Hoje cedo recebi pelo interfone daqui de casa uma chamada de um senhor chamado Teixeirinha. Teixeirinha, no Rio Grande do Sul, ainda hoje é o maior ícone da música popular tradicionalista. Em vida, gravou cerca de trinta discos ou mais, participou de pelo menos dez filmes e incontáveis vezes suas músicas tocaram nas rádios daqui, principalmente as de onda média, de larga penetração nas cidades do interior do estado. É claro que não eram a mesma pessoa, porém, como eu não via o seu semblante, mas ouvia seu modo de falar em tudo interiorano, tive uma conversa estranha com o seu Teixeirinha. Não o fantasma do músico, mas este outro: sujeito aposentado que procurava serviços gerais para ajudar a “criar os neto”, conforme ele disse.
O homem ia falando lá de baixo e eu, cá em cima, montava a fisionomia do outro Teixeirinha mentalmente. Imaginava um homem atarracado como o outro, já falecido. Cabelos escuros improváveis e bigode à gaúcha, como o da imagem do Teixeirinha que eu conservava em mente. À medida que a conversa progredia, entretanto, fui perdendo a imagem do cantor mitológico, mas restava um modo tão simples e direto de dizer as coisas que era como se eu estivesse falando com qualquer pessoa “de antigamente”. E a conversa, como tinha para ele um propósito, e eu, estando impedido de descer no momento, acabou transcorrendo daquela forma impessoal, separados nós por três andares do prédio e camadas e mais camadas de pisos e paredes que impediam que nos enxergássemos frontalmente.
O que ele queria é que eu anotasse o número do seu telefone e, na eventualidade de uma necessidade de qualquer serviço, como de encanador, eletricista, pedreiro, o que fosse, não hesitasse em lhe chamar. Aposentado ele estava agora, mas não tão tranquilamente quanto fosse digno para estar de pernas esticadas numa praia ou numa varanda, mas vagando pela Cidade Baixa, de Porto Alegre, em busca de serviços ocasionais (ou changas, no modo de dizer rural), para ajudar no sustento da família e na “criação dos neto”, com o perdão da repetição da sua fala.
Não sou o síndico do prédio onde moro, mas sou casado com a síndica. Ao contrário de outras composições políticas semelhantes, atuamos em comum acordo e jamais me ocorreu, por exemplo, sabotar sua gestão ou coisa equivalente. A pessoa prevenida inclusive jamais deveria incorrer numa parceria feita à sorrelfa, com pessoas que não se confiam. Se assim não pode ser na vida política, na vida pessoal é completamente inviável ser de outro modo.
Como a titular da pasta não estava em casa, atendi eu mesmo o que ele pedia. Guardei seus telefones e sugeri que me aguardasse um instante, que em minutos eu desceria até lá para falar com ele diretamente. Com o seu Teixeirinha. “Não se incomode”, ele falou, porque estava visitando os prédios todos do bairro e de cada um onde estivera antigamente a serviço ele lembrava-se do nome dos antigos moradores, inclusive do nosso, com quem teria “tratado serviço” há muitos anos atrás. Esta pessoa, já falecida, havia sido major do exército, pracinha da FEB na 2ª Guerra Mundial, e fôra síndico por muitos anos. Na nossa conversa, citar o seu nome funcionava como um atestado de idoneidade. Interiorano como sou, entendi assim a menção a este antigo vizinho que era vivo ainda quando viemos morar aqui. E, na lógica da conversa, era isso mesmo o que ele queria dizer, que não era um ninguém, mas era o seu Teixeirinha, conhecido deste, daquele e daquele outro. Alguém cuja credibilidade era dada quase por uma tradição. Seja como for, foi o suficiente para que eu acreditasse nele.
A conversa não foi longa, mas o bastante para que eu percebesse que a firmeza na voz do meu interlocutor seria exatamente a mesma do seu empenho em qualquer trabalho que fosse fazer. Há não muito tempo atrás eu havia tomado um calote de um sujeito bem jovem que veio fazer um serviço de encanamento aqui em casa e pensei que era uma lástima eu não ter desde antes o contato do seu Teixeirinha. Esse outro fez um serviço péssimo que tive eu mesmo de reparar, ainda que tivesse pago e não pouco pela sua execução. Paciência. Pagava em dobro para ele não pisar mais na minha casa.
Não tenho de imediato um serviço para oferecer ao seu Teixeirinha nem aqui em casa nem no condomínio, mas sou bem capaz de quebrar um cano ou estragar uma coisa qualquer de propósito a fim de chamá-lo. E nem tanto para me certificar de que não se trata de uma reencarnação do antigo cantor de música gauchesca, mas porque se isso fosse ajudá-lo a completar a aposentadoria miserável que pagam aos velhos no Brasil, já valeria a pena. Antes investir diretamente no seu Teixeirinha do que nesses gatunos que agora se resolveu chamar de “gestores”. E, mais a mais, apesar de que certamente fosse mais digno e justo que uma pessoa nessa idade estivesse sossegada, de tanto e tanta pilantra que se é obrigado a ver nas “mídias” e “redes sociais”, sempre é bom ver com os próprios olhos um índio velho desses que não se entrega assim “no más”.