichette (Elos do Conto)

JUVENIL
Aguapés“, Giovana Oliveira (Urutau)

TEXTO DRAMÁTICO
Bonecas de argila & Cambalache 2.0“, Jorge Rein (Bestiário)

ESPECIAL
Meu Corpo Negro: Memórias“, Nathalia Protazio, Marieta dos Santos da Silveira, Tônio Caetano, Tiago Maria e outros (Independente)

TRADUÇÃO
Poemas japoneses de morte“, Roberto Schmitt-Prym (Bestiário)

NÃO-FICÇÃO
Nós não caminhamos sós – Histórias de isolamento no antigo Leprosário Itapuã“, Ana Carolina de Oliveira (Sulina)

Neste ano, 66 escritoras e escritores de todo o Rio Grande do Sul, integrantes da AGES, participaram da escolha dos vencedores do Prêmio AGES Livro do Ano 2024.

O júri especializado que indicou os finalistas foi composto por:

POESIA E CRÔNICA: Vitor Diel, Divanize Carbonieri e Ana dos Santos

NARRATIVA LONGA E NARRATIVA CURTA: Dani Langer, Júlia Dantas e Dione Detanico

DRAMATURGIA E ESPECIAL: Janaína Pelizzon, Marília Barcellos e Lígia Sávio

TRADUÇÃO E NÃO-FICÇÃO: Vera Ione Molina, Ronald Augusto e Marília Kubota

LITERATURA INFANTIL E LITERATURA JUVENIL: Noia Kern, Vera Teixeira Aguiar e Vanessa Ratton

A noite de celebração da literatura rio-grandense teve ainda o lançamento da antologia “Literatura Grande do Sul”, com poemas, contos e crônicas escritos por associadas e associados da AGES.

Fotos: Íris Borges/Divulgação AGES

Fonte: Literatura RS / AGES

Necessidade de escrever

Todo o mundo já ouviu alguma vez daquela pessoa que escreve “por necessidade” (já disseram isso a meu respeito, inclusive). O que se quer dizer com isso para mim é uma coisa meio insondável. De que necessidade estamos falando? Editorial? Comunicativa? Confessional? Financeira? Uma só necessidade? Duas? Muitas?

Não há como saber. Porém de alguma forma que também não compreendo completamente, me parece simples distinguir um texto literário escrito “por necessidade” daqueles escritos por outros impulsos. Não leva muito tempo. Na ficção, até ao final da segunda página isso se esclarece por conta própria. Na poesia, me parece que ainda no primeiro fôlego, custe isso um verso, uma estrofe ou o poema inteiro. Há poemas (raros) que se vê que foram escritos sem respirar. Ou pelo menos parece que se vê.

O instrumental é simples e totalmente intuitivo, já que as ferramentas disponíveis ao exame do escrito são sempre superficiais e os escritores são artificiosos ao extremo no sentido de criar jogos de espelhos nos quais tanto mostram-se como ocultam-se ou deliberadamente disfarçam-se. Às vezes, kafkianamente, fazem tudo isso ao mesmo tempo. De qualquer modo, parece haver para cada pessoa leitora uma chave para além das chaves. A chave mestra, a chave micha com que cada qual invade o literário para reconhecer o humano da criatura.

É um segredo para além do lacre. Não fosse isso viável ou desejável, desnecessária seria toda a atividade literária. Bastariam o texto dissertativo e o informativo, mas mesmo o mais lúcido texto analítico nos pesa como um rochedo – e o inacreditável para mim é que muitos escritores de literatura (e até de poesia) parecem também aspirar a essa condição, de que seu texto se consolide e seja o mais direto possível, indubitável, recitativo.

Isso me parece ser mais ou menos como a abolição do mistério da poesia: a escrita sem necessidade. É como se fosse uma arte tomada dos bagaços depois que o fruto morreu.

No frigir dos ovos, nem uma emoção estética se repete. Garantias? Nem uma. O que a alguém parece genial a outro parece apenas insuportável. E tematicamente há quem se comova mais com a poesia amorosa, outros com a ideia de Deus, com a natureza, a vida urbana, etc etc etc.

Mesmo assim, o que me parece é que a emoção estética individual seja mero prolongamento de expectativas prévias, coincidente com crenças, ideologias, etc. E que rejeitamos a diferença também numa atitude instintiva e irracional. Antipatia? A outra face da simpatia.

Mas em todas as entrevistas com escritores que já li, nunca encontrei uma em que fosse indagado à pessoa a razão pela qual ela faz o que faz. Parece implícita a necessidade, curiosamente expressa numa desnecessidade.

