Foi numa entrevista para a Parêntese, concedida ao professor Luís Augusto Fischer, que fiquei sabendo que o mais recente livro da Eliane Brum, Brasil Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago, 2019), não havia recebido sequer uma crítica dos grandes jornais brasileiros, apesar de ter sido resenhado pela New Yorker, pelo New York Times e estar sendo traduzido para diversos idiomas, entre os quais o polonês e o italiano.
A informação em nada me espanta. Apesar dos vários títulos que vêm sendo publicados na intenção de dissecar a história política recente, em sua maioria os livros teóricos têm compromissos nítidos com a sua própria performance investigativa e estão disputando, para além da narrativa, o cenário e destino eleitorais. O livro da Eliane também tem seus compromissos, mas não é por isso que eu acredito nessa refração que o público brasileiro vem tendo em relação à publicação da Arquipélago, editora de Porto Alegre que é a sua “casa”, conforme ela diz.
Eu temo, aliás, que qualquer iniciativa intelectual que vise colocar ao espelho a história recente brasileira venha a passar pelo mesmo. Não é que não estejamos preparados ainda para enfrentar a dissolução da Nova República no bolsonarismo: é que nunca estaremos. É muito terrível ser obrigado a olhar a ruína logo atrás e ainda por cima precisar entender que o futuro breve continua sendo determinado por escolhas comprometidas e/ou já fracassadas.
Como a bíblica família de Lot, pesa-nos a advertência de que, para seguir sobrevivendo em paz relativa, é necessário não olhar para trás, nem examinar os meandros do que competiu a maldição da história toda. Há o risco de congelamento em sal numa recaída simples. E ninguém em sã consciência do seu instinto de sobrevivência gostaria de terminar assim. Ou seja, fugindo ao viés de confirmação de uns ou de outros, qualquer literatura será mal vinda. Bem vinda aquela que permite continuar, ainda que ao custo da denegação da realidade objetiva.
É por afrontar o legado petista e lulista, por enfrentar a sanha justiceira lavajatista e por confrontar a expressão da malignidade bolsonarista que o livro de Eliane vai se convertendo num clássico pouco lido. A sua diferença maior em relação aos livros de ciência política não é dada pela linguagem ou pelo método jornalístico de imersão total pelo qual ela opta, mas pelo distanciamento que lhe confere a isenção ideológica e o exame vis-à-vis dos acontecimentos.
Se é possível que ela incorra em equívocos de interpretação, isso é o que há de menos grave. A história do Brasil recente está mesmo sendo forjada a quente e, no tocante às decisões políticas, vem competindo em desastres humanitários, ambientais e econômicos sem precedentes. Além disso, os cronistas dos jornais e das redes sociais estão também implicados muitas vezes numa rede de enganos e auto enganos que mantêm suas bolhas agregadas e sua narrativa montada, em pé.
Desse consensos não coincidentes não resulta uma ciência política taxativa nem diagnósticos claros do que ainda pode vir a acontecer, mas o ponto de vista de Eliane Brum, como residente no mesmo alto Xingu no qual se estabeleceu o gigantismo destruidor da usina de Belo Monte e como pensadora autônoma, não está colocado como a chave interpretativa por excelência adotada nem por direita e nem por esquerda. É de um lugar oblíquo, do qual permite ver os estilhaços da imagem de uma nação esfacelada em muitos cacos, que o espelho do seu livro alcança ao público. De primeira, não será uma imagem muito clara ou precisa, mas, ao fim, vai se ver que a imagem resulta de uma semelhança incômoda com o Brasil real e isso, afinal, talvez seja o que mais nos aterrorize.
Brasil, construtor de ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro
de Eliane Brum, (Arquipélago, 2019).