Mesmo assim, a única vantagem aparente, ou diferenciação, da arte produzida sob o império da necessidade é que ela entrega mais nitidamente do autor do que, por exemplo, um complexo de racionalizações. E se há uma curiosidade superior no ser humano é a de reconhecer no outro a sua semelhança. Há quem desista das pessoas nesse intento e dirija-se a Deus (ou a ninguém), mas, ao contrário da religião, que isola e serializa as pessoas, a literatura é um poderoso artifício de conexão. Basta ver o quanto e como se reúnem os escritores em torno aos seus interesses comuns. Também isso parece ser uma espécie de necessidade. Todos procuram mais ou menos declaradamente aqueles que compartilham seus códigos, valores, repertório, etc.

Mas a necessidade que move escritores é também objetiva, não apenas um desejo de transbordo expressivo. Tornar a pessoa e o self compreensíveis me parece ser uma grande força mobilizadora. Isso é que diz Hannah Arendt em ‘A condição humana’, entre muitas outras coisas. Ela, que dizia pensar melhor por escrito, prova talvez de que a elaboração verbal escrita seja mesmo um dos pontos mais altos da inteligência, pensava também que os sentimentos humanos não sejam narráveis. Essencialmente, ninguém pode compreender tudo o que há e se passa com o outro. Pode compartilhar. E pode também não compartilhar.

Essa talvez seja a razão pela qual escritores usem bastante as redes sociais. Como se pudessem encontrar eco nesse vale tomado de gente, já que o declínio da leitura em livros é meio que evidente (e até certo ponto uma experiência incomunicável). E até escrever – por alguma necessidade – coisas que pareçam desnecessárias e justamente a respeito da própria necessidade.

O que parece?

What the hell is a flowery boundary tree?
Cormac McCarthy

Ainda estou indo, na verdade, ele disse sem olhar para trás, apenas pressentindo que eu o seguia sem nunca alcançá-lo, sem nunca emparelhar-me em sua marcha ao lado do acostamento derruído da rodovia que, pelo seu próprio propósito, nos levava de volta à fronteira, cada qual em seu tempo.

Como se num feriado, em dias em que as horas parecem durar ao menos o dobro ou triplo do que custam realmente a passar, notei que não passava nunca um carro ou caminhão pela estrada dividida ao meio por tracejados apagadiços. E caminhávamos e falávamos cada vez menos desde que eu havia dormido e acordado nesse lugar ao mesmo tempo estranho e familiar: o caminho a que regressávamos.

Quando eu disse que faríamos, pelo jeito, todo o trajeto a pé, ele não se incomodou e até virou um pouco em minha direção com o olhar irônico de quem perguntava se eu já estava cansado. Não, não era isso, em sonhos a gente pode caminhar a eternidade e não cansa, disse-lhe em voz alta. Foi a última vez que ouvi sua voz, em retorno: é disso que se trata.

Depois não falamos mais, o dia não acabou mais, o tempo não passou e nem um ser vivo encontramos ao avançarmos indefinidamente o caminho do sol poente. Pelo jeito aquele seria também um entardecer eterno, interminável. Mas era também o único modo de compreender aonde estava indo o homem alto, de largas passadas, que olhava a paisagem como se fossem coisas afilhadas a ele os postes e pedregulhos, sintomas da matéria sob os pés, disso que chamamos vida e que nos vai sumindo aos poucos, fatalidade das fatalidades.

Ao alcançarmos o topo de um aclive, uma coxilha, notei o que parecia ser o dedilhado de um violão. Ele não pareceu notar e seguiu caminhando sempre olhando em frente, sempre em frente. Havia algo de sinistro e dissonante naquele som, assim como a árvore de que provinha. Uma árvore de folhas vermelhas, como um coração cansado, que parecia querer me lembrar de alguma coisa.

O contraste agreste, inacessível, de um verde amarelado, o pastiçal sem fim e roído por animais que já não se viam, com o súbito vermelho, fez com que detivesse meus passos. Ele continuou os dele e achei que nem olharia para trás, para certificar-se de que o seguia, mas ele olhou e sorriu em minha direção, como se estivesse satisfeito de saber que eu estava vivo – para ele mesmo, isso não parecia fazer diferença. Não havia feito isso desde que nos encontráramos ali, naquele deambular. Entendi que estava feliz de que o seguira até aquele ponto, mas, de agora em diante, só ele seguiria ao seu destino, qual seja, a ausência de qualquer destino, e eu continuaria preso ao meu.

O espírito da literatura não é o livro

Não me parece que haja muitos lugares mais enigmáticos do que o que havia por detrás dessa porta, em meados do séc. XIX. Hoje, não. Hoje é apenas o quarto de um museu. Ele fica em Amherst, no norte dos EUA. É a porta do quarto de Emily Dickinson, em cujas frestas ela teria guardado — reza a lenda — os seus envelope poems. Talvez o quarto de Fernando Pessoa no Largo do Carmo, em Lisboa, tenha sido assim também fascinante. O pequeno quarto onde Simone Weil morreu sozinha no Sanatório Grosvenor, na mesma Ashford pela qual anos antes haviam passado Charles Darwin e sua filha Anne, em busca de uma salvação que não veio para a menina.

Mais certo é que por detrás dessa porta fosse apenas possível encontrar o quarto de dormir de Emily, a cama onde contorcia-se em razão das dores causadas pela nefrite, sua pequena escrivaninha quadrada e uma única cadeira, na qual ela sentava-se para escrever. Tampouco transparece mistério no quarto de Pessoa. Ali estaria o baú entreaberto com anotações de criaturas que por seu intermédio puderam conhecer este mundo, uma estante dupla de livros e alguma garrafa vazia de vinho ou absinto no piso. Detrás da porta em Ashford, o colchão que uma Simone desnutrida e diáfana deixou intacto, para o próximo convalescente.

Não escolhi esses três nomes por sua aura, nada disso. Escolhi porque estão no topo do meu panteão, um pouco acima de outro autor que morreu praticamente inédito: Franz Kafka. São deles as coisas mais impressionantes que já li, embora de Simone não como poeta. A não ser por um poema chamado justamente “A porta”, o seu é um texto do pensamento, e de “graça”, mas de uma força impressionante.

É uma coincidência estranha que os nomes acima, quase todos eles permaneceram em vida praticamente inéditos em livro. Pessoa ainda chegou a ver Mensagem, Kafka uma coleção de contos, mas tanto Simone quanto Emily publicaram apenas em jornais e suplementos. Nada que denunciasse a imensidão da obra por trás de cada um deles. Mas talvez não seja coincidência, apenas que se dedicaram mais a escrever do que publicar. Emily parecia ter muitos receios de se expor e de ter uma má apreciação. Pessoa acho que não conseguiu se organizar para tanto, embora seus planos fossem até conhecidos de amigos próximos. Kafka incumbiu um amigo para queimar seus originais, não sei se sabendo que o outro não o faria. E de Simone Weil a obra foi mantida por amigos para depois de sua morte ser editada e divulgada por Albert Camus.

Tenho um carinho muito especial pelos autores inéditos, reservados. Não estou falando daqueles que não conseguem editora (hoje alguém não consegue?), mas daqueles que não se entregam à carreira literária, mas vivem tão intensamente a literatura que ela praticamente se consome neles mesmos. Porque são pessoas organizadas por outra ordem que não a do auto-proveito, muitas vezes é preciso que atravessem a última porta para que só então sejam valorizadas. Às vezes, nem assim. Acho isso de uma indignidade terrível, ainda mais porque muitas vezes este espólio é objeto de familiares desinteressados na pessoa e na obra, mas não nessa exposição e exploração comercial. Muito complicado isso.

Neste ano de 2024 eu perdi um amigo muito especial, que morreu praticamente inédito em livro. Salvo um volume juvenil, feito com parcos recursos, sua obra está praticamente perdida. E o que ele mesmo não eliminou, decidiu por não guardar. Então, simplesmente perdeu-se. Eu tenho comigo algumas coisas que ele publicava num blogue e eu salvei, mas não é suficiente para um livro. No meu juízo, a sua poesia é superior a de muitos livros bem-sucedidos por aí, mas me incomoda mesmo é a consciência de que ninguém saberá das horas intensas que ele dedicou à escrita. A intensidade terá sido apenas aquele frêmito momentâneo que poucos conseguem fixar a contento no papel. Este foi um poeta que me abriu a porta e eu pude conhecer um pouco, mas quantos há, como ele, que o mundo ignorará por completo?

No ano passado ou retrasado eu escrevi um prefácio para um livro que deveria existir e ser celebrado por quem gosta de boa poesia. A poeta me pediu para escrevê-lo e eu acho que nunca gostei tanto de escrever um prefácio como o para ela, mas ela não conseguiu ainda se organizar para publicar. Eu lamento, mas entendo perfeitamente. Fato é que obras como a sua estão em falta, no meu juízo, enquanto livros não faltam. É uma pena que as coisas sejam assim, mas cada vez mais eu me convenço de que foi assim sempre.

A história do livro é muito violenta e tem capítulos cruéis. Ao lado disso, feliz e incrivelmente o espírito criativo se mantém. A literatura se mantém a despeito do livro. Mas na minha idade eu já testemunhei injustiças e apagamentos absurdos. Talvez as obras de uma Emily Dickinson ou de um Fernando Pessoa hoje não fossem sequer notadas, ou menosprezadas. Talvez Kafka preferisse lançar ele mesmo seus livros às chamas. É um mundo que se fecha por dentro, o do livro, e que de certa forma sufoca os leitores.. Mas é preciso salvar as obras que estão morrendo por descaso com a memória cultural e as que estão agonizando dentro da casca do ovo por falta de uma mínima atenção, de espaços, de tudo.

Isso não tem a ver com o livro ou o sucesso comercial ou as editoras ou as livrarias ou os suplementos, tem a ver com a literatura. A internet, que lucra com a objetificação de tudo, com a inteligência artificial vai se tornando cada vez mais a “internet das coisas”. A literatura na internet não precisa seguir esse modelo, mas, se acreditarmos apenas nisso, é no que ela fatalmente acabará se tornando.

O calceteiro

Hoje o calceteiro não veio. Havia ameaça de chuva, mas a chuva também não veio. Nem um nem outro vieram. Não sei onde foi parar o som das repetidas marteladas que ontem repercutiram tanto e que hoje repercutiriam outra vez. Havia um partitura pendurada no ar que não se sonorizou.

Às vezes fui a janela observá-lo: ele selecionava como um cirurgião entre tijoletas intactas e machucadas. As machucadas ele ia destroçando e ensacava à disposição de um comboio que passa pela noite levando na caçamba ruínas de pedras, frangalhos e outros destroços que as pessoas deixam na rua.

Na forma pela qual ele alinha as tijoletas, só é possível uma ordem, caso contrário todas perdem o ajuste. E a calçada volta a ser uma espécie de estrada, um caminho. Em frestas retilíneas ele vai ajustando as pedras que não se incomodam do seu manuseio.

Nada disso se parece à vida real, onde tudo se desajusta tão rápido, mais que se possa perceber. Mas, ao contrário dele, que descarta as pedras sem dó, é muito difícil jogar fora o que está arruinado. A consciência de viver é dada por cicatrizes e outras protuberâncias, como o cabelo que cresce, pelos no corpo, unhas, essas coisas. Tudo, menos as coisas intactas.

Já as pedras não têm consciência nenhuma, é claro que não. Se algo lhes falta, não parece ser por culpa do calceteiro. O incômodo rugoso das outras pedras raspando em desencontros é também uma espécie de conforto, assim como as pequenas almofadas nas patinhas dos cães que sem solenidade ou pudor urinam na obra do homem e sobre a sua fronte, tapando-lhe o sol e adulterando sua fisionomia.

Minha amiga Dalva de Oliveira

Ninguém imaginaria que esta senhora confortavelmente instalada sobre o encanamento da calha de chuva do meu edifício seja na verdade uma reencarnação da Dalva de Oliveira.

Mas não só ela é como eu tenho certeza de que mais adiante, no pátio da minha vizinha, vive também a reencarnação pássara de Ângela Maria e num perímetro não muito grande ainda se possam encontrar todas as rainhas do rádio, que por alguma razão resolveram voltar à vida tudo aqui pertinho de casa, numa grande coalizão de talentos que elas exuberam madrugadas afora.

Eu não sei bem a identidade delas — de noite todos os sabiás são pardos —, mas esta aqui eu tenho certeza de que é a Dalva, que, de acordo com a opinião de Heitor Villa-Lobos, foi a maior das cantoras brasileiras da sua época. E porque tenho bom ouvido e certeza de que nunca daquele bico emitiu-se que fosse só uma nota desafinada..

Coisa mais agradável que tem é acordar com o canto de um sabiá. O problema é que nessa época de acasalamento os pretendentes a nubentes acabam montando uma orquestra filarmônica noturna. E o que era mera seresta logo se torna a Primavera de Vivaldi.

Mas… Para que dormir? Vamos aproveitar e ouvir os pássaros!..

Noite dessas, com olhos pesados e ouvidos alertas, cheguei a cogitar em desalojar a Dalva. Cansei de você, vá cantar noutro terreiro, pensei.

Mas tomei do telefone e revendo-a, absorta chocando a ninhada de ovinhos, recobrei o pouco de humanidade que evaporava àquelas horas altas da noite. De ornitopata me conformei em ornitólogo. Fiquei com a foto. Ela, com o seu ninho.

Também pensei que talvez pudesse ser atacado por um sabiá malandro de navalha na mão (um namorado típico dos anos 50, terno branco e chapéu panamá) e achei que não tinha cabimento ninguém passar por essas aventuras e muito menos um despejo tão brutal. Eu era um monstro pensando numa violência de empreiteira imobiliária e ela a reencarnação da Dalva de Oliveira..

Seus trinados, barroquismo que aprendeu involuntariamente na natureza, quando soam eu sei que são três da manhã. Para uns, hora de desbragada boemia. Para outros, o sutil despertar da neurastenia.. Assim é a vida, jamais se pode pretender agradar a todos. Mesmo a voz de uma Dalva de Oliveira pode soar insuportável, a depender do humor do freguês..

One Mile Upstream

Nem parece que foi há dez anos que ouvi pela primeira vez a lindíssima voz de Flo Morrissey. Na época, uma garota que compôs um dos discos que eu mais ouvi nestes dez últimos anos, Tomorrow Will Be Beautiful.

Nesse meio tempo, Florence gravou um disco lindo com Matthew E. White e casou-se com o espantoso cantor e compositor Benjamin Clementine, com quem teve um filho e uma filha.

Não poderia saber o que esperar do seu novo disco, mas é certo que vou me ocupar dele por um longo tempo pela frente.

Florence Clementine, como se chama agora, tem um timbre de voz maravilhoso, e neste disco em que vai um pouco mais ao blue do que ao folk, me remeteu ainda mais à sonoridade de Billie Holiday e Karen Dalton.

Eu não diria que é um som retrô, mas uma continuidade de uma tradição folk com a qual ela sempre esteve identificada.

Com arranjos e produção de Benjamin, o disco é uma grande jornada em torno das suas raízes musicais e do intervalo que ela fez na carreira de compositora nos primeiros anos dos filhos.

Eu não preciso de muito mais que um pouco de vinho e deste novo disco de Florence. Por mim, o ano já pode acabar. <3

Sucata.net

O único banco que não dá certo no Brasil é o banco de teses. Quem escreveu isso foi o Élio Gaspari num artigo na Folha de São Paulo, no ano de 2003. A sentença infelizmente continua em pleno vigor. Às vezes, é uma verdadeira epopeia encontrar-se na internet brasileira mera referência, que dirá um texto acessível. Mas muitas vezes não se chega mesmo é a lugar nem um.

O caos é infinito. É ao mesmo tempo sintoma e consequência da falta de sistematização científica do país. As consequências disso tudo são muito graves: o estado da arte de muitas pesquisas simplesmente não pode ser confirmado ou refutado, a comunicação científica é fraturada, as coisas não saem do lugar, ficam girando em falso no próprio eixo.

Seja porque parte dos seus autores prefere o sigilo para uma possível publicação futura ou porque a política de divulgação é falha, a comunidade acadêmica brasileira decidiu ignorar sem solenidade alguma a Portaria 13 de 2006 da Capes, que instituía a obrigatoriedade da divulgação digital das teses e dissertações produzidas pelos programas de doutorado e mestrado no Brasil. O descaso foi tanto que, em 2018, uma Portaria superveniente revogou expressamente a anterior sem sequer mencionar a questão das teses e dissertações. A obrigatoriedade caiu. Simplesmente instalou-se a anomia normativa, ou seja, o laissez-faire que vigora e permite que cada qual faça como bem entender.

Lá em 2006, o então Ministro da Educação Fernando Haddad inocentemente chegou a cogitar que teses e dissertações fossem organizadas no Portal Domínio Público. O Portal nunca chegou a se tornar referência nem para o ensino fundamental e até hoje é dependente de contribuições voluntárias. Um projeto que em qualquer país do mundo seria razão de vergonha.

Outra iniciativa promissora de organização científica em nível nacional, a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT/MCT), também mantém-se ainda apenas por iniciativa voluntária a que as universidades e seus cursos aderem livremente, ou seja, os resultados ali obtidos não podem ser tomados como definitivos. Uma simples consulta aos “indicadores” do projeto é suficiente para verificar-se que nem o controle de áreas de conhecimento e metadados é confiável. Mas é o que há. O que, no caso, não há.

Biblioteca Digital de Teses Brasileira (BDTD)

Outra iniciativa paleolítica do IBICT/MCT é o Catálogo Coletivo Nacional (CCN), cujo objetivo é intercambiar produção científica entre bibliotecas e cursos cooperantes. A janela de pesquisa do CCN é, não mal comparando, uma viagem à internet do milênio passado. Não há sequer recursos de ordenação, reservas, pedidos, contatos… O catálogo, mesmo assim, é a única fonte nacional centralizada de localização de publicações periódicas. Sem conteúdo on-line, sem comunicação com outros sistemas de controle do lado do usuário, o CCN é, tecnologicamente falando, como uma espécie de astrolábio. Defasadíssimo, mas melhor do que nada.

É difícil tentar explicar a quem usa a internet apenas para o próprio e-mail, e-commerce e redes sociais de que a internet brasileira vem se transformando no começo deste século numa grande rede de sucatas. A causa disso o Élio Gaspari vaticinou lá na virada do milênio: como aparentemente não se perfaz lucro, ninguém investe. Mas o prejuízo está mais do que consolidado. Isso explica em muito as dificuldades presentes e futuras do desenvolvimento científico nacional. A irrelevância de boa parte da produção local e a emigração dos pesquisadores para lugares mais avançados são os efeitos mais evidentes. Mas não ficamos por aí. Ainda tem mais.

De um modo geral, a internet está cada vez mais concentrada em donos de conteúdo que logo cobrarão para acessarmos os dados que nós mesmos criamos. A internet, o território inesgotável de liberdades oceânicas, ele vem sendo silenciosamente privatizado.

Enquanto as pessoas tornaram-se obcecadas pelos seus “dados pessoais”, piratas legais perceberam que poderiam transformar os “dados públicos” em objeto lucrativo. O data mining está aí, diariamente no nosso nosso email, vendendo soluções virtuais de informação pública que ninguém se dá ao trabalho de sistematizar. Não é crime, não é ilícito, mas é vergonhoso… Enquanto nos preocupamos com o “algoritmo”, empresas mais espertas estão de olho nos nossos cookies, rastreando o movimento de milhões de usuários e nos dirigindo como um grande coletivo. Alta tecnologia não é para amadores.

E as redes sociais? As redes sociais nos mantém ocupados como o Sol sorridente no mundo dos teletubbies. Uma Baby TV interativa. É o parque de diversões perpétuo, repleto de normas, vigilância e restrições e alguma sociabilidade eventualmente autentica.

Há poucos dias, o MCT lançou os editais que visam promover o desenvolvimento de aplicações em IA no Brasil. É o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, cuja ambição é mobilizar bilhões de reais e muitos royalties pagos, claro, à inteligência estrangeira, OpenIA, Meta, Amazon…

É preciso uma fé que eu não tenho.

Eu olho os sites do Portal Domínio Público, da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações, do Catálogo Coletivo Nacional e outros projetos do MCT e não consigo ver nada além de burras de ouro sendo despejadas ao léu, para quem nem compromisso com o país tem.

Eu vou é ver o meu Teletubbies. E numa TV de tubo, para não perder de vista a nossa verdadeira idade tecnológica.

Em negativo

Não sei em quantos, nunca contei, mas em boa parte dos poemas que escrevi costumo falar “em negativo”. Não o negativo da negatividade “psíquica”, me refiro à negatividade “narrativa”.

Escrever “em negativo” não tem nada de mais. É dar a ver o presente pela ausência, o aparente pelo oculto, enfim, o positivo pelo negativo.

A mim me agrada eu acho que pela sugestividade, quer dizer, pelo que se consegue entregar de incompleto ao leitor e que ele terá de por si mesmo preencher com a sua imaginação “positiva”. É como se fosse escrito apenas um baixo relevo, para depois ser preenchido por quem estiver lendo, com a sua matéria-prima, repertório, etc.

No mundo da poesia, a perspectiva nem sempre é bem reputada. Especialmente por aqueles devotos à concretude poética e à racionalidade — os detratores da subjetividade. Alguns diriam que se trata de uma impossibilidade, porque o que assim se procuraria narrar é o não acontecido, o não-fato, a inexistência. Seria um esforço, portanto, inútil.

Eu nem discordo quanto à “utilidade”, embora o conceito seja exógeno à arte, mas o que eu acho é que é apenas pouco imaginativo nos limitarmos pelo mundo visível, das imagens verbalizadas, e marcá-los na linha do tempo para que existam.

A vida mental, do espírito, é muito mais larga que essa pequena ruela da realidade visível. É claro que alguma pessoa pode desejar muito isso e fixar-se nestes limites e neles encontrar tudo do que precisa de simbólico, mas daí a uma generalização instrutiva vai uma grande distância, já que do lado do leitor felizmente não temos qualquer possibilidade de controle.

Nada me aborrece mais, como leitor de poesia, quando sinto que o/a poeta quer me tanger página afora, conduzir ou delimitar meu campo mental e imaginação. Esta perspectiva de apreciação “plástica” do poema não funciona bem comigo. Não por acaso, funciona bem com as artes plásticas. A perspectiva que me motiva é muito mais musical – mas não no sentido matemático da música, senão por sua capacidade de induzir o aparelho sensorial e perceptivo.

É claro que isso não significa que não posso ou não consigo apreciar um poema “positivo”, “solar”, “assertivo” ou “concreto”. Não apenas posso como costumo apreciá-los. No entanto, eu aqui estou dizendo do que prefiro, e prefiro os “negativos”, “sugestivos” e “lunares”.

Isto também não significa que prefiro o mundo desconhecido e místico ao palpável e tridimensional. Até porque quanto ao “desconhecido” não se pode fazer muito mais do que um grande silêncio, porque para ele não temos nem palavras. Ao menos me parece que não deveríamos ter.

Não, não é quanto a esse “assombro” que me refiro, mas à sutileza de notar no mundo a sua incompletude, as coisas que o tempo fez acabar, o residual das coisas materiais e a permanência da ação humana sobre o mundo, que é impalpável, certo, mas que pode ser percebida se não estivermos limitados pela condução inclemente do aqui e agora arbitrário e informativo.

O que me faz pensar nisso é que a nossa atenção e pensamento são constantemente desviados para camadas não aparentes da realidade. Há um mundo invisível ocupando o visível. Isto é uma obviedade fisicamente comprovada, basta pensarmos na atmosfera e no que a compõe. Embora não a vejamos, está ela sempre interferindo diretamente em nossa condição existencial. Também os microorganimos e as ondas de radiofrequência que transportam mensagens para lá de complexas. E o que mais pudermos imaginar mesmo sem o ver.

O que acontece é que muitas vezes apenas conseguimos demonstrar algumas coisas por exclusão. Se isto vale na lógica, que demonstra a forma pela qual pensamos, por que não funcionaria em outras formas de pensamento? Mas com isto eu não quero dizer que podemos forjar qualquer imagem e significação a uma realidade passada ou narrada. Na verdade, podemos, mas, ao fazermos, positivamos esta historicidade e então precisamos confrontá-la com a experiência dos outros.

Com essa minha “defesa” da negatividade, eu somente quero mesmo é demonstrar que não é apenas por um juízo moral ou amoroso que se pode ou deve ler um poema. Uma leitura assim, na verdade inutiliza o poema. Um poema que “diz muito”, “assevera” ou “instrui” torna-se, no meu juízo, ainda que belo e correto, intragável. E como diz Hannah Arendt em “A vida do espírito”, o pensamento sempre lida muito mais com ausências do que com o que lhe é reconhecível e óbvio.

Não “é o que temos”, como diz o bordão conformado das redes sociais. Por outro lado, é “o que não temos”. É o que precisamos imaginar, até mesmo para poder ambicionar mudar o que somos e assim nos sentirmos, talvez, um pouco menos vegetativos e dependentes da identidade.

Sair de si mesmo exige uma mudança profunda de perspectiva. E se a poesia me deixa no mesmo lugar onde estou sempre, não sei do que me serviria. Um auto-encanto, um narcisismo de motivos, coisas que não me importam. Eu preciso mesmo é de que me leve, como a música, para o mais longe possível do mundo das aparências, das reais e das inventadas. Mesmo que às vezes ela se dissolva no instante mesmo de sua apreensão.


Poema presente no livro “Inventário”, de 2021.

Para o oeste

Até há uns dias eu não aceitava muito bem que um filme latino-americano fosse enquadrado na categoria “faroeste”. Tanto o termo quanto a estética me pareciam sempre atrelados essencialmente ao cinema hollywoodiano. Os filmes brasileiros, por outro lado, eu sempre pensei neles como “sertanejos”, no caso daqueles ambientados no sertão, e como “gauchescos”, no caso dos ambientados no sul. Isso desde “Paixão de Gaúcho”, filme de 1957 baseado na obra de José de Alencar, até o recente “Bacurau”.

Mas, ao menos geograficamente, o termo se presta perfeitamente bem. Tanto acima da península de Yucatán quanto abaixo, a ocupação e colonização territorial se deu a partir da costa leste, oriental. Daí que o faroeste (para-o-oeste) é mesmo a caracterização correta do movimento humano proveniente da Europa em toda a América.

Não é um gênero de filmes que me motive muito, mas nestes dias acabei vendo dois de seus mais recentes exemplares: um norte-americano e o outro chileno. O norte-americano, chamado “Horizon – an american saga” foi produzido, escrito, dirigido e estrelado pelo ator Kevin Costner, o mesmo de “Dança com lobos” e do seriado “Yellowstone”. “Los colonos”, a película chilena de Felipe Gálvez Haberle, recebeu em 2023 o Prêmio da Crítica Internacional em Cannes.

Assisti a ambos sem ter lido nada a seu respeito e só o que vi de comum neles foi a exuberância fotográfica das respectivas locações no deserto do Arizona, no caso dos EUA, e na Terra do Fogo no caso do filme chileno. A presença colonial e suas características, embora constando em ambos, são completamente dissonantes. Parecem não tratar do mesmo assunto, embora seja exatamente o mesmo. Nos roteiros, a presença britânica, os povos indígenas e o impacto violento desse encontro várias vezes tinge a tela de vermelho e, outra coincidência até certo ponto previsível, os dois filmes tem posters alternativos nessa cor.

Mas as coincidências param por aí. “Los colonos” narra a conquista final do território mais ao sul do Chile, muito após o final da Guerra de Arauco, conflito extrusivo que durou 300 anos. No filme, é narrada a expansão chilena nos territórios ao sul da cordilheira no começo do séc. XX, muito após a “paz” da independência, de 1818. No sul da Argentina e no Chile, os mapuches ainda hoje disputam cada centímetro de suas reservas. Porém, no filme, que é o que importa aqui, a chegada lá se dá de forma muito violenta e toda a tensão concentrando-se num personagem mestiço que a princípio integra a campanha de conquista para um hacendado que vive muito longe dali.

Já no filme de Costner, um projeto destinado a ser um épico de quatro longas-metragens, a ambição autoral está mais centrada em enobrecer a conquista do Oeste nas personagens que chegaram por último ao lugar onde se passa o filme, um vilarejo chamado Horizon. Em relação aos indígenas, Costner promete que no último episódio eles terão mais espaço. Por enquanto, desferiu em entrevista que não “é a pessoa para vingá-los ou para consertar as injustiças” e que tenta escrever personagens realistas. Na sua visão de realidade histórica, em uma hora de filme os indígenas cometem quatro ataques contra os colonos e não são vítimas de nem uma retaliação ao menos. O diretor, que disse em entrevista recente “fazer filmes para homens”, parece desejar vincular-se aos grandes clássicos de John Ford e Sergio Leone, mas parece que esqueceu-se de combinar com o público. Com uma arrecadação aquém da esperada, a segunda parte do filme partiu diretamente para as telas do streaming.

É difícil evitar um comparatismo mais extremo em relação aos filmes, porque seus objetivos argumentativos são muito distintos. Afora as tomadas externas prolongadas, nem esteticamente são comparáveis, pois claramente o filme chileno se alinha com o que se convencionou chamar por “faroeste revisionista”, isto é, é um filme que se desloca do padrão convencional ao qual o norte-americano, por sua vez, está mais que afixado. O desejo de Costner é mesmo realizar um filme no qual os indígenas representam uma ameaça ao avanço colonial, e seus mitos de “desbravamento”, etc. Em muitos sentidos, “Horizon” é mais conservador até mesmo que “Dança com lobos”. E estranho (ou nem tanto assim) que venha um ano após o sucesso de “Assassinos da lua das flores”, de Martin Scorsese, com uma narrativa para lá de severa quanto aos povos originários.

Seja como for, Costner é um sujeito que está pouco ligando para correção política, isso ele mesmo faz questão de confirmar sempre que possível. Também está pouco ligando para correção histórica, o que tratando-se da representação dos povos indígenas infelizmente não é novidade. A falta de imaginação histórica e a má vontade contra uma população vítima de limpeza étnica está ao alcance de qualquer um, não há mesmo que se queixar. Agora, que ele se queixe que o público esteja pouco ligando para o seu filme é de lascar. Enquanto isso, “Los colonos” vai fazendo, por duro que seja, uma bela carreira com o seu realismo. Em ambos os casos, é merecido — mas a cada um o seu cada qual.